Tique-taque
Descíamos,
conversando, a praia de Botafogo. Vínhamos de uma visita ao Hospício de
Alienados e, naturalmente, a conversa recordava os episódios da visão dolorosa
e trágica que nos enchera os olhos durante o dia.
Éramos
três: o Lery e o Bráulio, estudantes de medicina, em vésperas de doutoramento,
e eu. Eles dois, internos no Hospício, acostumados àquele espetáculo cotidiano
durante anos, falavam de tudo com a maior naturalidade. Citavam loucuras
terríveis e estranhas, cuja narração bastava para dar calafrios de horror, considerando-as
a título, simplesmente, de belos casos patológicos, dignos de estudo, de que
tratavam sem a menor emoção.
Quanto a mim, o que me impressionava mais
vivamente não eram as formas violentas do desequilíbrio
mental, as fúrias, os gritos, os delírios que exigem a segurança das casas
fortes; eram, pelo contrário, os pequenos desvios da razão, as alucinações
mansas e calmas, que obstinam o espírito em direção errada, só em um ponto, e
deixam em tudo mais a integridade intelectual.
Às
vezes, ao passar, um louco chegava-se a mim e segredava-me, em voz natural e
firme, cheia de convicção — a convicção que faz os grandes heroísmos — alguma
bizarra extravagância, concluindo por queixar-se de que o houvessem
arbitrariamente sequestrado naquela companhia de doidos. E, para ser amável,
tinha o cuidado de
mostrar-me aqueles que na sua opinião
"estavam realmente loucos".
Durante este tempo, esses outros que o meu interlocutor apontava como verdadeiros
alienados, passavam sorrindo, com maliciosos olhares de inteligência, a
indicar-me que o único louco era ele. E instintivamente chegava-se a duvidar
da própria razão, cismando no simples desvio, no descarrilamento sutil que
basta para arredá-la do seu reto caminho.
Vínhamos
agora a pensar em tudo isto. A tarde era magnífica. O sol, já desde muito
escondido, tinha ainda pelo céu um desmaiamento de luz frouxa e indecisa, um
crepúsculo pálido e suave. O mar sussurrejava, rendando de branco a orla das ondas
pequeninas c baixas... Ã porta dos jardins, grupos de moças conversavam.
Via-se distante a casaria branca de Niterói. Na curva harmoniosa e larga da
baía, grandes navios garbosos molhavam no ar calmo os aventureiros mastros,
saudosos talvez de outras tardes distantes, de outros longínquos crepúsculos.
A entrada da barra, aberta lá ao longe como uma porta escancarada, era uma
evocação dolente da tristeza das partidas... Tudo enfim naquela hora de
infinita mansidão assumia um tom doce e meigo, uma brandura anêmica de
convalescença...
Aos poucos a conversa tinha ido afrouxando.
Havia largos momentos em que nos calávamos
todos, sentindo que a sugestão daquela tristeza ambiente amortecia em nós a
vivacidade das réplicas.
Falávamos
lentamente, em voz mais baixa. E a memória, conformando-se à meiguice triste da
hora, evocava tão somente a lembrança de certas loucuras de uma tristeza
infinitamente meiga.
Havia entre outros, no Hospício, um rapaz que todos nós conhecêramos em perfeita saúde. Era um
tipo expansivo e jovial, sempre alegre, sempre disposto à troça e à galhofa. De
repente, porém, começou a fazer-se retraído e triste, a tornar-se tão áspero e
insociável, que foi quase sem surpresa que lhe vimos o nome em uma local
gazeta, como autor de uma tentativa de assassinato.
No correr do processo verificou-se a causa
do crime. Era o delírio de perseguições.
Uma alucinação
persistente fazia-lhe ouvir alguém que o injuriava. Por vezes, em um transeunte
que passava falando, ele julgava reconhecer a mesma voz — e vinha-lhe ímpetos
de matar o indivíduo. Afinal, um belo dia, não pôde mais conter-se: atirou-se a
um pobre homem que conversava e tentou esganá-lo entre os dedos convulsos.
Foi a custo que livraram a inocente vítima, enquanto o poviléu bestial rugia gritos de mata! contra o agressor, que da prisão passou rapidamente para o
hospício. Aí, a loucura seguindo a sua marcha natural, ele começava a evoluir
ao delírio das grandezas. Quando o visitamos nesse dia, tinha na cabeça um
chapéu armado de papel, atravessado napoleonicamente e, de braços cruzados,
com os lábios franzidos em atitude olímpica de desprezo, fitava-nos com o mais
requintado desdém, nem sequer se dignando falar.
Saímos com
um pesar extremo a compungir-nos. Em pleno vigor de mocidade e talento, era de
fato infinitamente triste ver aquele soçobro de um futuro, que podia ser tão
grande e tão belo!
Como eu acabasse de falar nisto, o Bráulio redarguiu:
—
É verdade. Há, como esse, muitos casos igualmente tristes. Eu, porém, que já
vou perdendo a excessiva sensibilidade que tu mostras, tenho ainda um
confrangimento íntimo ao lembrar o fato que mais me impressionou, depois que
estou trabalhando no Hospício... Não creias — continuou depois de uma pausa —
que fosse alguma coisa extravagante e espetaculosa. Pelo contrário: tudo o que
possa haver de mais calmo, de menos violento... Calcula por ti mesmo... Tratava-se
de uma moça de dezenove anos, inteligente e formosa, — tão formosa que eu estou
romantizando o episódio.
"Pois bem: essa moça casou-se, passou uma vida deliciosa durante um ano, e, de súbito, na
ocasião do primeiro parto, após uma febre puerperal, endoideceu."
A voz do Bráulio
fizera-se grave. Tínhamos chegado ao extremo da praia. Voltamos. Era já noite.
No azul, que a claridade da lua minguante desbotava tristemente, algumas
estrelas iam surgindo. Subimos de novo por junto do paredão. A maré crescera aos poucos, as vagas eram mais fortes,
esboroavam-se sobre as pedras com um clamor mais alto, mais plangente...
—
Endoideceu — prosseguiu o narrador — passou dois meses em um delírio
violentíssimo e, de repente, ao cabo desse tempo, aquietou-se na mais profunda
calma. Passava os dias sentada a um canto da célula em que estava. Todo o seu
corpo absolutamente inerte parecia inteiriçado pela catalepsia.
O olhar — uns
grandes olhos negros, muito brilhantes — fixava-se obstinadamente no espaço,
com a expressão indefinível de quem, muito abstraio, olha sem ver... Apenas
naquela estátua os lábios moviam-se com uma contração regular e monótona,
balbuciando qualquer coisa que se não podia ouvir. Às perguntas não respondia;
tão somente os lábios pareciam redizer infatigavelmente a mesma palavra, sempre
repetida. De uma vez, porém, ela teve uma nova crise. Eu estava de serviço; fui
vê-la. Os gritos, as convulsões, os altos lamentos foram cessando aos poucos e
passando a uma fase de prantos. Depois, como me visse carinhoso ao seu lado,
teve uma expansão inesperada e começou a dirigir-me a palavra com uma
volubilidade extrema e febril. Preveniu-me logo de que era a última vez que
falaria a quem quer que fosse e explicou-me então o misterioso balbucio que a
ocupava.
Disse-me que, certa vez, no meio de um delírio, notando os saltos desordenados do coração e sentindo-o palpitar
febrilmente, como um pássaro colhido na mão que se esforça por fugir, tivera
pena do pobrezinho. Lembrou que o cativo músculo pulsava assim ininterruptamente
desde as primeiras manifestações da existência até ao derradeiro momento da
agonia, sem uma pausa, sem um descanso.
Era o forçado
eterno, o grilheta, o galé da vida, sempre a laborar, sempre a bater...
Tomou-se de pena pelo infeliz. Figurava-o cansado, ofegante, querendo parar
enfim, enfim descansar — e tangido inexoravelmente pela onda do sangue, sempre
a subir, sempre a descer: trabalho eterno de Sísifo! E
então, não desejando mais agitar-se em grandes movimentos, porque isso fazia
sofrer o pobrezinho, fez o íntimo voto de vê-lo aquietar-se e parar. Desde essa
época começou a vigiar-lhe o constante tique-taque.
Era esta a palavra que seus lábios repetiam, incessantemente. Procurava
dizê-la cada vez mais lentamente, para que os batimentos cardíacos se fossem
conformando com essa lentidão provocada de ritmo.
Procurei desconvencê-la. Disse-lhe que o coração era um dos músculos que escapam ao poder
da vontade; acumulei argumentos para prová-lo... Tudo foi em vão. Ela cessou a
conversa, sorrindo com um sorriso de dúvida e obstinação e recomeçou o tique-taque. Examinei-lhe o pulso; tinha
um latejar forte e normal. Não era possível que o alterasse tão facilmente. Daí
por diante, metida a um canto da célula, a pobre louca continuou o seu fadário.
Correram dias, sem que eu volvesse a falar-lhe. Ao cabo de um mês, certa
ocasião em que eu a fitava, ela estendeu-me o pulso. Tomei-o de novo e tive um
gesto de visível assombro, enquanto a pobre rapariga sorria triunfantemente. De
fato, o latejar tinha diminuído de um modo sensível. Era mais fraco e mais
demorado. Quis de novo despersuadi-la e de novo foi inútil todo o meu esforço.
Ficou-se a repetir mecanicamente o eterno tique-taque,
já muito mais brando.
Não sei,
atalhou o Bráulio, pode parecer tola esta confissão, mas eu nunca saberei
dizer, vendo cada dia tantas outras loucas igualmente moças e formosas, porque
só diante daquela me enchia o coração um confrangimento de alma verdadeiramente
doloroso. Por fim, o tique-taque perseguia-me.
Cheguei a acreditar que enlouquecesse também. Aquele ruído monótono enchia-me
os ouvidos: a toda hora, de ouvir a louca repeti-lo, eu percebia
incessantemente o tique-taque oscilar
dentro de mim; e os meus lábios moviam-se às vezes, inconscientes,
pronunciando as duas sílabas, sempre as mesmas... Era já uma obsessão tamanha,
que me fazia evitar a vizinhança da doente. Nem de longe a fitava. Os seus
grandes olhos negros, calmos e meigos como um lago deserto à
hora morta do crepúsculo, pareciam sorver-me a razão, convidar-me à loucura,
dizer-me que esquecesse as preocupações mesquinhas da vida por um sonho
qualquer — fosse mesmo o estéril desejo de fazer parar o coração... E assim eu
procurava não passar perto dela.
Mas,
de uma vez em que não me pude furtar à exigência do serviço — fazia já três
meses que ela estava recolhida — a doida sorriu-me de novo, estendendo o braço descarnado,
sem que me fosse possível recusar. Que assombro de pertinácia! Custou-me a
achar-lhe o pulso. Era um bater flácido, filiforme, sem vigor, largamente
espaçado, quase a perder-se...
A louca não
interrompia o tique-taque já então
extremamente retardado, como de um relógio a parar... "Nem eu pude
falar-lhe; as palavras morreram-me na garganta. Apenas o olhar com que a fitei
foi tão triste, que ela baixou os olhos... Passei adiante sem ouvir mais nada,
além do implacável tique-taque que me
cantava aos ouvidos...
Quando, na manhã seguinte, a enfermeira de serviço veio contar-me as ocorrências da
noite, narrou-me que na véspera, antes de deitar-se, a moça me mandara este
simples recado: "Diga-lhe adeus em meu nome... Ele vai parar." A enfermeira transmitiu-me o que ouvira, sem
ligar a menor importância. Não havia compreendido. Corri à célula: encontrei
morta a pobre doida. Tinha o rosto banhado de um sorriso meigo de vitória... O
eterno tique-taque parara enfim nos
seus lábios desbotados... Palpei-lhe o coração: o músculo grilheta, o forçado
da vida, descansara afinal! Ela estava com os grandes olhos negros
desmesuradamente abertos, fitando o espaço... Pobre louca!
Quando o Bráulio
concluiu, nós nos achávamos de volta, quase de novo em frente do Hospício. O
mar batia as pedras com força, plangitivo e triste...
Encostado à
grade de uma das janelas, sacudindo-a furiosamente, um doido cortou o rumor das
vagas com um uivo gutural. De vários pontos, fúnebres e tristes, outros lhes
responderam...
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Digitalização, pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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