William Styron Shadrach
“Uma manhã em
Tidewater”
(Editora Rocco - 1997)
(Editora Rocco - 1997)
É
o próprio William Styron quem explica ao leitor a natureza dessa reunião de
três novelas:
“Cada
um destes relatos espelha a experiência do autor aos vinte, dez e treze anos de
idade. As novelas compreendem uma reconstrução imaginativa de eventos reais e
estão ligadas por uma cadeia de lembranças.
São
reminiscências de um único lugar: Tidewater, na Virginia dos anos 30. Era uma
região ocupada com os preparativos para a guerra. Não se tratava da lendária
Velha Virginia, pacata, mas parte do movimentado Novo Sul, onde a indústria e a
presença de militares começavam a transgredir os limites do jeito bucólico de
viver.
Por
ironia, tal intromissão, sem dúvida, ajudou muitas pessoas, brancas e negras, a
sobreviverem aos piores momentos da Grande Depressão”.
São
três novelas: “Dia L”, “Shadrach” e “Uma manhã em Tidewater”, que dá título ao
volume. O mais impressionante desses relatos é sem dúvida o que retrata a
figura de “Shadrach”. Vamos mergulhar na experiência desse estranho
personagem...
Como
se viu no prefácio, é em “Shadrach” que William Styron relata a estranha e
inesquecível experiência que sobreviveu em sua memória de dez anos de idade:
“Meu
décimo verão na Terra, no ano de 1935, jamais deixará meus pensamentos, por
causa de Shadrach e da maneira como iluminou e escureceu minha vida, então, e
desde então. Ele apareceu como se saísse de lugar algum, chegando no meio da
tarde do vilarejo onde cresci em Tidewater, Virgínia. Ele era uma aparição
negra de uma antiguidade extraordinária, débil e paralítico, desdentado e
sorridente, uma caricatura de uma caricatura numa época em que todo negro
ancestral, rangente, posto de lado, era (aos olhos da sociedade, não apenas
para os olhos de um pequeno garoto branco sulista) uma mistura de Stepin
Fetchit e Uncle Remus.”
NOTAS:
[Stepin
Fetchit (1902-1985) – Ator negro, de controversa atuação, mas talentoso, cujo
sucesso o fez milionário.
Uncle
Remus – Um dos muitos “Tios” negros que permeiam o folclore norte-americano.
Uncle Remus ganhou vida em mãos de Joel Chandler Harris (1848-1908),
criador de histórias que o fizeram famoso. Entre nós, porém, o “Tio” mais
conhecido é Uncle Thomas, o Pai Tomás do romance e filme “A cabana do Pai
Tomás”).
“Naquele dia, quando pareceu materializar-se diante de nós, quase como se houvesse surgido do nada, nós jogávamos bola de gude. (...) Assim, entre outras coisas, minha lembrança de Shadrach está presa à sensação de cristal lapidado das bolas de gude e o cheiro da terra fria e nua debaixo de um plátano, num dia quente, abrasante (...).”
“Naquele dia, quando pareceu materializar-se diante de nós, quase como se houvesse surgido do nada, nós jogávamos bola de gude. (...) Assim, entre outras coisas, minha lembrança de Shadrach está presa à sensação de cristal lapidado das bolas de gude e o cheiro da terra fria e nua debaixo de um plátano, num dia quente, abrasante (...).”
“Shadrach
apareceu então. Nós percebemos de alguma maneira sua presença, olhamos para
cima e o vimos ali. Não o tínhamos ouvido se aproximar, chegara silenciosa e
portentosamente como se tivesse descido em algum aparato celestial operado por
mãos invisíveis. Era estarrecedoramente preto. Nunca vira um negro com esse
matiz impenetrável: era uma negritude de tamanha intensidade que não refletia
qualquer luz, conseguindo uma obliteração virtual dos traços faciais e
adquirindo uma nuance misteriosa que tinha o cinza azulado das cinzas.
Debruçado no pedaço de uma porta, estava sorrindo para nós da carroceria enferrujada
de um Pierce-Arrow aos pedaços.
NOTAS:
[Pierce-Arrow
– Automóveis fabricados em Buffalo (NY) entre 1901 e 1938]
“Era um sorriso abençoado que desvelava gengivas vermelhas mortas, os cotocos amarelados de dois dentes e uma ágil língua molhada. Por um bom momento não disse nada, mas, continuando a sorrir, esfregando contente a virilha com uma mão entortada e enrugada pela idade: os ossos se mexiam por debaixo da pele preta, mostrando claramente o desenho do esqueleto. Com sua outra mão, segurava firmemente um cajado.
“Foi
quando me vi perdendo a respiração maravilhado com a sua idade, que era com
certeza incomensurável. Ele parecia mais velho que todos os patriarcas do
Genesis cujos nomes inundaram minha memória numa litania na escola dominical:
Lameque, Noé, Enoque e aquele sempiterno fóssil judeu, Matusalém.”
Styron
maneja a memória como se fosse ficção. Para dar suporte à figura de Shadrach
ele inclui na lembrança os seus vizinhos – os Dabneys – típica família sulista,
residente numa chácara, composta de quatro meninas “louras, cheirosas com seus
perfumes Woolworth, viçosas, com seus traseiros luxuriantemente cheios. (...)
Ah, aquelas belezas desaparecidas...”
NOTAS:
[Perfumes
Woolworth-Referência aos produtos que levavam a marca da F.
W. Woolworth Co., fundada por Frank W. Woolworth
(1852-1919), cujos estabelecimentos resistiram aos modernos shoppings até 1997,
quando sucumbiu ao dinossauro Wal-Mart]
Por outro lado, a família incluía três meninos (três “Toupeiras” por apelido) dos quais o mais jovem deles, Toupeira Pequena, era o companheiro de brincadeiras e jogos que vinha à lembrança.
“Era
com o mais jovem dos três Toupeiras com quem estava jogando bola de gude,
quando Shadrach fez sua aparição. Toupeira Pequena era uma criança de uma
feiúra assombrosa, compartilhando com seus irmãos uma mistura de olhos saltados
devido à tireóide, nariz amassado, parecendo uma colher, e uma mandíbula
saliente a qual (falo em retrospectiva), poderia corresponder graciosamente à
descrição de Cesare Lombroso de fisionomia criminosa.”
NOTAS:
[O
controverso médico italiano Cesare Lombroso (1835-1909), cujas teorias sobre
criminosos se iniciaram com a publicação de “O homem delinquente” em 1876. As
ideias de Lombroso, no entanto, influenciaram e modernizaram a polícia científica.]
Com “Uma manhã em Tidewater” William Styron honra a tradição das letras norte-americanas em que sobressaem grandes contistas, como Edgar Allan Poe, Mark Twain, Sherwood Anderson, William Saroyan, Barry Hannah, J. D. Salinger, Ernest Hemingway, uma lista enorme, sem fim. Não devemos esquecer que a literatura brasileira tem excelentes contistas, todos à altura dos maiores nomes do conto universal.
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