Vincent
Van Gogh: Cartas a Theo
“Cartas a
Théo
(L&PM Pocket - 2007)
(L&PM Pocket - 2007)
Vocês certamente conhecem aqueles prefácios feitos
para irritar o leitor. Pois a editora L&PM, nesta nova edição de “Cartas a
Theo”, dá uma contribuição ao tema, num prefácio que não está sequer assinado.
Não pelo entrecho em si: o prefácio trata de resumir a vida do pintor e sua
relação fraternal e amorosa com o irmão Theodore van Gogh, um vínculo cuja
importância na vida de Vincent mostrou-se transcendental. No entanto, lá pelas
tantas, o prefaciador resolve extrapolar e – vaidade das vaidades! – parte para
criticar a escrita de van Gogh.
Ora, em princípio pergunta-se: a correspondência é uma
obra literária passível de crítica? Fica logo claro que não é – quem escreve
uma carta está transmitindo uma palavra pessoal, um sentimento íntimo, algo que
não deve ultrapassar as margens do papel, nem as fronteiras da privacidade. São
preocupações imediatas, muitas das quais ganham vida e morrem no mesmo instante
que a comunicação se completa. Uma carta não é escrita com a preocupação
literária e mesmo a maioria daquelas que comportam essa intenção morre inédita,
transformada em pó pela corrosão fatal do tempo.
Não obstante o prefácio concorrer para a visão da vida
e da comoção pela qual van Gogh passou, lutando para ser reconhecido – não por
seus contemporâneos – mas por si mesmo (não se trata de um sofisma), lá nos
entremeios vem o tranco:
“Como nas cartas anteriores, escritas em holandês, seu
texto continua duro, ruim. Este grande
pintor jamais teve o dom da palavra. Em seu estilo entrecortado e reticente,
ele fala de suas idas e vindas, de seu método de trabalho, das características
da região, do grande sol, dos hábitos das pessoas, de suas leituras, de sua
casa e finalmente de seu sonho de fundar com os amigos um ateliê comum. Nelas
também seguimos o despertar de uma crescente exaltação, sob a ação de um sol
ardente”.
É ou não é um tratamento irritante? Num mesmo
parágrafo o prefaciador condena o “grande pintor [que] jamais teve o dom da
palavra” e logo em seguida ignora que a matéria-prima de um pintor deve ser a
pintura e não a escritura! Sem dúvida uma típica atitude ultracrepidária...
Vocês certamente se lembram daquela história que redundou na célebre frase:
“Sapateiro, não vá além da sandália”, alusão feita ao incidente que, segundo
Plínio, o Velho ocorreu com Apeles, famoso pintor da Grécia.
Apeles, que costumava expor suas pinturas na porta do
ateliê para observar a reação dos passantes, notou que um sapateiro examinava o
pé de uma figura. Ao indagar-lhe o que tanto atraiu sua atenção, foi avisado
que tinha se enganado quanto à fivela da sandália. Apeles agradeceu o reparo e
apressou-se a corrigir o erro. Porém, o sapateiro não conteve a vaidade e
começou a fazer outras censuras ao quadro, mas Apeles o criticou com a frase
que se tornou lapidar.
Não vamos exagerar com o ilustre prefaciador, posto
que ele mesmo se redime ao longo da introdução, contrapondo textos que realizam
interessantes efeitos sobre a vida de van Gogh. Mas o que exigir que um pintor
escreva? Um romance? Peça a um padeiro que escreva sobre sua profissão e
veremos que o exercício de fazer um pão se tornará uma obra de arte. Pois van
Gogh consegue transformar as “Cartas a Theo” numa verdadeira universidade sobre
a arte de pintar. E aqui o que menos se vê é a descrição da técnica apurada,
mas a excelência do primado de ser artista desde a raiz até ao fruto.
Van Gogh trata de exercitar todas as sensações que
antecedem uma obra de arte, analisar todas as tentações que a facilidade da
primeira impressão traz, as impossibilidades do artista que se abstém de
rabiscar, iludindo-o sobre a realização em si – a tudo isso ele resiste, não se
deixa enganar, parte para os estudos, alguns dos quais atesta que poderiam já
ser apresentados como uma obra de arte. Mas van Gogh resiste e resiste. Procura
a cor, discute sobre a mistura, trata da perspectiva, dos tons, busca, antes de
tudo, educar o olhar para a arte de pintar como um compositor educa o ouvidos
para as sonoridades.
“Vêem-se aqui, ao redor dos jardins, dos campos e das
lavouras, aquelas sebes de espinho negras, como em nossa região no Brabante se
vêem as matas de corte e pequenos bosques de carvalho, ou na Holanda, cercas de
troncos de salgueiro. Com a neve destes últimos dias, isto dava o efeito de
escrituras sobre papel branco, como as páginas do Evangelho...”
Isso é quase poesia, diria, isso é poesia. Pois, como
achar que o homem não tinha o dom da palavra? Podemos dizer que van Gogh é um
padeiro das cores?
“Quando misturo vermelho e verde até chegar ao verde
avermelhado ou vermelho esverdeado, obtenho, acrescentando o branco, o
verde-rosa ou o rosa esverdeado. E, se você quiser, acrescentando o preto,
obtenho o verde-castanho, ou o castanho esverdeado. Está claro ou não?”
Van Gogh discorre com o irmão a participação dos
pintores antigos na história da arte e inclui os contemporâneos entre aqueles
que influenciaram seu trabalho. Com o irmão ele discute a cor, o preto, o
branco, a dificuldade inicial que tem em traduzir para a tela o pensamento e a
visão da paisagem extemporânea. Essa mesma dificuldade que tem o escritor, o
poeta, em transpor para o papel toda a gama de imagens que correu o cérebro em
busca da frase perfeita.
Como disse van Gogh na última carta:
“Pois é, realmente [os pintores] só podemos falar através de nossos quadros. (...) em
meu próprio trabalho arrisco a vida e nele minha razão se arruinou em parte.”
Deixar de lado as discussões fúteis, comprar, ler e
andar a descobrir o interior mais profundo desse pintor que não teve o dom da
palavra, mas que em 652 cartas que escreveu deixou um legado que nenhum pintor
de nenhuma época pode recusar a aceitar, tantas são as informações, técnicas,
estéticas, éticas e morais sobre as quais trafegam todas as artes, inclusive a
pintura.
“Cartas a Theo” traz ainda um importante índice cronológico
e um glossário minucioso, adendos que configuram todos os indícios que negam a
fama de gênio e louco – e vice versa – com que a figura de Vincent van Gogh
chegou até nós, se é que se pode chamar de gênio um pintor que avançou o seu
tempo e chamar de louco alguém cuja lucidez se manteve até nos últimos momentos
de vida.
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