Vocação contrariada
Mas vás destinais à religião aquele que
nasceu para cingir a espada, e fazeis um rei de quem devia ser missionário:
assim é que marchais fora do caminho.
Dante
— Paraíso —6:VIII.
Andava
na voga quem tinha a sua filharada convertê-la em chusma de padrecas.
Não
havia outra carreira que tanto seduzisse; as esposas, em sentindo-se grávidas,
principiavam a pedir a Deus um varão, que assim tinham garantidas suas
aspirações: um filho padre. Era o ideal de todas as mulheres. Vejamos de uma.
Adélia,
que havia um ano apenas trocara os ócios de solteira pelo ménage da esposa,
beijava de um modo insaciável, sacudindo-o como louca entre as mãos, o seu
risonho nenê, um adorável entezinho rotundo e polposo, cujos olhos pareciam
duas estrelas cintilantes de alegria e cujos labiosinhos apenas deixavam
escapar com algum fio de bala o instintivo brnu
das crianças.
—
Este menino há de ser coisa um dia, dizia entusiasmada a mãe do Artur.
—
E Deus que me conceda anos de vida e saúde para vê-lo, secunda-a a avó. O pai:
—
Há de ser um médico distinto ou então um engenheiro.
—
Tem paciência, atalhava Adélia que primava pelo seu espírito de devoção, eu o
quero ver no altar, como ministro da Igreja. E há lá porventura mais bonita
posição? Que glória não é para uma mãe ver seu filho ordenado!...
—
Não vejo tanta... Enfim, ele decidirá... conforme a inclinação que mostrar...
Com
apenas variantes, acrescendo por vezes um pouco mais de calor e entusiasmo,
devido a alguns cálices de velho Porto, era essa a forma das palestras em que à
mesa, durante as refeições, discutia-se o futuro do Artur.
Compreende-se
quanto desvantajosa devia ser a situação do fleumático esposo, único
representante ali do elemento pensador e prudente, a pretender dissuadir as
duas do seu propósito.
—
O menino há de ser engenheiro, gritou ele um dia um pouco mais alto que de
costume.
Boca
que tal disseste... As duas línguas caíram como dois raios, fulminando a
asserção do pobre homem; eram duas víboras a morder, a fustigar aqui e ali, a
torto e a direito, a irreligião do Francisco e a classe dos engenheiros, a
impiedade dos homens da época e o governo que condenou os bispos.
A
velha já um tanto hipocondríaca lembrava-se das chagas de Nosso Senhor Jesus
Cristo e por elas jurava que o neto seria padre.
Como
Artur crescia e requeria outros cuidados, foi mister pôr ponto a essas
discussões. Não foi todavia senão depois de um tiroteio de objeções mais pias
que razoáveis, porém incessantes, que o bom do Francisco rendeu-se à discrição.
Afinal ele não era homem para lutas, e jamais com sua mulher e sua sogra, que
apesar de muito dedicada à observância dos mandamentos divinos não poupava o
seu próximo na pessoa do genro.
Ficou
pois assentado: o menino, apenas atingisse a idade de oito anos, entraria para
o seminário de preparatórios.
Entretanto
os anos transcorriam; a criança tinha um crescimento espantoso, ao mesmo tempo
que manifestava precoce desenvolvimento de certas faculdades do espírito. Não
era mais o gordo e inocente nenê de outrora; perdera aquela rotundidade de
formas, aquela fartura de bochechas. Às carnes flácidas e muito frescas sucedia
uma musculatura mais consistente, posto que ainda tenra. Não mais engatinhava,
andava; não só andava, corria e saltava como um cabrito. O entezinho alegre e
rechonchudo desdobrava-se em um rapazete nervoso, magro e um tanto carrancudo,
engalispando-se à menor contrariedade. Traquinas e buliçoso, já merecia de
quando em quando alguma palmadinha da extremosa mamã e produzia acessos de mau
humor no pachorrento pai.
Isso
contrariava seriamente a avó, que desde então viu-se obrigada a iniciar um
curso de preleções pedagógicas, no intuito de bem dirigir o espírito do neto.
Consistiam essas preleções em boa dose de conselhos e meia dúzia de histórias
em que nunca faltava um menino que morreu por ser mal ouvido e um padre que
pelo muito morigerado que o foi em vida ficou santo depois de morto. Com essas
imbecilizantes historietas acreditava a velha que corrigiria o traquinas e
formaria o beato. Não durou muito o engano. O pequenote acolhia os contos da
avó com carantonhas e risadas à tripa forra.
Efetivamente,
era malhar em ferro frio. E sabe Deus com que amargos de boca punha-se ela a
considerar numas palavras que lera certo dia no "Emílio" de Rousseau:
— tudo é bom ao sair das mãos do Criador, tudo degenera entre as mãos dos
homens. A revelhusca pedagoga esteve quase a resignar-se às palavras do
francês, quando uma nova energia trouxe-lhe à alma os efeitos do regime
analéptico nos convalescentes, E disse de si para si: — aquilo que entre as
mãos dos homens degenera pode entre as mãos da mulher regenerar-se.
Daí
por diante tão desabrido era o seu proceder com o Artur, que a própria Adélia
mais de uma vez julgou-se lesada nas suas atribuições de mãe.
Mas
a natureza, afrontada com semelhantes violências, insultada por aquelas
enrilhadas mãos que pretendiam torcê-la ao seu despótico querer, manifestava-se
mais e mais imperiosa, obstinada e indócil. Torturavam-na; ela vingava-se,
reagindo como um cavalo desembestado. Uma prova de que a natureza corrige-se, chega-se
mesmo a dobrá-la, mas aos poucos, com jeito, como quem endireita o ramo torto
de uma planta; um tanto como o carpinteiro empena a tábua para acomodá-la ao
bojo da embarcação: uma flexão agora, outra logo, o fogo e a água concorrendo
para o efeito desejado. Processo análogo devia seguir o educador, empregando em
iguais proporções o rigor e a amenidade. Educa-se do mesmo modo que se
convence. O melhor sistema de educar é uma cópia do melhor meio de convencer. A
boa educação é para as índoles rebeldes o que é a persuasão para certa espécie
de incrédulos. Nem se desarraigam maus instintos como se foram cancros;
matam-se lentamente com a palavra e com o exemplo, que são os bisturis dos
vícios.
Essas
reflexões vêm a propósito do meio posto em prática pela avó do Artur, a fim de
chamá-lo à regra do bom proceder.
Na
impaciência pelos resultados do seu ensinamento, querendo à viva força chamar o
gosto do neto para o sagrado e ao mesmo tempo receando nele um sacerdote capaz
do — não sou padre, não sou nada — achou a boa da velha que o meio eficaz de
encaminhar a vocação do menino e convencê-lo de que devia ser padre era
recorrer à lógica das cipoadas. Assim toda a vez que o Artur desacertava as
benzeduras ou destoava da norma de conduta que lhe era traçada, ela tocava-lhe
o ripanço de doer.
Foi
com esses argumentos a fortiori que o
desventurado viu certo dia aziago fecharem-se às suas costas as portas pesadas
do seminário.
Aí,
é fácil prever, foi sempre o estudante madraço e calaceiro; emperrado e triste
nas aulas, desaforado no recreio. Amiudamente repreendido, mal se podia conter;
era um doido dentro da camisola de força. Livros e mais livros. O pai já não
podia... Aquilo não era estudante, era uma traça.
Arrastado
por empenhos, chegou ao seminário maior, onde mostrou mais aplicação ao estudo,
especialmente à filosofia.
Todavia
não lhe cheirando o Santo Agostinho, muniu-se clandestinamente doutros
compêndios de filosofia mais livre, menos atascada na escolástica dos padres.
Estudou muito, conseguindo depois do exame a seguinte observação do mestre:
"Mais ortodoxia, meu moço; mais restrições." No exame de moral, disse
que a honra era um óbice que tolhia o passo ao livre arbítrio. Era fazer jus,
com demasiado merecimento, a um reverendíssimo r.
Todavia
isso não desacoroçoou a avó desse livre-pensador que vestia sotaina, muito
embora a prevenção com que para diante o olhavam os padres-mestres
desconfiados.
A
palavra do reitor pôs termo às desconfianças, e o Artur foi galgando as ordens
menores e chegou ao último grau hierárquico de receber a tonsura presbiteral e
poder enfiar a casula.
Que
alegrão para os pais no dia em que o reverendo Artur dava a mão a beijar aos
fiéis, depois de ter celebrado a missa nova...
—
Agora agradece-me a mim, dizia no mesmo dia, todos à mesa, a avó do reverendo,
agradece-me a posição cm que te achas hoje.
—
Muito ser-lhe-ei reconhecido, minha avó — obtempera ele, empinando o terceiro
copo de excelente Figueira.
E
saboreava aquilo com aviamento de garganta e estalidos de língua tais, que não
parecia uma criatura obrigada a usar do vinho no sacrifício da missa, como puro
sangue de Cristo.
Até
aqui, porém, ainda a missa não chegou a Santos. No dia seguinte o jovem
tonsurado em lugar de dirigir-se ao palácio arquiepiscopal, foi ao espetáculo.
Daí a dias achou-se em um baile onde dançou muito com toda galanteria de um
profano.
E
prosseguiu numa série de deslizes, intemperanças e coisas que não praticaria o
mais levantadiço senhor de Sade.
—
Que escândalo! murmuravam todos.
—
Que doidices! clamavam Adélia e a mãe.
Mas
o prelado, pouco atencioso para com essa espécie de doidos, respondeu com uma
suspensão imediata.
O
padre, achando a ocasião azada, atirou para um lado a batina, deixou
encabelar-se a coroa e caiu no século.
Dizem
por aí que anda a representar comédias não sei em que remota província. E até
um seu antigo colega de seminário afirma ter lido em um jornal, há tempos, que
o Artur estreara-se na comédia Os maçons
e o bispo.
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Digitalização, pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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