A princípio,
logo depois da morte do pai, um velho rendeiro de Monte Alegre, que lhes
deixara um pecúlio, — amaríssimo fruto dos seus labores agrícolas — os dois
irmãos tinham bolsa comum, de onde o mais novo, Sinfrônio, retirava grossas
quantias, a despeito de Agripa, que era um tostado trabalhador dos campos.
Como estivesse quase em ruínas o casarão pesado de Monte Alegre, em que haviam nascido aqueles
dois irmãos de índoles tão singularmente opostas, deliberou o mais velho
mudarem-se ambos para as terras úberes de Carapucema, onde as águas
fertilizantes corriam sempre, inundando as várzeas pelo tempo do inverno.
Nessa quinta pitoresca, ensombrada de cajazeiras antigas e reconhecidamente famosa pela feracidade da gleba,
havia um sobrado chato, quadrangular, assentando a sua velhice grave num
cômoro largo, rodeado de gameleiras. Foi aí que se instalaram os dois irmãos,
no começo cálido de um estio muito azul, quando as cigarras começaram a zinir,
afogando num como torpor sonoro a melancolia bucólica daqueles ermos.
Sinfrônio
escolheu para habitar um quarto de sótão, com duas janelas que davam para o
nascente, em cujos poiais lutavam agitados pelo vento os ramos altos de uma
velha tamarineira, onde vinham grazinar xexéus boêmios nas horas quentes do
dia.
Agripa, madrugador utilitário, examinando com o seu olho calculista os arredores da casa,
reputou excelente
para um talhão de hortaliças aquele lado da quinta, onde viçava
inutilmente a tamarineira vetusta. E, logo ao dia seguinte, levantando-se com o
sol, foi ao regato próximo, para amolar pachorrentamente, num calhau que as
águas lambiam, o seu grande machado de lenhador.
O irmão, que
também se erguera cedo, para gozar os aspectos novos da moradia, espreitou-o da
sua janela enfeitada de ramos e, pressentindo-lhe as sinistras intenções,
desceu apressado, encaminhou-se para o laborioso Agripa, que gingava de
cócoras, afiando peritamente o gume do ferro.
—
Tu, a esta hora, de pé, Sinfrônio! Caiu-te o telhado em cima ou quebraram-se-te
as cordas da tua rede?
—
Nem uma coisa nem outra, mas o dever inteligente de comunicar com estes campos
estranhos, para lhes conhecer as sombras mais densas e mais propícias ao culto
plácido da preguiça; os recantos mais silenciosos e pitorescos, onde se possa
docemente cismar, esperando com negligência o moroso dia da felicidade
perfeita.
—
Pois olha que já é tempo de te moveres, enquanto te não chega o inverno, ó
patriarca dos malandros, que sumiste o teu patrimônio e mais metade do meu no
abismo da tua indolência. Francamente, Sinfrônio, falo-te agora como teu amigo
e irmão, que te respeita as susceptibilidades do temperamento, sem te perdoar,
entretanto, essa quase inércia em que te quedas cinicamente, invocando sempre
essa "inutilidade do esforço" aprendida por teu mal nesses maus
livros que te perderam. O nosso pai morreu trabalhando e os
frutos do seu labor não só lhe aproveitaram a ele mas
também a nós, que começamos a vida" arrimados por um velho depois de
morto. Vê, pois, como é larga e frutífera a irradiação do trabalho, essa feição
moral imperecível do homem, que é uma como existência subjetiva, vinculando-o
pelo seu legado à memória dos pósteros. Acresce que o trabalho é a consolação da vida e a condição existencial de todos os seres.
Ninguém vive sem trabalhar e se tu consomes sem produzir és um ladrão da
coletividade. Vê se te fica bem esse papel de larápio, consulta a consciência
da tua dignidade ou afunda-te de vez na tua preguiça ou salva-te trabalhando. É isto o que há muito eu te queria dizer e que agora me veio aos lábios num
desafogo oportuno, quando tu passeias a tua ociosidade no mesmo sítio em que eu
me preparo para derribar, sozinho, aquela tamarineira, menos inútil do que tu,
porque ao menos frutífera, embora esterilize com as ramagens a uberdade virgem
desse terreno.
—
Pois, meu caro, disse Sinfrônio, eu começo impugnando o corte daquela árvore,
que tem para mim uma utilidade inestimável, como seja a de me fazer, no meu
quarto, uma sombra doce, nas horas mornas da canícula. Vê tu também como tudo é
relativo no mundo e como é variável a utilidade das coisas. A mesma árvore
inútil e prejudicial aos intuitos de Agripa é utilíssima e necessária aos
deleites de Sinfrônio. Assim também o trabalho. Que entendes tu por trabalho? —
A aplicação muscular a fainas estéreis de que raríssimas vezes resulta uma
compensação satisfatória, sendo que é nalguns casos um ato criminoso, de
lesa-natureza, como no premeditado exício daquela tamarineira, que não deveras
destruir porque a não podes criar?... Depois, a meditação é uma forma intensíssima de trabalho, pois que tudo se resume na
vida animal a vibração nervosa, e languidamente meditar é intensamente vibrar.
Enquanto Agripa, nas suas lutas campestres, destruindo matagais, abrindo
valas, fechando represas, ordenhando vacas e castrando chibarros, despende uma
cópia vastíssima de muscularidade, economiza mais nervos que o sibarita
Sinfrônio, consertando na sua rede a sinfonia caótica dos seus ideais. Se o trabalho serve apenas para tranquilizar
a consciência de uma certa soma de esforço que o homem deve
empregar no intuito de se achar sempre em dia com o direito de subsistir, e
dada a sua redutibilidade a uma função puramente nervosa, tanto
monta que seja muscular como intelectual, sendo que em ambos os casos é negativo para a obtenção dos fins almejados. Isto, caro amigo Agripa, não se aprende nos
livros, onde nada se aprende, quando se não é organizado para saber, mas se
deduz, quando se tem capacidade para esta operação complicadíssima, do
conjunto de fenômenos físicos, morais ou sociais que regem a vida na sua esfera
de fatalidade cruel. O que tem de ser fatalmente será. Se tu, por exemplo, tiveres de morrer afogado e sabedor de tão crua
sina evitares com prudência os rios caudalosos e os mares encapelados, no teu
dia, transpondo esse riacho de machado ao ombro, vem-te uma síncope e tu cais
de bruços, sem sentidos e morres bebendo água na transbordante taça do teu
destino. Eu acho e tenho certeza de que todo o esforço é vão, já não digo para
a conquista da felicidade, mas para a simples obtenção dos bens da fortuna. Se
consta nos livros do meu destino um saldo qualquer em meu favor, alguém natural
ou sobrenatural trazer-mo-á em dinheiro contado, porque esses desígnios não se
revogam e não se adiam tais pagamentos. Tu derribas toda a floresta, se te
apraz semelhante infâmia, estoura de trabalhar se te deleita esse vão
dispêndio de músculos, mas abstém-te, em nome da nossa velha amizade e também pelo
direito que me assiste como pagador meeiro das rendas, abstém-te, repito-te, de
cortar com o teu machado cúmplice aquela tamarineira veneranda, que é o tabernáculo
das aves do céu, como se diz na Bíblia e o dossel verde, plantado por Deus no
deserto da minha esperança. Fica-te com esta, severo Agripa, enquanto eu parto,
como o conquistador das Gálias, para a posse total da minha rede, de quem me
apartei estoicamente, nesta hora inefável, consagrada a Morfeu, para te dizer
com sabedoria e firmeza estas verdades eternas.
Agripa, vencido pela lógica do irmão, deixou pender o machado entre os joelhos e sentiu um
como refluxo de velho ódio por aquele malandro loquaz, que lhe afirmava na cara
aquelas grosserias incongruentes, que tanto magoavam a sua espessa sensibilidade de homem
rude. Levantou-se suspirando com lentidão e
enveredou por umas sebes antigas de murtas bravas, que limitavam a mata.
Deparou-se-lhe no caminho uma casa de cabas formidável, que ele contemplou com demorada
malignidade, lembrando-se do irmão adormecido, na sua ostensiva indolência,
depois de o ter vagamente insultado naquelas alusões deprimentes aos labores do
campo. Foi correndo ao celeiro, derramou o milho de um grande saco e trazendo-o
consigo conseguiu, nele, enfiar trabalhosamente a imensa casa de cabas que
pesava como chumbo. Subiu com o seu fardo hostil as escadas do irmão e
atirou-lhe perto da rede o agressivo ninho de vespas, para que o ferroassem a
ele, o cínico indolente, tão insensível por cálculo aos suaves aguilhões da sua
fraterna experiência.
Mas o ninho de cabas com o
choque desfez-se em pedaços e estilhaçou-se com ele uma
larga botija vidrada, que o engenho das vespas disfarçara naquela pobre aparência
de folhas secas argamassadas. Estilhaçou-se a botija e saltaram-lhe dentro
inúmeras peças de ouro, que rodaram por terra, sonoras e lampejantes, como que
circundando num festivo rumor álacre a rede cândida de Sinfrônio, que despertou
sorrindo enternecidamente àquele único capricho amável do seu destino.
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Digitalização, pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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