Ele ia lentamente, meneando a bengala, com ar de indiferente, inclinada
a cabeça sobre o ombro, mostrando na fadiga fingida dos gestos, na afetação de
descuido nas palavras, o desdém de todo o amador, verdadeiramente amador, pelas
preciosidades das coleções alheias.
Entretanto os olhos lhe desmentiam o aparente descuido cada vez que encontravam
algum objeto de forma rara, a ansa de um vaso preciosamente esculpida, o
cinzelado de uma ferragem antiga, ou simplesmente um brasão desconhecido na
borda de um prato esmaltado.
Mas o Dr. Van Doylen, o dono do museu, que o acompanhava, bem lhe
conhecia os falsos desdéns de amador, dentro do qual se acouta sempre o negociante,
o comprador mais apaixonadamente cauteloso.
For isso mostrava ouvir com religiosa atenção o discurso friamente
admirativo, que, sobre a sábia monotonia
do verde de uma paisagem detestável, lhe fazia o seu amigo, Comandante Siemens,
da linha do Sul.
E resolvido finalmente a desfazer-se do mal-aventurado quadro, vítima
desse intempestivo elogio, vitupério indireto, o Doutor se deleitava no prazer
de possuidor feliz, vendo os relances de olhos cora que o desdenhoso,
conhecedor emérito, escrutava as suas peças de valor, escondidas no fundo dos
grandes armários envidraçados.
Como na especialidade fossem ambos finos, a comédia do subentendido da
vaidade e da mentira era interessante.
— Tem aumentado muito a sua coleção de esmaltes... Sabe que os Limoges
autênticos são raros? Falsifica-se muito, e muito bem, este gênero....
— Nestes tenho eu confiança, Comandante. Tenho visto muito, para ser
hoje embaçado. Lembra-se daquele pequeno bronze em forma de lacrimatório, com
um gênio chorando à borda? Dei por ele um Luiz em Marselha. Mandei
restaurar-lhe a montagem. O Pinto Leite viu-o e me ofereceu dez libras
— Pinto Leite é rico.
— Tem gosto, corrigiu secamente o Doutor. Depois, como o outro mirasse
muito um objeto tosco, ele passou-lho às mãos:
— Vale o peso da prata, cinco libras. Isso é obra de algum ourives
português, a quem encomendaram um santo rico — Gosta da arte ingênua? Eu acho
que a arte ingênua não é arte.
A discussão durou dez minutos, mansa e sem o calor das disputas de teoristas.
Ali, com efeito, a arte ingênua era mal representada, ainda que o Comandante
classificasse de ingênuos os bordados, pinturas, esmaltes e lavores da China e
do Japão. Mas era só por conversar.
Tinham chegado ao fundo da sala. Van Doylen, embrulhado no seu roupão
de veludo preto, que com as longas barbas brancas lhe dava um ar de mágico, se
tinha encostado ao umbral de uma larga porta, tão larga que parecia continuar a
galeria, e se recolhia na contemplação do seu tesouro, gozando duplamente da
sua posse e da admiração que ele causava. A luz coada pelas grandes vidraças
amarelo-vermelhas, uma luz de ouro em brasa, tinha intermitências de sombra,
das nuvens que passavam. Lá fora a ventania torcia as árvores e a sua zoada
melancólica aumentava o conforto daquele interior de arte e de riqueza. Um
cheiro misturado de vernizes, de madeiras perfumadas, dos estofos antigos, dos óxidos
metálicos, de coisas velhas, um cheiro do passado pairava. Por trás deles, um
pesado reposteiro, com arabescos em canutilho de ouro enegrecido sobre o fundo carmesim,
oscilava lentamente.
O comandante voltou-se:
— E as suas terras-cotas?
Van Doylen sobraçou o reposteiro, arredando:
— Separei-as com os outros nus. Minha mulher gosta de vir aqui com as
visitas, gente que acha que os nus são inconvenientes.
Entraram. A sala, forrada de púrpura carregada, quase negra, dava em
manchas suaves o branco fosco dos mármores e biscuits, o tisne dos bronzes negros, o ouro claro dos polidos, o
rosa-seca das terras-cotas e o amarelo creme dos marfins antigos. Começaram
pelas cabeças de expressão, classificadas com arte por grupos das emoções características.
A conversa adoçou-se então pelo amortecimento da rivalidade latente entre
amadores, e reduziu-se ao quase sussurro lento dos comentários abundantemente,
insaciavelmente adjetivados.
Os gestos, as fisionomias, vivamente, energicamente dramáticas,
obtinham logo o qualificativo justo para a expressão bem clara. Mas as cabeças
mais finas, revelando sentimentos mais complexos, não se satisfaziam com
adjetivos simples. Eram as expressões modernas que os prendiam mais tempo no estudo
psicológico do sentimento revelado no gesto indeciso, oscilante e complicado de
movimentos partidos de origens comuns. Uma cabeça toucada à fantasia, fronte imóvel
de esfinge, boca andrógina, com o sorriso perturbante, o gesto ambíguo,
excitante, e a curiosidade e o saber, a alma dos dois sexos, o grande mistério
dos limites psíquicos, mergulhou-os em considerações profundas sobre a questão
das naturezas duplas, da reprodução, dualismo, unitarismo, símbolos antigos,
aspirações míticas das teogonias primitivas, Ísis-Osíris e a poesia dos desejos
divinizados...
Iam discorrendo e andando. Mas o Comandante estacou de repente, pálido
e comovido. Os olhos distraídos tomaram-lhe a expressão desejosamente adorativa
de quem se acha sob o coup de foudre
de uma paixão ardente. Ele tinha visto a Desejada, a graça fugitiva feita estátua,
o movimento preso no voo, a realidade de um sonho que até ali se contentava em
sonho.
Tudo num relance, só a percepção do gesto, ao princípio. Depois a
investigação palpitante das particularidades harmoniosas o envolveu de todo na
chama devoradora do desejo.
Van Doylen já contava com esse efeito da sua Bacante. E desviando-se,
fingindo ocupar-se com outra coisa, torcia a seu pesar os cantos da boca num
sorriso orgulhoso. Depois saboreou o seu triunfo:
— Não é exemplar de comércio. O escultor modelou-a para a reproduzir em
bronze, mas o fundidor faliu e este modelo, vendido no leitão, começou a correr
mundo até chegar às minhas mãos....
— Que a não deixarão mais?...
— Que jamais nunca a deixarão!
— Mesmo com o frio da morte?...
— Oh! Comandante, não me queira ver morto para possuir um bocado de
argila!
O outro protestou sorrindo, mas a visita acabou num constrangimento,
que nem a despedida do Comandante, partindo para a Europa em comissão,
conseguiu dissipar.
Ele viu a Bacante em sonho nessa noite.
À frente da procissão sagrada, ela vinha, na divina nudez de estatua
viva. Guia da festa impura, corifeia lúbrica, festa era vê-la na embriaguez
lasciva, dançando a dança em que a razão se perde! A paisagem encantada, olímpica,
paisagem de sonho, invadida pela bacanal infrene, toda se iluminava para aquela
aparição radiosa. E ela tomava todo o espaço, e só ela avultava e vivia, como
entre os acessórios apenas indicados de um quadro a figura principal. Elástica
e flexível como um junco ao vento, saltava sem cessar na lânguida cadência de
uma música sem som. Torcendo-se em requebros estudados, correndo todas as posições
acadêmicas, ela improvisava na plástica da carne variações infinitas, sempre
novas, cambiantes inefáveis, sobre o tema vulgaríssimo da sexualidade em
delírio. Grande artista que era! Por fim, como um acorde final, vibrante, ela
estacou na postura extática do modelo, levemente dobrada sobre a esquerda, a
perna direita livre, torcendo alto o tirso engrinaldado sobro os seios eretos e
a cabeça descabida para traz, com a boca entreaberta e os olhos pesados de
languidez, na amorosa oferenda ao deus novo, feminil, ao louro Baco, ao sírio Dionisos.
O Comandante quis ser Dionisos. Mas despertou.
E o amargor de não possuir a estatueta idealizada no sonho envenenou-lhe
a vida daí por diante. Comprou figuras parecidas, mandou fazer bacantes,
estimulou a imaginação de mais de um escultor: só teve decepções.
Perdei a alegria de viver, abandonou as suas coleções, tornou-se misantropo
pelo incontentamento de uma ambição que sentia ilegítima.
Como misantropo, evitou os amigos, Van Doylen inclusive. Para com esse
o constrangimento era como de humilhação e de vergonha. Por isso, quando soube
que ele estava doente, não foi visitá-lo. Disseram-lhe que tísico, e ele
levantou os ombros, parecendo indiferente.
Indiferente, não: dolorosamente perturbado. Lembrava-se de que o amigo
não acreditara nos protestos que lhe fizera, de não querer a sua morte por
preço da estatueta. Agora não poderia ir vê-lo, para que o moribundo não
pensasse que ele era o herdeiro cobiçoso indo espiar-lhe a agonia.
E, atribuladamente indeciso, ia e vinha nas suas viagens mensais,
recebendo notícias cada vez piores do doente. Por fim, com atraso de oito dias,
voltando de uma viagem de mau mar, demoras e contratempos, deram-lhe recado que
o Dr. Vau Doylen lhe queria falar, antes de morrer.
Acudiu pressuroso. Ia resgatar a sua ingratidão e desamor com toda a
exuberância do arrependimento e do afeto, que lhe brotava dos lábios em
palavras generosamente sentidas.
Era tarde, porém. O velho colecionador, que se linha feito transportar
para o meio dos seus nus, morria vagarosamente
na suprema contemplação solitária daquilo que tinha sido a vida da sua vida, resumindo
sensações, esgotando tudo em um longo olhar sedento, sofregamente, como quem
bebe a derradeira laça. Entretanto, quando viu aproximar-se o único que com ele
partilhara dos mesmos ideais, porque a rivalidade ainda é uma comunhão no
desejo, ele teve um sorriso de alegria e entendeu o braço tremulo para tomar a Bacante,
que lhe estava ao alcance, e depositar-lha nas mãos. Mas o esforço foi vão. A
mão vacilante só pôde agarrar a estátua e suspendê-la pelo tirso. Depois, um
sacudimento convulso, de impotente... e ei-la por terra, em pedaços, a
esplendida Bacante dos desejos!
O Comandante teve um só grito, um clamor, duas palavras de ódio para
exprimir a sua suspeita:
— Oh! egoísta infame!...
Os que acudiram ao grito, o encontraram prostrado sobre os fragmentos
de barro, aos pés de Van Doylen, que expirava, levando para além-mundo o
espanto desta cena final do drama da mais terrível cobiça que pode cancerar um
coração.
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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