5/31/2019

Sinfrônio e Agripa (Conto), de Carlos Dias Fernandes



Sinfrônio e Agripa
A princípio, logo depois da morte do pai, um velho rendeiro de Monte Alegre, que lhes deixara um pecúlio, — amaríssimo fruto dos seus labores agrícolas — os dois irmãos tinham bolsa comum, de onde o mais novo, Sinfrônio, retirava grossas quantias, a despeito de Agripa, que era um tostado trabalhador dos campos.
Como estivesse quase em ruínas o casarão pesado de Monte Alegre, em que haviam nascido aqueles dois irmãos de índoles tão singularmente opostas, deliberou o mais velho mudarem-se ambos para as terras úberes de Carapucema, onde as águas fertilizantes corriam sem­pre, inundando as várzeas pelo tempo do inverno.
Nessa quinta pitoresca, ensombrada de cajazeiras antigas e reconhecidamente famosa pela feracidade da gleba, havia um sobrado chato, quadrangular, assentando a sua velhice grave num cômoro largo, rodeado de gameleiras. Foi aí que se instalaram os dois irmãos, no começo cálido de um estio muito azul, quando as cigarras começaram a zinir, afogando num como torpor sonoro a melancolia bucólica daqueles ermos.
Sinfrônio escolheu para habitar um quarto de sótão, com duas janelas que davam para o nascente, em cujos poiais lutavam agitados pelo vento os ramos altos de uma velha tamarineira, onde vinham grazinar xexéus boêmios nas horas quentes do dia.
Agripa, madrugador utilitário, examinando com o seu olho calculista os arredores da casa, reputou excelente para um talhão de hortaliças aquele lado da quinta, onde viçava inutilmente a tamarineira vetusta. E, logo ao dia seguinte, levantando-se com o sol, foi ao regato próximo, para amolar pachorrentamente, num calhau que as águas lambiam, o seu grande machado de lenhador.
O irmão, que também se erguera cedo, para gozar os aspectos novos da moradia, espreitou-o da sua janela enfeitada de ramos e, pressentindo-lhe as sinistras inten­ções, desceu apressado, encaminhou-se para o laborioso Agripa, que gingava de cócoras, afiando peritamente o gume do ferro.
— Tu, a esta hora, de pé, Sinfrônio! Caiu-te o telhado em cima ou quebraram-se-te as cordas da tua rede?
— Nem uma coisa nem outra, mas o dever inteli­gente de comunicar com estes campos estranhos, para lhes conhecer as sombras mais densas e mais propícias ao culto plácido da preguiça; os recantos mais silen­ciosos e pitorescos, onde se possa docemente cismar, esperando com negligência o moroso dia da felicidade perfeita.
— Pois olha que já é tempo de te moveres, enquanto te não chega o inverno, ó patriarca dos malandros, que sumiste o teu patrimônio e mais metade do meu no abismo da tua indolência. Francamente, Sinfrônio, falo-te agora como teu amigo e irmão, que te respeita as susceptibilidades do temperamento, sem te perdoar, entretanto, essa quase inércia em que te quedas cinica­mente, invocando sempre essa "inutilidade do esforço" aprendida por teu mal nesses maus livros que te per­deram. O nosso pai morreu trabalhando e os frutos do seu labor não só lhe aproveitaram a ele mas também a nós, que começamos a vida" arrimados por um velho depois de morto. Vê, pois, como é larga e frutífera a irradiação do trabalho, essa feição moral imperecível do homem, que é uma como existência subjetiva, vinculan­do-o pelo seu legado à memória dos pósteros. Acresce que o trabalho é a consolação da vida e a condição existencial de todos os seres. Ninguém vive sem trabalhar e se tu consomes sem produzir és um ladrão da coletividade. Vê se te fica bem esse papel de larápio, consulta a consciência da tua dignidade ou afunda-te de vez na tua preguiça ou salva-te traba­lhando. É isto o que há muito eu te queria dizer e que agora me veio aos lábios num desafogo oportuno, quando tu passeias a tua ociosidade no mesmo sítio em que eu me preparo para derribar, sozinho, aquela tama­rineira, menos inútil do que tu, porque ao menos frutífera, embora esterilize com as ramagens a uberdade virgem desse terreno.
— Pois, meu caro, disse Sinfrônio, eu começo im­pugnando o corte daquela árvore, que tem para mim uma utilidade inestimável, como seja a de me fazer, no meu quarto, uma sombra doce, nas horas mornas da canícula. Vê tu também como tudo é relativo no mundo e como é variável a utilidade das coisas. A mesma árvore inútil e prejudicial aos intuitos de Agripa é utilíssima e necessária aos deleites de Sinfrônio. Assim também o trabalho. Que entendes tu por trabalho? — A aplicação muscular a fainas estéreis de que raríssimas vezes resulta uma compensação satisfatória, sendo que é nalguns casos um ato criminoso, de lesa-natureza, como no premeditado exício daquela tamarineira, que não deveras destruir porque a não podes criar?... Depois, a meditação é uma forma intensíssima de trabalho, pois que tudo se resume na vida animal a vibração nervosa, e languidamente meditar é intensa­mente vibrar. Enquanto Agripa, nas suas lutas cam­pestres, destruindo matagais, abrindo valas, fechando represas, ordenhando vacas e castrando chibarros, des­pende uma cópia vastíssima de muscularidade, economiza mais nervos que o sibarita Sinfrônio, consertando na sua rede a sinfonia caótica dos seus ideais. Se o trabalho serve apenas para tranquilizar a cons­ciência de uma certa soma de esforço que o homem deve empregar no intuito de se achar sempre em dia com o direito de subsistir, e dada a sua redutibilidade a uma função puramente nervosa, tanto monta que seja mus­cular como intelectual, sendo que em ambos os casos é negativo para a obtenção dos fins almejados. Isto, caro amigo Agripa, não se aprende nos livros, onde nada se aprende, quando se não é organizado para saber, mas se deduz, quando se tem capacidade para esta ope­ração complicadíssima, do conjunto de fenômenos físicos, morais ou sociais que regem a vida na sua esfera de fatalidade cruel. O que tem de ser fatalmente será. Se tu, por exemplo, tiveres de morrer afogado e sabedor de tão crua sina evitares com prudência os rios caudalosos e os mares encapelados, no teu dia, transpondo esse riacho de machado ao ombro, vem-te uma síncope e tu cais de bruços, sem sentidos e morres bebendo água na transbordante taça do teu destino. Eu acho e tenho certeza de que todo o esforço é vão, já não digo para a con­quista da felicidade, mas para a simples obtenção dos bens da fortuna. Se consta nos livros do meu destino um saldo qualquer em meu favor, alguém natural ou sobrenatural trazer-mo-á em dinheiro contado, porque esses desígnios não se revogam e não se adiam tais paga­mentos. Tu derribas toda a floresta, se te apraz seme­lhante infâmia, estoura de trabalhar se te deleita esse vão dispêndio de músculos, mas abstém-te, em nome da nossa velha amizade e também pelo direito que me assiste como pagador meeiro das rendas, abstém-te, repito-te, de cortar com o teu machado cúmplice aquela tamarineira veneranda, que é o tabernáculo das aves do céu, como se diz na Bíblia e o dossel verde, plantado por Deus no deserto da minha esperança. Fica-te com esta, severo Agripa, enquanto eu parto, como o conquis­tador das Gálias, para a posse total da minha rede, de quem me apartei estoicamente, nesta hora inefável, con­sagrada a Morfeu, para te dizer com sabedoria e firmeza estas verdades eternas.
Agripa, vencido pela lógica do irmão, deixou pender o machado entre os joelhos e sentiu um como refluxo de velho ódio por aquele malandro loquaz, que lhe afirmava na cara aquelas grosserias incongruentes, que tanto magoavam a sua espessa sensibilidade de homem rude. Levantou-se suspirando com lentidão e enveredou por umas sebes antigas de murtas bravas, que limitavam a mata. Deparou-se-lhe no caminho uma casa de cabas formidável, que ele contemplou com demorada malignidade, lembrando-se do irmão adormecido, na sua os­tensiva indolência, depois de o ter vagamente insultado naquelas alusões deprimentes aos labores do campo. Foi correndo ao celeiro, derramou o milho de um grande saco e trazendo-o consigo conseguiu, nele, enfiar traba­lhosamente a imensa casa de cabas que pesava como chumbo. Subiu com o seu fardo hostil as escadas do irmão e atirou-lhe perto da rede o agressivo ninho de vespas, para que o ferroassem a ele, o cínico indolente, tão insensível por cálculo aos suaves aguilhões da sua fraterna experiência.
Mas o ninho de cabas com o choque desfez-se em pedaços e estilhaçou-se com ele uma larga botija vidrada, que o engenho das vespas disfarçara naquela pobre apa­rência de folhas secas argamassadas. Estilhaçou-se a botija e saltaram-lhe dentro inúmeras peças de ouro, que rodaram por terra, sonoras e lampejantes, como que circundando num festivo rumor álacre a rede cândida de Sinfrônio, que despertou sorrindo enternecidamente àquele único capricho amável do seu destino.

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Digitalização, pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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