À conta de Deus
Um dia o Senhor, cansado já de
ouvir as lamentações e queixumes que partiam da Terra e lhe chegavam ao Céu,
chamou São Pedro e disse-lhe:
— Anda daí, Pedro! Vamos ver o
que se passa no Mundo, que, a ser verdade o que me chega aos ouvidos, mal andei
em me sacrificar pela Humanidade, que não encontra meio de ser feliz nem
prefere os caminhos do bem e da justiça.
S. Pedro foi buscar as suas
sandálias de viagem e apresentou-se, pronto, diante do Senhor.
Andaram, andaram por montes e
vales; percorreram aldeias e cidades, e de tudo quanto se passava, e do que
viam, o bom do Santo ia tomando nota, para depois ser estudado no Céu e se dar
remédio ao que remédio tivesse.
Até que chegaram a um campo onde
viram uma casa bem arranjadinha mas pobríssima, e uma mulher limpa, alegre e
desembaraçada, trabalhando sozinha sem se distrair.
— Que fazes tu, mulher?
— Eu, Senhor, trabalho quanto
posso de dia e de noite, porque o meu homem está doente e os meus filhos são
pequenos, de modo que não tenho quem me ajude. E graças que tenho forças para
trabalhar! —
O Senhor abençoou-a e continuou o
seu caminho, na companhia de São Pedro, que ia anotando quanto se passava.
Ao chegarem a outro campo, distante,
viram uma outra mulher muito rota e desmazelada, deitada debaixo duma árvore,
junto duma casa em ruínas.
— Olha lá, mulher, tu que fazes?
— Eu, nada, Senhor!
— Então nem trabalhas, nem olhas
pela tua casa? Não coses a tua roupa, não lavas, não cuidas da terra?
— Para quê, meu Senhor? Eu estou
à conta de Deus.
O Senhor abençoou-a também e
continuou, com São Pedro, o seu caminho. Até que, tendo visto quanto ia pela
Terra, os Santos viajantes chegaram ao Céu. E começou São Pedro a pôr em ordem
as notas que tinha colhido, para darem os remédios próprios a tantos e tão
diferentes males.
Ao chegarem ao caso das mulheres,
disse o Senhor:
— Vê bem, Pedro, que não falte
nada à boa mulher trabalhadeira, que assim cumpre a lei divina.
— Já o notara, Senhor. E, com a
vossa graça, todo o seu trabalho será produtivo, e obterá prosperidade.
— Mas não deves esquecer também a
pobre mulher que encontramos debaixo da árvore. Castigada justamente com a
pobreza, por não trabalhar, a deixamos. E no entanto merece melhorar, porque
tem fé verdadeira e se entrega à minha conta.
— Mas, Senhor, que posso fazer
por ela, se, embora tendo fé sincera, não quer cumprir as suas obrigações de
trabalho na terra?
— Dá-lhe maior luz aos bons
sentimentos. A quem se entrega à minha conta, não quero que falte nada. Dá-lhe
o prêmio de, com a minha graça, adquirir o hábito de trabalhar tanto como a
primeira.
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Fonte:
Ana de Castro Osório: Contos, fábulas, facécias e exemplos da tradição popular portuguesa (Editado a partir da edição da Bibliôtronica Portuguesa)
Fonte:
Ana de Castro Osório: Contos, fábulas, facécias e exemplos da tradição popular portuguesa (Editado a partir da edição da Bibliôtronica Portuguesa)
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