6/20/2019

A Bacante (Conto), de Domício da Gama



A Bacante

Ele ia lentamente, meneando a bengala, com ar de indiferente, inclinada a cabeça sobre o ombro, mostrando na fadiga fingida dos gestos, na afetação de descuido nas palavras, o desdém de todo o amador, verdadeiramente amador, pelas preciosidades das coleções alheias.

Entretanto os olhos lhe desmentiam o aparente descuido cada vez que encontravam algum objeto de forma rara, a ansa de um vaso preciosamente esculpida, o cinzelado de uma ferragem antiga, ou simplesmente um brasão desconhecido na borda de um prato esmaltado.

Mas o Dr. Van Doylen, o dono do museu, que o acompanhava, bem lhe conhecia os falsos desdéns de amador, dentro do qual se acouta sempre o negociante, o comprador mais apaixonadamente cauteloso.

For isso mostrava ouvir com religiosa atenção o discurso friamente admirativo, que, sobre a sábia monotonia do verde de uma paisagem detestável, lhe fazia o seu amigo, Comandante Siemens, da linha do Sul.

E resolvido finalmente a desfazer-se do mal-aventurado quadro, vítima desse intempestivo elogio, vitupério indireto, o Doutor se deleitava no prazer de possuidor feliz, vendo os relances de olhos cora que o desdenhoso, conhecedor emérito, escrutava as suas peças de valor, escondidas no fundo dos grandes armários envidraçados.

Como na especialidade fossem ambos finos, a comédia do subentendido da vaidade e da mentira era interessante.

— Tem aumentado muito a sua coleção de esmaltes... Sabe que os Limoges autênticos são raros? Falsifica-se muito, e muito bem, este gênero....

— Nestes tenho eu confiança, Comandante. Tenho visto muito, para ser hoje embaçado. Lembra-se daquele pequeno bronze em forma de lacrimatório, com um gênio chorando à borda? Dei por ele um Luiz em Marselha. Mandei restaurar-lhe a montagem. O Pinto Leite viu-o e me ofereceu dez libras

— Pinto Leite é rico.

— Tem gosto, corrigiu secamente o Doutor. Depois, como o outro mirasse muito um objeto tosco, ele passou-lho às mãos:

— Vale o peso da prata, cinco libras. Isso é obra de algum ourives português, a quem encomendaram um santo rico — Gosta da arte ingênua? Eu acho que a arte ingênua não é arte.

A discussão durou dez minutos, mansa e sem o calor das disputas de teoristas.

Ali, com efeito, a arte ingênua era mal representada, ainda que o Comandante classificasse de ingênuos os bordados, pinturas, esmaltes e lavores da China e do Japão. Mas era só por conversar.

Tinham chegado ao fundo da sala. Van Doylen, embrulhado no seu roupão de veludo preto, que com as longas barbas brancas lhe dava um ar de mágico, se tinha encostado ao umbral de uma larga porta, tão larga que parecia continuar a galeria, e se recolhia na contemplação do seu tesouro, gozando duplamente da sua posse e da admiração que ele causava. A luz coada pelas grandes vidraças amarelo-vermelhas, uma luz de ouro em brasa, tinha intermitências de sombra, das nuvens que passavam. Lá fora a ventania torcia as árvores e a sua zoada melancólica aumentava o conforto daquele interior de arte e de riqueza. Um cheiro misturado de vernizes, de madeiras perfumadas, dos estofos antigos, dos óxidos metálicos, de coisas velhas, um cheiro do passado pairava. Por trás deles, um pesado reposteiro, com arabescos em canutilho de ouro enegrecido sobre o fundo carmesim, oscilava lentamente.

O comandante voltou-se:

— E as suas terras-cotas?

Van Doylen sobraçou o reposteiro, arredando:

— Separei-as com os outros nus. Minha mulher gosta de vir aqui com as visitas, gente que acha que os nus são inconvenientes.

Entraram. A sala, forrada de púrpura carregada, quase negra, dava em manchas suaves o branco fosco dos mármores e biscuits, o tisne dos bronzes negros, o ouro claro dos polidos, o rosa-seca das terras-cotas e o amarelo creme dos marfins antigos. Começaram pelas cabeças de expressão, classificadas com arte por grupos das emoções características. A conversa adoçou-se então pelo amortecimento da rivalidade latente entre amadores, e reduziu-se ao quase sussurro lento dos comentários abundantemente, insaciavelmente adjetivados.

Os gestos, as fisionomias, vivamente, energicamente dramáticas, obtinham logo o qualificativo justo para a expressão bem clara. Mas as cabeças mais finas, revelando sentimentos mais complexos, não se satisfaziam com adjetivos simples. Eram as expressões modernas que os prendiam mais tempo no estudo psicológico do sentimento revelado no gesto indeciso, oscilante e complicado de movimentos partidos de origens comuns. Uma cabeça toucada à fantasia, fronte imóvel de esfinge, boca andrógina, com o sorriso perturbante, o gesto ambíguo, excitante, e a curiosidade e o saber, a alma dos dois sexos, o grande mistério dos limites psíquicos, mergulhou-os em considerações profundas sobre a questão das naturezas duplas, da reprodução, dualismo, unitarismo, símbolos antigos, aspirações míticas das teogonias primitivas, Ísis-Osíris e a poesia dos desejos divinizados...

Iam discorrendo e andando. Mas o Comandante estacou de repente, pálido e comovido. Os olhos distraídos tomaram-lhe a expressão desejosamente adorativa de quem se acha sob o coup de foudre de uma paixão ardente. Ele tinha visto a Desejada, a graça fugitiva feita estátua, o movimento preso no voo, a realidade de um sonho que até ali se contentava em sonho.
Tudo num relance, só a percepção do gesto, ao princípio. Depois a investigação palpitante das particularidades harmoniosas o envolveu de todo na chama devoradora do desejo.

Van Doylen já contava com esse efeito da sua Bacante. E desviando-se, fingindo ocupar-se com outra coisa, torcia a seu pesar os cantos da boca num sorriso orgulhoso. Depois saboreou o seu triunfo:

— Não é exemplar de comércio. O escultor modelou-a para a reproduzir em bronze, mas o fundidor faliu e este modelo, vendido no leitão, começou a correr mundo até chegar às minhas mãos....

— Que a não deixarão mais?...

— Que jamais nunca a deixarão!

— Mesmo com o frio da morte?...

— Oh! Comandante, não me queira ver morto para possuir um bocado de argila!

O outro protestou sorrindo, mas a visita acabou num constrangimento, que nem a despedida do Comandante, partindo para a Europa em comissão, conseguiu dissipar.

Ele viu a Bacante em sonho nessa noite.

À frente da procissão sagrada, ela vinha, na divina nudez de estatua viva. Guia da festa impura, corifeia lúbrica, festa era vê-la na embriaguez lasciva, dançando a dança em que a razão se perde! A paisagem encantada, olímpica, paisagem de sonho, invadida pela bacanal infrene, toda se iluminava para aquela aparição radiosa. E ela tomava todo o espaço, e só ela avultava e vivia, como entre os acessórios apenas indicados de um quadro a figura principal. Elástica e flexível como um junco ao vento, saltava sem cessar na lânguida cadência de uma música sem som. Torcendo-se em requebros estudados, correndo todas as posições acadêmicas, ela improvisava na plástica da carne variações infinitas, sempre novas, cambiantes inefáveis, sobre o tema vulgaríssimo da sexualidade em delírio. Grande artista que era! Por fim, como um acorde final, vibrante, ela estacou na postura extática do modelo, levemente dobrada sobre a esquerda, a perna direita livre, torcendo alto o tirso engrinaldado sobro os seios eretos e a cabeça descabida para traz, com a boca entreaberta e os olhos pesados de languidez, na amorosa oferenda ao deus novo, feminil, ao louro Baco, ao sírio Dionisos.

O Comandante quis ser Dionisos. Mas despertou.

E o amargor de não possuir a estatueta idealizada no sonho envenenou-lhe a vida daí por diante. Comprou figuras parecidas, mandou fazer bacantes, estimulou a imaginação de mais de um escultor: só teve decepções.

Perdei a alegria de viver, abandonou as suas coleções, tornou-se misantropo pelo incontentamento de uma ambição que sentia ilegítima.

Como misantropo, evitou os amigos, Van Doylen inclusive. Para com esse o constrangimento era como de humilhação e de vergonha. Por isso, quando soube que ele estava doente, não foi visitá-lo. Disseram-lhe que tísico, e ele levantou os ombros, parecendo indiferente.

Indiferente, não: dolorosamente perturbado. Lembrava-se de que o amigo não acreditara nos protestos que lhe fizera, de não querer a sua morte por preço da estatueta. Agora não poderia ir vê-lo, para que o moribundo não
pensasse que ele era o herdeiro cobiçoso indo espiar-lhe a agonia.

E, atribuladamente indeciso, ia e vinha nas suas viagens mensais, recebendo notícias cada vez piores do doente. Por fim, com atraso de oito dias, voltando de uma viagem de mau mar, demoras e contratempos, deram-lhe recado que o Dr. Vau Doylen lhe queria falar, antes de morrer.

Acudiu pressuroso. Ia resgatar a sua ingratidão e desamor com toda a exuberância do arrependimento e do afeto, que lhe brotava dos lábios em palavras generosamente sentidas.

Era tarde, porém. O velho colecionador, que se linha feito transportar para o meio dos seus nus, morria vagarosamente na suprema contemplação solitária daquilo que tinha sido a vida da sua vida, resumindo sensações, esgotando tudo em um longo olhar sedento, sofregamente, como quem bebe a derradeira laça. Entretanto, quando viu aproximar-se o único que com ele partilhara dos mesmos ideais, porque a rivalidade ainda é uma comunhão no desejo, ele teve um sorriso de alegria e entendeu o braço tremulo para tomar a Bacante, que lhe estava ao alcance, e depositar-lha nas mãos. Mas o esforço foi vão. A mão vacilante só pôde agarrar a estátua e suspendê-la pelo tirso. Depois, um sacudimento convulso, de impotente... e ei-la por terra, em pedaços, a esplendida Bacante dos desejos!

O Comandante teve um só grito, um clamor, duas palavras de ódio para exprimir a sua suspeita:

— Oh! egoísta infame!...

Os que acudiram ao grito, o encontraram prostrado sobre os fragmentos de barro, aos pés de Van Doylen, que expirava, levando para além-mundo o espanto desta cena final do drama da mais terrível cobiça que pode cancerar um coração.

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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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