Rendas e fitas
– Olá! exclamei eu, vendo
saltar do bonde de Botafogo o meu querido Ernesto Branco. Bons ares te tragam!
Como vais tu? Mas que diabo de cara tens agora? Estás zangado?
– Ora! Não me fales! Não estou
zangado; estou aborrecido. Aborrecido com esta vida infernal do Rio de Janeiro;
aborrecido com este calor selvagem, este calor inimigo da civilização e do
trabalho; e aborrecido principalmente com as nossas patrícias, esses monstros
de olhos sedutores e sorrisos virginais!
– Ó diabo! a coisa agora é
mais grave… Dar-se-á o caso de que o meu espirituoso amigo levasse tábua de
alguma moça com quem estivesse para casar?…
– Hein?! Casar?! Eu?! Com
quem?!
– Oh! com qualquer moça do teu
gosto…
– Por quê! Que mal fiz eu,
para me condenarem assim, sem apelação nem agravo!… Casar! Casar com uma dessas
criaturinhas que neste instante acabam de encher-me de indignação e de
vergonha? Casar com uma dessas moças ignorantezinhas, pretensiosas e
malcriadas? Oh, nunca! Nunca! Nunca! Antes ser cão de cego; antes ser ministro
do Sr. Floriano; antes ser leitor do Fígaro!
– Mas, que te fizeram, Santo
Deus! para te ver neste estado de cólera contra o sexo mimoso?… para te ver
assim terrível e feroz contra essas belas flores com alma, que são o encanto da
nossa vida, o perfume do nosso lar, a segurança da nossa felicidade?…
– Que me fizeram? perguntas
tu! Oh! dir-se-ia que nunca viajaste em um bonde em que vão patrícias nossas!
Dir-se-ia que nunca cedeste o lugar a uma senhora, para vê-la aceitar a tua
fineza, sem voltar sequer o rosto, quanto mais dizer “Muito obrigada!”
– Acanhamento!…
– Qual acanhamento! São
acanhadas para cumprir com tão insignificante preceito de boa educação, mas não
lhes falta desembaraço para protestar com uma careta, e às vezes até com um
muxoxo, quando lhes chega a vez de se incomodarem para te dar passagem!
E o modo afrontoso e
impertinente com que elas observam e esmerilham, medindo da cabeça aos pés, as
pessoas que entram no bonde, será também acanhamento …
– Curiosidade de mulher…
– De mulher mal-educada! É
muito feio que uma moça, pressuposta inocente e virginal, ou mesmo uma senhora
já casada ou viúva, não possam ver entrar uma cocote no bonde, sem se voltarem
de nariz torcido, sem a medirem com desprezo e azedume, arriscando-se a ouvirem
uma merecida resposta! E não é preciso que seja uma de chapéu tapageur e vestido de cor criard a pessoa que entre no bonde, para
ser analisada deste modo; basta ser uma estrangeira, uma estrangeira que não se
vista pelo detestável gosto com que se vestem as nossas damas; quer dizer que
não venha coberta de seda e veludo por um dia de sol ardente e não traga em
cima de si todas as cores do céu e do inferno!
– Tu exageras!
– Não exagero tal! Agora mesmo
acabo de presenciar revoltado uma dessas cenas. Estava uma família ocupando o
banco em frente do meu: uma velha, uma senhora de meia idade, e duas moças de
quinze a vinte anos; todas as quatro tudo que há de mais tipo brasileiro e de
mais ridículo.
O grupo formava uma orgia de
cores, de flores e de fitas; uma loucura de sedas, de lãs, de veludo, e de
algodão.
Entra um casal americano do
norte. O homem de calça e paletó de brim, chapéu de palha com toalha em volta,
e guarda-sol de pano claro, a mulher com um singelo vestido de linho cor de
palha, enfeitado de rendas da mesma cor, e na cabeça um abajur de linho branco,
preso despretensiosamente ao pescoço por duas pontas largas de cadarço.
Pois, meu amigo, não imaginas
o rebuliço que se produziu naquela família com a chegada deste casal, que aliás,
nada mais fez do que entrar, assentar-se e pôr-se a conversar em voz baixa,
natural e discretamente.
Oito olhos arregalados
cravaram-se imediatamente sobre a americana com tal insistência que a nobre
senhora começou a examinar-se, e perguntou depois ao seu cavalheiro se ela
tinha em si alguma coisa que chamasse a atenção.
“Deus te livre!” disse a
velha, com arrelia, dando um estalo de língua e torcendo enojada a cabeça, como
para não continuar a ver um espetáculo indecoroso.
“Iche! desdenhou por sua vez a
quarentona. Esta gente não tem vergonha de sair assim à rua?… Parecem
mascarados, Deus me perdoe!”
E as duas moças começaram, de
lenço contra a boca, a emitir consecutivas gaitadas de riso, e a remexerem-se
no banco, e a cochicharem tão impertinentemente, que os americanos voltavam a
cabeça de vez em quando, patenteando na fisionomia o mais completo ar de
intriga e de assombro.
Não ouvi o que eles disseram
lá entre si; vi, apenas, o desdenhoso movimento dos seus lábios e senti venetas
de estrangular aquela família brasileira, tão tola, tão ridícula, tão chinfrim!
E ainda me vens falar em
casamento! Mas a ideia que me dá ânimo para continuar a viver; a única razão
por que não me atiro ao mar; o meu único momento de felicidade, é quando me
lembro de que aqui no Rio de Janeiro, onde todos são mais ou menos casados, eu
me conservo solteiro como no dia em que nasci! E, juro-te que não é da
febre-amarela, que tenho medo, nem das bexigas, nem do beribéri, nem da
legalidade do Sr. Floriano, nem da queixada do Sr. Aristides, é daquilo que ali
vem. – Olha!
E Ernesto apontou para um
grupo de três mocinhas que se aproximavam de nós, muito risonhas, acompanhadas
pela mamãe; e deitou a fugir como um louco em direção contrária, a gritar.
– Livra! Livra!
E foi-se.
***
Não, Ernesto, vem cá. Senta-te
aqui; conversemos tranquilamente. Não comeces a gesticular como um louco e a
dardejar paradoxos a torto e a direito! Ouve-me quieto e responde com bons
modos, se não me queres ver tomar o chapéu e desaparecer pela porta da rua.
– Vamos lá!
– Foste ontem injusto e severo
demais com as nossas patrícias. Concordo que nem todas as brasileiras mereçam a
minha defesa; sei que há por aí muita mocinha impertinente e muita senhora
insuportável, mas ninguém pode negar que a brasileira em geral é meiga,
virtuosa e asseada,
– Não foi disso que tratei!
– Ouve. Tu conheces bem o tipo
da inglesa, com a sua barriga de tábua, com o seu cabelinho louro grudado à
cabeça e enrolado pobremente sobre a nuca; com a sua cintura de lâmina, muito
estreita vista de lado, muito larga vista de frente; com os seus pés espalmados
e longos, como uma canoa de pescador emborcada sobre a praia; conheces a famosa
Miss, tão celebrada pelo lápis de Gavarni; essa misteriosa criatura de olhos
celestiais, que em viagem se parece com um guarda-chuva inglês, metido
cuidadosamente dentro da capa, e que em casa, no interior, lembra um vaporoso e
fino caramelo encimado por uma trouxa de fios de ovos. Conheces a mulher
inglesa?.
– Se conheço! Theóphile
Gautier, o meridional romântico, o beduíno francês, que viveu para adorar as
mulheres, e que amava e cultivava os gatos, por não poder fazer o mesmo com a
pantera (que, depois da mulher, é o bicho mais feroz de criação), Theóphile
Gautier dizia e repetia que as inglesas são as mulheres mais formosas do mundo!
– É exato. O que não impede
que os outros franceses, ao vê-las atravessar o boulevard, tenham, sempre para
ela as pilhérias mais terríveis e os ditos mais ridículos. Mas, passemos
adiante: conheces igualmente a espanhola?
– Oh! Pergunta-me antes se
conheço Byron! Não conhecer o tipo da espanhola!… Dançante seguidilha de amor
que se transforma em mulher! Oh! se conheço! Mantilha, leque, castanholas e
touros! Sou louco por ela! Vamos adiante!
– Pois, meu amigo, fica
sabendo que as espanholas têm coisas detestáveis nos seus costumes. Â mesa, por
exemplo: não há espanhola, por mais bem educada, que não leve a faca à boca,
como se fosse um saltimbanco engolidor de espadas; e todas elas lambem os
dedos; tiram com a língua o que fica de comida entre os dentes, e…
– É falso! É mentira! Não
prossigas, ó caluniador! que te estrangulo aqui mesmo!
– E a italiana?…
– Oh! oh! O velho amor
cavalheiresco! Beijos e punhaladas. Lábios grossos e quentes; punhais frios e
penetrantes. Um conde assassinado ao luar, debaixo de uma ponte; a condessa
veneziana fugindo com um tenor de olhos ardentes!…
Conheço! conheço! mas tudo isso
cheira-me um pouco a macarrão e realejo!
– Quando não cheira pior…
porque, meu caro, debaixo de todo aquele romanesco lírico e daqueles
transportes de paixão, com punhal, cabelos soltos e dentes cerrados, mal sabes
o que vai! A italiana em geral é boa para ser vista de longe. Só tem efeitos
cenográficos. Não te aproximes muito dela, se queres conservar a bela impressão
artística que recebeste!
– E da francesa? que me dizes
tu da encantadora francesa?…
– Digo-te que é a mais vulgar
de todas as mulheres… a que menos tem a linha original…
– Socorro! Socorro! Este homem
acaba de enlouquecer!
– Não! Não enlouqueci! Não
confundas a francesa com a parisiense. Fala-me desta, e eu te direi que a
parisiense é a mulher mais feia e mais sedutora entre todas as filhas de Eva;
eu te direi que só ela tem o segredo do amor que ri, e canta, e brinca; o
segredo da amabilidade que satiriza e confunde como um piparote na ponta do
nariz. Não é uma mulher, é uma bonita fantasia feita de cançonetas, aljôfares
de champanhe e rendas valencianas!
– Seduzem-no mais o espírito
do que os sentidos. É a primeira mulher do mundo.
– Não! A primeira mulher do
mundo, meu querido Ernesto, é a brasileira.
– E por que não a portuguesa?
– Porque a portuguesa aos
trinta anos, idade da grande afeição da beleza feminil, em geral começa a
barbar e a criar umas singulares bochechinhas ao lado do queixo, que lhe tiram
todo o encanto e lhe dão ares de abadessa.
– E a brasileira então? A
brasileira aos trinta anos está coberta de sardas; já se não aperta; já se não
penteia; anda em casa com o roupão desabotoado sobre o ventre; arrasta os
chinelos, e, às vezes, fuma até cachimbo!
– Não é verdade! Ou tens
consciência de que estás mentindo ou não sei que diabo de brasileiras conheces
tu! Repito: a brasileira é a primeira mulher do mundo. Sela se reúne tudo o que
as outras possuem de melhor; ela tem a graça e o donaire da espanhola; tem o
calor e o arrebatamento da italiana; tem o coquetismo da francesa, tem o asseio
e a virtude das inglesas e o talento doméstico da alemã.
– Só lhe faltam, para ser
completa, as barbas à portuguesa!
– Mas tem uma coisa ideal, que
nenhuma outra possui como ela, e é a meiguice, o carinho profundamente sincero,
a dedicação sem limites pela pessoa amada. Só a brasileira, só ela no mundo,
tem o segredo de dar cafunés e de fazer certos quitutes e certos doces que nos
arrebatam! Só ela…
Mas Ernesto não me deixou
prosseguir, ergueu-se indignado e exclamou, enterrando o chapéu na cabeça:
– Ora, vai-te para o diabo!
Estás apaixonado por alguma pasteleira! E eu a dar ouvidos a este comilão!
E foi-se.
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