De quantos
espetáculos gratuitos é dado gozar a um homem do Porto, não há nenhum mais da
minha paixão do que o das feiras do São Miguel e São Lázaro!
Se os
feirantes pudessem adivinhar o bem que lhes quero, e os votos que faço, para
que Deus lhes conceda bom tempo, não havia um só que deixasse de me dar o São
Miguel e o São Lázaro!... Era o homem mais presenteado deste mundo!
Gosto daquelas
feiras!... Delicia-me aquele barulho, faz-me rir aquele originalíssimo concerto
ou desconcerto de assobios, tambores, trombetas e rebecas, que, soando de todos
os lados, ensurdecem a gente, e nos irritam os nervos.
Gosto
daquelas duas feiras, repito! mas dou a preferência à do São Miguel.
Há maior
espaço, mais desafogo, mais para onde uma costureira ingênua ou criada inocente se retire, para jurar em segredo ao
namorado eterno amor, na esperança de lhe apanhar o São Miguel.
O leitor
acha talvez pueril o prazer que encontro naquele espetáculo...
É porque
ainda não pensou no partido que dele pode tirar!
Dá margem a
profundos estudos psicológicos!
Encoste-se a
uma barraca, com sincera vontade de ver, de analisar, de estudar e verá como,
ao cabo de meia hora, há de saber muito segredo, muita aflição velada por um
sorriso, muita lágrima represada, que uma palavra bastaria para fazer saltar
dos olhos!
Imaginemos,
por um pouco, que estamos numa barraca e analisemos.
Estudemos,
por exemplo, este sujeito bem trajado, que contempla todas as quincalharias com
olhos desanimados.
— Maldita
seja a pequena!... Que diabo hei de eu levar a uma criança daquela idade?!...
Aquele serviço de chá?... São capazes de me levar um dinheirão por aquilo!...
Se lhe desse uma boneca?... Ora adeus! Quando Deus quer, tem meia dúzia delas!
E o pior não é isso!... O pior é ser preciso — dar-lhe alguma coisa... O pai
ralhou-lhe; mas — afinal, quem meu filho beija, minha boca adoça... E é que não
tenho remédio senão dar-lhe alguma coisa!... É o meu chefe!... Às vezes vê-se
um pobre diabo preterido; quebra a cabeça para descobrir o motivo, e, afinal,
prende a coisa numa sensaboria destas!... Mas... que lhe hei de eu levar?!...
Vejamos noutra barraca...
E o homem
bem trajado retira-se, mas... deixá-lo ir; já — deu o que tinha a dar.
— Então, Sr.
Sousa... Olhe que nos há de dar o São Miguel! — diz uma travessa menina de
dezoito anos, falando por si e por duas amigas da mesma idade.
— Oh! minhas
senhoras... Com o maior prazer!... O que vossas excelências quiserem... —
responde o Sr. Sousa, rapazote de vinte e três anos, com um destes sorrisos a
que vulgarmente se chama amarelos.
Não façam
caso do que ele diz! Olhem-lhe para a cor do sorriso, pois é ali que está o
segredo!
Aquele
sorriso... chora!
— E eu que
só trago quinhentos e vinte!... — eis o que diz o sorriso.
Deixemos o
mancebo, e aproveitemos esta família.
Oh! que
horrível pequeno!... Que berreiro!...
— Eu quero aquele tambor... Eu quero uma espingarda, papá!... Eu quero aquela espada... mamã!... Eu quero aquele cavalo!...
— Está
bom!... cale-se... O menino escusa de chorar... Vá... cale-se!... O papá vai
dar-lhe o São Miguel — diz a mamã, vexada pela triste figura que o filho está
fazendo.
— Compra-lhe
alguma coisa, Augusto... — diz timidamente a esposa.
— Pronto!...
vamos a isso!... — responde o papá, que não quer passar por avarento na opinião
dos circunstantes.
O bom do
homem compra uma espada; mas, como, feita a compra, o pequeno recomeça a
ladainha dos queros, o chefe de
família diz severamente: "O menino não tem querer!" e acrescenta em
forma de satisfação às testemunhas daquela cena: "Isto de crianças é
preciso não lhes fazer a vontade em tudo!"
Três passos
adiante, — diz ele com mau modo à esposa:
— Aí está...
Eu bem não queria — que trouxesses o pequeno!... Aí estão doze vinténs bem
empregados!...
—
Coitadinho!... — diz a mamã dando um beijo no filho. — Não querem que sejas
criança...
— A senhora
não sabe o que diz... — volve o marido impaciente.
A esposa
fita-o indignada, leva em seguida o lenço aos olhos, trava da mão do filho e
apressa o passo.
Ora Deus
queira que aquela espada de lata não tenha dado o primeiro golpe no nó
matrimonial!
Alto!...
Isto é gente fina... Que perfeito cavalheiro!... E a senhora?... e a
menina?!...
Que
elegância, que distinção de maneiras!... É pena que em tão aristocráticas
feições se note tanta melancolia!
— Então,
Júlia... escolhe!... Anda tu, filha...
Vá!...
Comprem o que quiserem!... Eu estou por tudo... — diz ele.
A filha
eleva os olhos tristes e interrogadores para os da mãe... Que lhe responderam
os desta?... Não sei!... Soltando um suspiro e lançando um derradeiro olhar de
resignada mágoa para todas aquelas tentações, a pobre menina responde:
— Hoje...
não, papá... Outro dia...
— Bem...
Quando quiseres...
E elas aí
vão com aquele perfeito cavalheiro, quando fora de portas, déspota grosseiro e
egoísta abjeto quando o mundo o não pode ver!
Psiu!...
Escutemos!... Aquele estudante parece altercar com aquela costureira!
— Eu já
disse ao Sr. Maia que não é verdade!... — diz a rapariga quase a chorar. — Aqui
a Ana que diga... Ó Ana, até que horas trabalhamos nós ontem?...
— Até às
oito e meia...
—
Combinação... — rosna o estudante, voltando as costas e dirigindo-se a um grupo
de rapazes.
No rosto
contrariado, mas resoluto, do mancebo lê-se: "São Miguel não abichas tu... Ainda me não saí
mal!..."
Os olhos da
jovem, exprimindo dúvida e ternura, dizem claramente: "Se eu tivesse a
certeza que foi só para me não dares o São Miguel!..."
Como se lhe
estivesse devassando a mente, exclama de repente a Ana, fazendo um gesto de
desdém:
— Anda daí,
tola... Teve medo que lhe pedisses cinco réis de anéis!
Aqui tem o
leitor o que constitui, por assim dizer, para mim, o principal encanto das
feiras de São Miguel e São Lázaro.
Deixe-me,
agora, contar-lhe uma história — a história de uma boneca!
Não há
muitos anos, mas ainda não era a Cordoaria o ameno jardim, onde a infância
folga por entre maciços de flores e sob o sorriso do sol, sem que lhe enegreça
o espírito a vista dos dois monumentos, que a meu ver simbolizam as duas mais
horríveis calamidades que podem aniquilar um homem — o hospital e a cadeia! — ainda
não há muitos anos, repito, estava eu, uma noite, encostado a uma barraca da
feira, divertindo-me a meu modo.
Cansado das
inúmeras figuras que tinha visto passar por aquela espécie de lanterna mágica,
dispunha-me a dar por findo o espetáculo, quando novos personagens me chamaram
a atenção.
Eram os meus
vizinhos ricos.
Aqui é
preciso uma rápida explicação.
Das famílias
da minha vizinhança, só conheço três.
Uma vive na
loja da casa que habito. É uma tribo de crianças, que fazem o martírio e a
alegria da pobre mãe, e tem por chefe um honrado sapateiro.
Alguns
deles, se andassem limpos, seriam encantadores; assim, parecem anjos caídos do
Céu sobre um monte de lama.
São os meus
vizinhos pobres.
A segunda
compõe-se de marido, mulher e filha, e ocupa a casa imediata.
É, como se
costuma dizer, gente que vai muito bem
com a sua vida.
A filha, que
terá dez anos, tem destas faces rosadas, rijas e carnudas, cuja solidez a gente
gosta de experimentar com o dedo, e que resistem à pressão.
São os meus
vizinhos remediados.
A terceira é
a dos meus vizinhos ricos.
Casa nobre,
jardim espaçoso, cavalos, criados, nome inscrito nas listas dos acionistas de
todos os bancos e no rol dos credores do Estado — nada falta àquela ditosa
gente!
Compõe-se
igualmente de marido, mulher e filha.
Que formosa
criança!... Terá oito anos.
Franzina e
pálida, com os cabelos negros, os olhos grandes e cismadores, nunca lhe
contemplo as pequeninas mãos de dedos compridos e esguios, terminados por unhas
de uma — cor de rosa transparente, que não sinta antecipada inveja do feliz
namorado — provavelmente ainda a crescer —que há de um dia ter o direito de
lhas cobrir de beijos.
Qual destas
três famílias será mais feliz?...
Pelo que
tenho notado, não têm que invejar umas às outras.
São todas
felizes; cada qual a seu modo.
Vi, pois,
chegar os meus vizinhos ricos.
Parou o
carro, o criado saltou da almofada e veio, de chapéu na mão e dorso
ligeiramente curvado, abrir a portinhola; o meu vizinho saltou, tomou nos
braços a filhinha e depô-la no chão, e oferecendo, em seguida, a mão à esposa,
para a ajudar a apear, dirigiu-se com ela e com a menina para a barraca onde eu
estava.
Não havia
ali segredo — a surpreender.
Havia um
homem, exemplar como marido, rico, doido pela filha, e que parecia agradecer
àquela formosa criança a manifestação de qualquer desejo.
No fim de
meia hora possuía a minha pequena vizinha com que fazer a felicidade de dez
crianças menos abastadas.
Tinha o
necessário para montar completamente a casa de uma boneca... rica.
Faltava
apenas a dona da casa-a boneca.
Todo risos e
atenções, o lojista apresentou o que tinha de melhor.
Depois de
muita hesitação e de, já com os olhos, já com a voz, consultar a mamã, a gentil
criança acabou por escolher uma magnífica boneca de dois palmos de altura,
cabelo em bandeaux e olhos azuis.
Uma boneca
como as outras: cabeça e colo de massa, corpo de pelica recheada, braços e
pernas de pau.
Feita a
compra, o pai pagou, chamou o criado, e este mudou todas aquelas preciosidades
de sobre o balcão da barraca para dentro do carro.
A boneca
teve a honra de ser transportada pela aristocrática criança.
Saí — dali,
logo que o trem rodou, e fui fazendo até casa veriadíssimas considerações,
sugeridas pela quase indiferença com que aquela menina recebera brinquedos, que
representavam um par de moedas.
Que
contraste com os olhares de cobiça, com que outras raparigas da mesma idade
namoravam uma destas bonecas de cabeça de pano, horrível artefato português, em
que os olhos são representados por dois pontos de linha azul, o nariz por um
alinhavo de retrós cor-de-rosa, a boca por outro de fio vermelho, e os cabelos
por flocos de lã preta!
Quando
cheguei a casa, já na dos meus vizinhos remediados não havia luz.
Na dos meus
vizinhos pobres, o pai batia a sola,
cantando ao som de três assobios e duas campainhas de barro com que os anjos,
por lavar, provocavam os ralhos da mãe.
Quando, no —
dia seguinte, cheguei à janela, seriam onze horas da manhã.
Na rua
agenciavam nova camada de imundície os filhos do sapateiro; na casa imediata
não se via ninguém — estava a pequena na mestra; no palácio, sentada num tapete
estendido sobre a ampla pedra da varanda, divertia-se a minha pequena
milionária fazendo rodar, com auxílio de uma linha, uma magnífica caleche descoberta, puxada por cavalos
brancos.
Dentro da caleche pavoneava-se a boneca
opulentamente vestida.
— Aí está a
tua caricatura, minha feiticeira!... — disse eu de mim para mim. — Ensaias nas
bonecas o que vês no mundo a que pertences!... Estás a aprender a copiar...
Sempre este mundo!...
Retirei-me
da janela.
Durante uma
semana vi muitas vezes repetida a mesma cena.
A boneca
ostentava todos os dias novas galas, e havia dia em que se vestia três e quatro
vezes!
Ao que eu,
porém, achava mais graça, era ao respeito com que a dona a tratava!
Chamava-lhe
Sr D. Luísa; dava-lhe excelência; sustentava finalmente com a boneca um destes
diálogos de senhoras da alta sociedade, em que se fala de tudo, sem se dizer
coisa alguma.
Um dia —
estava eu de costas voltadas para a janela dos meus vizinhos ricos — ouvi um grito de susto.
Era devido a
um acidente, a que está sujeito quem anda de carro.
Voltara-se
este, e a boneca caíra, ferindo a fronte na pedra da janela.
O primeiro
movimento da pequena foi beijar e prantear a vítima; vendo, porém, que a ferida
havia forçosamente de deixar cicatriz, e lembrando-se — de que só lhe bastava
querer, para que lhe dessem outra nova, agarrou-a pelos pés e ia atirá-la com
despeito à rua, quando mais perto de mim bradou voz tímida e suplicante:
— Não
atire!... Dê-ma...
Era a minha
pequena vizinha da casa pegada, de quem eu não dera fé até então.
Assim
invocada, a menina rica franziu levemente as sobrancelhas e lançou um olhar de
rainha para o sítio de onde vinha a súplica.
Vendo uma
criança pouco mais ou menos da sua idade, serenou e, encolhendo os ombros,
respondeu:
— Já não
presta!... Está esmurrada!...
— É o
mesmo!... Dá-ma?... — bradou a outra,
cujos olhos
brilhavam de cobiça.
— Dou... —
volveu a rica, encolhendo nova
mente os
ombros.
E,
caminhando para o canto da varanda, deixou cair a boneca nas mãos da vizinha,
que tremia, receosa de que aquele tesouro fosse despedaçar-se nas lajes da rua.
Fugiram
ambas as pequenas a um tempo: a rica para exigir nova boneca; a outra, para
mostrar à mãe a que ela ainda não podia acreditar que fosse sua!
Por espaço
de meses foi a boneca a principal ocupação da nova dona.
A pobre
perdera na troca. Ia longe o tempo em que ela se vestia quatro vezes em quatro
horas!... Já lhe não davam excelência! Chamavam-lhe Sra. D. Ana; falavam-lhe de
arranjos domésticos, do desmazelo da criada, da missa das almas, de coisas,
finalmente, completamente estranhas para ela!
E a
desgraçada perdia as cores; os olhos tornavam-se-lhe cada vez menos azuis; mas
o que mais a desfigurava era a cicatriz, que de dia para dia se tornava mais
escura: parecia uma nódoa, um estigma!
Nos
primeiros tempos, enquanto durou o vestido que trouxera no corpo, ainda poderia
enganar olhos pouco conhecedores.
Não tardou,
porém, que arrebiques de mau gosto, fitas velhas, rendas amareladas, chapéus
impossíveis viessem contrastar com a elegância do vestido. Dava ares de se ter
equipado ao acaso, na loja de uma adeleira.
Mas o
vestido foi-se tornando velho; desapareceu o brilho e, com ele, as ondulações
do moiré, até que, um belo dia, vi a
boneca vestida de cassa — no Inverno! — xaile, e manta na cabeça.
Muito mal
lhe ficava tudo aquilo!... Àquela boneca custava-lhe decerto o ver-se tão mal
arranjada.
Eu
retirei-me da janela soltando um suspiro, e balbuciei:
— É
justo!... Cada qual segundo as suas posses.
Por esse
tempo, entrei em relações com o meu vizinho sapateiro.
O honrado
homem soubera que eu me queixara da bulha que os filhos faziam logo ao
amanhecer, e aproveitara a primeira ocasião para me pedir desculpa.
Vendo-me
conversar com o pai, tinham-se os filhos animado a aproximar-se de nós e, desde
então, nunca saio de casa nem entro, sem grave risco de sofrer as consequências
da sua travessa familiaridade.
Entre os
filhos do sapateiro, porém, há uma pequenita de onze anos, com quem simpatizei
logo à primeira vista.
Chama-se
Maria.
Por um
destes acasos da Providência, que parece às vezes comprazer-se em criar
contrastes, Maria destaca no meio de todos os irmãos.
Acostumado
às travessuras e desalinho dos outros filhos do sapateiro, fiquei deveras
pasmado quando o pai ma apresentou.
É bem
verdade que ele conhecia o valor daquela criança, porque havia verdadeiro
orgulho no olhar do pobre homem quando me disse:
— Esta é a
minha Maria!
E tinha
razão!
Não podia
ser mais discreta do que já nesse tempo era.
— É quem
vale à mãe!... — acrescentou o velho. — Ali, onde a vê, faz o serviço de uma
mulher!... Há seis meses, quando a minha santa esteve doente — bem pensei que
não arribasse! — a pequena era quem cozinhava e olhava pelos irmãos!... E
caridade como ela tem?!... Olhe que aquela pequena esteve três dias sem se
deitar... ali... ao pé da mãe! Foi preciso eu obrigá-la, que ela não a queria
deixar!...
E o
desvanecido pai enxugou, com a manga da camisa, uma lágrima, que, havia muito,
hesitava sobre se sim ou não se devia despenhar.
Fazia gosto
ver aquela pequena com o seu vestidinho de chita escura e a cabeça coberta por
um lenço branco.
Desde que o
pai me deu tão boas informações da rapariga, nunca mais passei por defronte da
porta da loja sem dar pelo menos os bons-dias à pequena.
Uma vez
recolhia eu para jantar, quando vi a Mariquitas com uma boneca deitada nos
joelhos.
— Eu conheço
aquela boneca!... — disse eu de mim para mim.
E, não
podendo resistir à curiosidade, bradei:
— Ó
Maricas!... Quem te deu a boneca?...
— Foi ali a
menina da vizinha! — respondeu a pequenita, corando — de prazer.
Era escusado
dizer-mo.
Maria pegara
na boneca, e voltara-a de face para mim. Não podia duvidar... Era ela; lá
estava a mancha, o estigma cada vez mais visível na fronte.
De tempos a
tempos, nas raras horas de descanso, Maria entretinha-se com ela.
— Quem te
viu e quem te vê! — pensava eu.
Às vezes, se
Maria se descuidava e os irmãos lha podiam apanhar, que tratos que sofria a
desgraçada!
Roçada por
aquelas mãos, — de que um carvoeiro se envergonharia, empregada como péla,
submetida a torturas, era, ainda assim, singularíssimo o aspecto da triste!
Dava ares de
uma duquesa que, por necessidade, houvesse sido levada a fraternizar com o
povo.
A mísera
mudara mais uma vez de nome!... De Sra. D. Ana passara a ser Sr a Rosinha, e
tratavam-na por vossemecê.
Trajava
vestido de chita, capote velho de pano verde e lenço na cabeça.
Era um
prazer para mim o escutar as conversas que Maria sustentava com a boneca.
Esta, umas
vezes, representava o papel de mulher casada, e Maria, encarregando-se de
perguntar e responder por ela, obrigava a pobre boneca a lastimar-se por estar
tudo tão caro, por haver falta — de trabalho, por ter os filhos doentes, todos
os assuntos, finalmente, que mais familiares eram á pequena.
Outras vezes
passava a boneca a ser criada de servir. Repreendiam-na, mandavam-na buscar
água à fonte, pagavam-lhe, regateando, a soldada, e acabavam por a despedir.
Já o leitor
vê que, apesar da bondade de Maria, deixara de ser feliz.
Iam longe os
bons tempos em que ela, rica, morava no palácio vizinho!
Desmaiada —
de cores, quase perdido o cabelo, semiapagados os olhos, desfeito o carmim dos
lábios, a boneca não prometia longa duração.
Foi este,
pelo menos, o prognóstico que fiz a última vez que a vi, tentando em vão
agradar à última dona, que o seu destino lhe dera.
Coitada!...
Bem longe estava de lhe imaginar o fim!
Um dia —
chovia a cântaros! — o enxurro, mal cabendo nas valetas da rua, espadanava em
cachão para cima dos passeios, arrastando na passagem mil imundícies.
Eu estava à
porta de casa, esperando que a chuva cessasse, e olhava melancolicamente para a
água negra, que corria. Nisto, ouvi um grito, que partia da loja do sapateiro.
Voltei maquinalmente o rosto... Um objeto, arremessado de dentro da loja,
atravessou o espaço, voando, e foi cair no leito do enxurro...
Olhei... Era
a boneca!...
A mísera,
arrastada pela água, vogou rua abaixo até esbarrar numa pedra; mas o redemoinho
envolveu-a e, depois de a fazer girar três ou quatro vezes, obrigou-a brigou-a
a passar pelo estreito traçado entre a pedra e o passeio, e a triste seguiu no
fio da corrente, até ir sumir-se nas profundezas da primeira boca-de-lobo que
encontrou na passagem!
Será
pieguice, será o que o leitor quiser; mas confesso-lhe que me impressionou o
fim da pobre boneca.
Mal passou a
chuva, desci o degrau da porta e, chegado — à vidraça do sapateiro, perguntei
com voz involuntariamente severa:
— Por que
deitaste fora a boneca, Maricas?! — Não fui eu... — balbuciou a pequena,
chorando. — Foi ali o Joaquim!...
— E por que
fizeste tu aquilo, Joaquim?...
— Ora!... —
respondeu o garoto com enfado. — Ora!... Estava velha... e feia!...
Curvei a
cabeça ante aquela razão e segui o meu caminho. Dez passos adiante dei com os
olhos numa mulher, pobremente vestida, e pareceu-me que escondia o rosto no
cabeção do capote, como que receando que eu a conhecesse.
Não foi,
porém, tão rápido aquele movimento, que não lhe pudesse, ainda que de fugida,
distinguir as feições.
— Conheço
esta mulher!... — pensei eu.
E, parando,
voltei-me para a seguir com a vista.
Ao chegar à
esquina, não resistiu a voltar-se para trás, provavelmente com medo de que a
seguisse.
Vendo-a
então de frente, estremeci!...
A história
da boneca era a história daquela mulher!
Caíra... e
descera!
E eu.. que a
conhecera, festejada no seio da opulência, e acabava de a ver passar, tentando
encobrir nas dobras do capote o estigma que a vergonha lhe imprimira na fronte,
cravei instintivamente os olhos na boca-de-lobo por onde vira desaparecer a
boneca e murmurei, pensando na mulher:
— Velha e
feia!...
Aquela...
espera-a a vala comum!... a boca-de-lobo em que se somem os pobres!...
— Pobre
mulher!...
— Pobre
boneca!...
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