Quilombo: Um auto de sangue
Autoria: Salomão Rovedo
Este artigo foi escrito para o jornal D. O. Leitura, publicação cultural
da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo nº 4 (42) de Novembro de 1985, em
Número Especial dedicado a Zumbi História e Cultura Negra no Brasil.
A ideia
original do Editor Wladimir Araújo era que todos os trabalhos focalizassem o
tema de Zumbi e o Quilombo dos Palmares. Tendo cerca de duas semanas para
cumprir a tarefa, me debrucei em pesquisas na Biblioteca Nacional, já que minha
parca coleção de livros não permitia tal luxo.
Já enfurnado
na coleção de folclore da Biblioteca Nacional, minha atenção foi desviada para
uma discussão havida entre folcloristas de renome, mas, curiosamente, não se
voltava à personalidade do Zumbi, nem mesmo às vicissitudes do extermínio
sofrido pelos quilombos e quilombolas.
Tudo se
concentrava na autenticidade de um auto de menor importância, representado
minimamente no mínimo Estado de Alagoas – tudo isso só porque era chamado Dança
do Quilombo e defendido pelos participantes como se memória fosse dos sucessos
ocorridos em Palmares.
Por toda essa
injunção involuntária deixei de lado a pauta do D. O. Leitura e afundei no tema
proposto pelo destino...
Foi por pura
sorte ter uma sogra feliz e alagoana, pois quando ela ouviu a minha constante
lamentação por ter de cumprir o mais rápido possível a tarefa solicitada pelo
D. O. Leitura – a qual era, também, de caráter indecepcionável – tomou-se
de brios e começou a me contar histórias do Auto de Quilombo e das
muitas representações que tinha visto e até participado em sua juventude.
A lengalenga
da sogra me prendeu e transfigurou de vez o rumo da minha pesquisa. E, se a
demora em enviar o artigo não chegou a retardar a saída número especial,
dedicado a Zumbi e à História e Cultura Negra no Brasil, pelo menos deixei o
pobre Wladimir Araújo de cabelos arrepiados e nervoso.
Mas no fim
deu tudo certo. Depois de quase um mês de trabalho, dezoito laudas datilografadas,
ilustrações a carvão por Marcelo Soares, tudo isso tirou o peso da demora,
fazendo o Wladimir Araújo – e os colegas de redação, acredito – ter aquela
satisfação de dever cumprido.
O tema,
apesar de não ser inédito, reativava uma discussão antiga – desde os tempos de
Mário de Andrade e antes. Os demais, colaboradores mais competentes, trataram
de comemorar Zumbi e Palmares com todo carinho: a homenagem em número histórico
saiu com o selo de primeira qualidade.
O exemplar
que agora tenho nas mãos, do qual tento salvar o texto deste artigo, está
amarelado e roto, já rasga as dobras quando se movimenta sem o devido cuidado.
Anoto a seguir a pauta de todo o D. O. Leitura, para satisfazer a necessidade e
curiosidade de leitores e pesquisadores.
Paulo Dantas – “Quarto de Despejo”, o maior
Best-seller negro do Brasil Jorge de Cunha Lima – O negro – uma afirmação
cultural
Décio Freitas
– Zumbi
– Raízes históricas do
racismo brasileiro Wladimir Araújo – “Teodoro Sampaio” Octavio Ianni – Raça e
questão nacional
Salomão Rovedo – Quilombo
– um Auto de Sangue
Clóvis Moura –
Sobrevivências do sistema escravista na estrutura da sociedade brasileira
Jefferson Del Rios – O
negro no teatro: um eterno figurante Mário José Maestri Filho
– Tráfico: um negócio que
ninguém queria acabar
– Tráfico Negreiro e
Historiografia
David Brookshaw – A
literatura negra na literatura brasileira
Maria Vicentina de Paula
do Amaral Dick – Toponímia africana no Brasil Jussara Quadros – O negro na
literatura gaúcha
Henrique L. Alves –
Imprensa negra no Brasil Cuti – Namoro (conto)
Jairo Dias de Carvalho –
Clamor Africano (poesia)
Um exemplar
de tirar o fôlego de qualquer amante da cultura brasileira. Mas aqui caberia
bem uma...
NOTA NECESSÁRIA
Com o advento
da internet consegui reunir três importantes artigos que vão completar este
opúsculo, porque dão ideia do que representa a discussão sobre o fato do Auto
do Quilombo ser ou não uma representação:
a) que traga
o significado de manter acesa a lembrança da resistência histórica dos negros
ao cativeiro;
b) que
confirme ser o auto uma representação folclórica de raiz brasileira;
O mais
importante dos artigos aqui anexados é sem dúvida o de Théo Brandão “O AUTO
DOS QUILOMBOS”, publicado originalmente no Diário de Notícias de
19/06/1955, posto que reúne os primeiros elementos de estudos que viriam a
servir aos demais folcloristas.
Théo Brandão
encontra as mais remotas citações sobre o Auto do Quilombo, com o aval de
importantes escritores do passado:
“As
descrições clássicas e mais conhecidas do Quilombo são as de Alfredo Brandão em
Viçosa de Alagoas e de Artur Ramos em Folclore negro do Brasil.
Mas, ao seu lado embora mais sucintas, outras referências existem sobre o Auto:
a de Pedro Nolasco Maciel no romance de costumes editado em 1890, Traços e
troças onde descreve um Quilombo em Fernão Velho; a de Félix Lima Júnior,
no seu excelente artigo sobre o Natal em Bebedouro (Jornal de Alagoas,
1950) e a de Oscar Silva, no artigo Os quilombos publicado no mesmo
jornal registrando o Auto em Santana de Ipanema”.
Antonio
Alexandre Bispo no seu texto “DA SUPOSTA REMEMORAÇÃO DAS LUTAS DO
QUILOMBO DOS PALMARES NO FOLGUEDO QUILOMBO DE ALAGOAS” atualiza a
discussão sobre a divergência aqui analisada, porém já sob o aspecto
mais moderno que a atinge, onde a questão do negro brasileiro toma o aspecto
político, no qual a característica mais contundente é a guerra do poder pelo poder
e não meramente histórico-literária:
“Problemática
similar à discutida com relação às "Bandas de Couro" é aquela que diz
respeito a certas tentativas de interpretação do folguedo natalino denominado
"Quilombo", em Alagoas, no qual também tomam parte os conjuntos
instrumentais citados. A questão foi já suficientemente discutida por vários
pesquisadores; a discussão parece, porém, no presente, retroceder a um nível de
politização na análise que já se supunha superado. Esse retrocesso coincide com
a aparência de embasamento científico que se pretende dar a certas
atividades político-sociais e político-religiosas aliadas ao conceito de Zumbi
(cf. prefácio do bispo de Palmares no folheto Palmares de Liberdade e Engenhos
de Escravidão, Caxias do Sul, 1985)”.
Já o texto “DANÇA
DO QUILOMBO: OS SIGNIFICADOS DE UMA TRADIÇÃO” de Demian
Moreira Reis, vem complementar de maneira linear todas as análises
propostas, ousando sugerir ao final algumas Sugestões para uma
reinterpretação da dança do Quilombo, que deve ser levada em
consideração sim senhor:
“Uma análise
histórica sobre a dança do Quilombo deveria procurar desvendar seus
significados num determinado contexto e, se possível, uma busca de fontes
primárias sobre a vida dos escravos (quilombolas em potencial) e índios, tanto
os que se aliavam aos negros quanto os que eram mandados para lutar contra
eles. Tomemos, por exemplo, um registro de 1851: "Tradições. Costuma-se
fazer nesta Província uma brincadeira tosca chamada os Quilombos que neste ano
se fez também nesta capital consistindo em um arremedo do assalto dos índios
aos Negros, que depois de vencidos se vendem aos espectadores. Isso é uma
recordação que o povo tem conservado desde aquela época até o presente (158
anos depois do sucesso!) e que se fora bem desempenhado seria uma função
provincial relativamente moralizadora".
Acredito que
o meu artigo envelheceu bem nestes 25 anos de publicação e segue emparelhado
com textos mais modernos que vieram trazer aportes significativos ao tema do
Auto do Quilombo.
Rio de Janeiro, Cachambi, janeiro 2010.
Guarda
singularidade e mistérios a identificação dessa festividade popular de Alagoas,
o Quilombo. Pelo nome que tem é natural que se identifique, de imediato, com as
povoações criadas no século XVII pelos negros escravos fugidos da dominação.
Com efeito, a
menos tempo do que registra a história, o preto – tão logo superou o choque
provocado pela escravatura que o arrancou violentamente da terra natal para tão
longe – buscou meios de iniciar a luta pela liberdade e por melhores condições
de trabalho (quando a fuga era impossível), o que já pressupunha uma
embrionária luta social de classes.
Daí para a
criação espontânea dos guetos – Quilombos – foi um importante passo, como a
contradizer a histórica imagem de uma figura passiva, inerte, melancólica,
saudosa da pátria (?) distante, largada à sua própria sorte.
“O
escravo, no entanto, se, de um lado, era apenas coisa, do
outro lado era ser. Por mais desumana que fosse a escravidão, ele
não perdia, pelo menos totalmente, a sua interioridade humana. E isto era
suficiente para que, ao querer negar-se como escravo, criasse movimentos e
atitudes de negação ao sistema.”
O negro
escravizado jamais deixou de lutar pela sua libertação, vencidos, como se
disse, o constrangimento de viverem numa situação animalesca, o estranhamento
da nova terra, desconhecida, bravia, e a superação do estado físico provocado
pela nova situação. Desimpedido de tais obstáculos e do trauma resultante de
captura + subjugação + viagem dramática + venda e escravidão, “o escravo não
foi (mais) aquele objeto passivo que apenas observava a história”,
passando a tramar a sua própria vida, pensar a ter suas cidades, seus
governantes e seus meios pessoais de sobrevivência.
Que terra
poderia ser mais bravia? Que vida seria mais hostil e difícil? Que inimigos
seriam mais temíveis? Quais obstáculos não poderiam superar?
Nenhum desses elementos, naturais ou não, o preto receava, posto que muito
deles já enfrentara. É normal, portanto, que, menos de cem anos passados, a
segunda geração de escravos já buscasse caminhos capazes de liberá-los do
cativeiro humilhante. Até mesmo os escravos islamizados (hauçás, nagôs, jejes),
de índole diferenciada dos demais pela religiosidade, se deixaram levar pela
revolta, reagindo com violência aos excessos escravistas.
A partir de
então os primeiros Quilombos começaram a ser organizados, transformando-se em
importantes bases para a emancipação social dos escravos. O sonho de
independência nascia. Ao se organizarem em republicas os negros aspiravam antes
de tudo a uma vida só deles, voltada para suas necessidades e premências, lançando
as sementes da subsistência de uma força cultural incalculável.
E pensar que
essa luta só viria a ser reconhecida pela sociedade brasileira quase três
séculos depois, quando os segmentos culturais de suas raízes já haviam sido
desfigurados pelo tempo e pela mestiçagem, cujos traços étnicos já haviam sido
descaracterizados pela violência de todo o processo escravocrata.
Com a criação
dos Quilombos pôde o negro, enfim, “folgar” e aspirar a uma vida
tranqüila voltada para interesses comuns. O Quilombo tinha uma estrutura
fundamentalmente comunitária e ali os negros de todas as origens se misturavam,
cantavam e dançavam folguedos que relembrassem suas origens, fatos que
envolviam a tragédia do exílio e, naturalmente, que comemorassem suas
conquistas sofridas – a maior e mais importante de todas, não poderia deixar de
ser, a liberdade.
Cadê branco?
Cadê branco?
Não tem mais branco!
Não tem mais sinhô!
Os Quilombos
e Quilombolas se espalharam então por todo o Brasil. Em nenhum momento esse
movimento libertário se limitou a pequenos grupos étnicos. Como um rastilho, o
ideal de liberdade pensado pelas lideranças negras se espalhou pelos Estados,
havendo Quilombos importantes em Sergipe (Capela, Itabaiana, Laranjeiras, Vila
Nova, Rosário, etc.), na Bahia (Xiquexique, Cachoeira, Jacuípe, Muritiba,
Maragogipe, etc.), em São Paulo (Jabaquara, Mogi Guaçu,
Atibaia, Santos, Piracicaba, Jundiaí, etc.), no Maranhão, no Pará e Amazonas,
em Minas Gerais. Nenhum território brasileiro ficou alheio ao movimento, mas
aquele que viria a ser o mais importante historicamente se situava na Província
de Pernambuco (que então abrangia Pernambuco e Alagoas), mais precisamente na
região entre os rios Ipojuca e Paraíba.
A região
inóspita favoreceu o crescimento dos Quilombolas e Palmares acabou se
transformando numa Confederação de Quilombos, formada a partir da reunião dos
mocambos de Zumbi, Acotirene, Tabocas, Dambrabanga, Subupira (quase uma Capital
da Confederação), Macaco, Osenga, Amaro, Andaiaquituche, Alquatune, que,
anexados a outros de menor importância, delimitavam o Reinado de Zumbi, que
durou de 1626 a 1699 aproximadamente. A tragédia da destruição do Arraial de
Palmares não determinou o extermínio dos Quilombos mas, certamente, marcou o
fim de um sonho de pacífica liberdade.
É a folgança
Quilombo uma reminiscência dessa tragédia?
“Nem tudo
quanto o negro faz é africano” – diz o mestre Câmara Cascudo.
Mas, a
princípio, julgado pela aparência do nome e de alguns rumos do enredo, vários
estudiosos não hesitam em apontar o folguedo como uma lembrança da “Tróia
Negra”, como também era chamado o Quilombo dos Palmares. Vejamos:
“Era
aquilo um brinquedo tradicional que renovava os Quilombos da Serra dos
Palmares, célebre república organizada por africanos escravizados” (...) –
diz Pedro Nolasco in Traços e Troças.
“Este
divertimento grotesco e espetaculoso alude ao célebre Quilombo dos
Palmares”. – Guilherme de Melo in A música no Brasil.
“A
coincidência do nome do auto ou dança com a do mais famoso e maior
quilombo existente no Brasil, a grande difusão atual do auto no atual Estado de
Alagoas, onde se deu o sucesso histórico, e, até certo ponto, a similitude do
mesmo com o enredo do auto, levaram muito naturalmente os estudiosos a
deduzirem uma origem histórica para o Auto ou Dança dos Quilombos”. – Théo
Brandão in Quilombo.
“(...) é
uma festa puramente alagoana que relembra um dos fatos mais importantes
da nossa história – a Guerra dos Palmares”. – Alfredo Brandão
in Viçosa de Alagoas.
“Um auto
de sobrevivência histórica, não da África, mas da própria história dos
negros no Brasil, é o dos Quilombos que se festeja em Alagoas, relembrando o
feito dos Palmares”. – Arthur Ramos in O Folk-Lore Negro do
Brasil.3
Alfredo
Brandão não duvida em considerá-lo uma representação bem brasileira, “sendo
mesmo superior às antiquadas e estafantes cavalhadas”.
Tantos e
importantes aportes, por incrível que pareça, não foram suficientes para
sensibilizar nossos folcloristas, pois que, metidos no rigor com que tratam a ciência
chamada folk-lore, acharam por bem destruir todas essas evidências com
os mais variados tipos de argumentos.
Nem mesmo a
antiguidade do parentesco Auto/Quilombos (não especificamente Palmares,
note-se), registrada num “Opusculo da descripção geographica,
phyzica, política e histórica do que unicamente respeita à Provincia das
Alagoas no Imperio do Brazil”, de 1844 (citada por Théo Brandão, op. Cit.),
foi suficiente para determinar a identificação do auto:
“Ainda
hoje há por lá (na Vila da Imperatriz) comemoração, em uma espécie de
torneio que se celebra nas ocasiões festivas, e que dão o nome de Quilombos.
Consiste em duas guerrilhas, uma de índios, outra de negros aquilombados”
(grifou-se).
Os grifos
servem para alertar sobre o seguinte: originalmente a “batalha” se travava
entre índios e negros (hoje são os caboclos); a expressão “negros
aquilombados” deixa ampla margem para se deduzir que o festejo não era
restrito a Palmares – um dos elementos que provocaram a desclassificação do
auto, como se verá.
O folclorista
Théo Bandão, alagoano e grande defensor dos folguedos populares ali
representados, praticamente entrega os pontos aos detratores do auto.
“A
investigação dos últimos anos, todavia, tende a considerar o auto como
uma adaptação local ou ‘re-interpretação’ de origem branca e erudita, de autos
similares do Brasil e do estrangeiro, como Congadas, Cucumbis, Mouriscadas,
Caboclinhos, etc., nos quais se degladiam (sic) dois partidos: ora mouros e
cristãos, ora negros, ora brancos e índios, etc. A verdade é que os brincantes,
conquanto nomeiem o seu brinquedo de Quilombo, de nenhum modo o ligam ao
acontecimento histórico da Tróia Negra. Demais, na ribeira do São Francisco, o
folguedo tem o nome de Cacumbi e em Sergipe é conhecido sob o nome de
‘Lambe-sujo’, sem qualquer ligação com o sucesso dos Palmares”.
Em outra
ocasião:
“A
verdade, porém, é que tais populações não guardam a menor lembrança da
república negra e da guerra a que ela foi movida, nem ligam de qualquer modo o
folguedo que denominam Quilombo a tal sucesso histórico (...). em nossas
investigações podemos igualmente comprovar o fato: os atuais participantes do
folguedo não sabem que acontecimento histórico representam”.
Para
corroborar essa afirmação, reproduz Arthur Ramos:
“Eles
ignoravam por completo a significação do auto dos quilombos. Ou
procuravam uma explicação qualquer, mas sem a menor ligação com a epopéia
palmarina”.
Vamos por
partes...
Invariavelmente,
todos os autos e folguedos populares buscam representar uma dualidade (opressor
x oprimido, invasor x invadido, conquistador x conquistado – e assim por
diante), razão pela qual é facílimo identificar similaridades entre festas,
mesmo de países distantes. Também quando uma festança busca elementos de uma
luta com caráter fortemente social, uma opressão manifesta ou uma verdade
histórica e que essa teatralização – ainda mais grave – fira classes que se
saíram vitoriosas, é comum o dominador minimizá-la diluindo as suas
potencialidades enquanto denúncia, com paralelos insuspeitos que geralmente
desembocam nas Mouriscadas européias, limitando-se à eterna e culpadora
dualidade bem x mal.
Se o
Quilombo, hoje em dia, representado que é entre negros e caboclos, não pareça
um auto puramente autóctone nem puramente alagoano, foi nessa região que se
firmou como folgança popular. E é a tal a sua antiguidade que não será ousadia
afirmar que dele derivem elementos outros capazes de enriquecer tantas
manifestações quantas lhes cerquem. Isso mesmo! Por que não o Quilombo
influenciar, com seu poder representativo, outros autos populares, já que, para
a transfiguração em outros autos, em conseqüência da mistura dos vários
elementos em jogo, há de se considerar que “os mestres dos Quilombos são
igualmente mestres e brincantes de outros folguedos populares”?
Não obstante
a excelente memória que possuem os organizadores, é de supor que sejam, ora ou
outra, traídos pelas várias representações que fazem. Pela passagem oral que
atravessa os anos, em prejuízo da fidelidade que seria necessária. Já que as
fontes do Quilombo remontam às próprias fontes da cultura brasileira, pois vêm
do século XVII e XVIII, nada mais justo deduzir que seria justamente o negro o
seu criador ou pelo menos o elemento chave dessa representação teatral popular.
Outra coisa:
não existe em nenhum dos autos populares brasileiros um confronto negro x índio
tão claramente denunciador, tão diretamente esclarecedor, já que representa
justamente essa disputa. Mas aqui cabe uma interrogação: sendo a República dos
Palmares comum a pelo menos dois Estados (Pernambuco e Alagoas), como explicar
que o Quilombo tivesse sua representação limitada a Alagoas? Para ali fugiram e
se refugiaram os sobreviventes da batalha?
Cumpre
observar também, a respeito da batalha negro x índio, que dos resultados advindos
da mestiçagem negra tanto o cafuzo (curiboca), que vem do cruzamento
negro-índio, quanto o cabra (negro-mulato) representam os segmentos mais
frágeis etnicamente, sendo superados em larga margem pelos crioulos
(negro-negro), mulatos (negro-branco) e caboclos (índio-índio). Este parêntese
serve para demonstrar que o negro sempre foi tradicionalmente um dominador
étnico, de raça forte que se impunha pela própria natureza.
O preto
escravo fugido caminhava para o interior inóspito para formar seus quilombolas,
muitas delas roubando o espaço natural dos índios e ameaçando ou dificultando a
sobrevivência indígena. É normal, pois, que houvesse
conflitos mesmo armados e que os índios, na ânsia de recuperar o terreno
perdido, acabassem se aliando aos brancos no combate aos quilombos. Era uma
luta de vida ou morte pelo espaço, pela liberdade, pela sobrevivência da raça.
Dar tanta
importância também à ignorância dos participantes sobre a origem ao Quilombo
dos Palmares, por ser este mais importante na nossa história, é estreitar
propositadamente os caminhos de uma pesquisa realmente séria, que poderia
comprovar as raízes brasílicas da dança.
Ademais,
passados centenas de anos em que foram representados os primeiros festejos
relembrando os Quilombos, é exigir demais de pessoas geralmente incultas
informações precisas sobre o que significam todos aqueles simbolismos que elas
vêm reprisando anos a fio de conhecimento adquirido de antepassados mais
remotos.
Demolidos
esses preconceitos, vamos adiante...
O teatro vivo de uma dor
Vários
elementos da cultura negra trazida pela escravidão ainda hoje vivem
disseminados em nossa arte. Ninguém pode negar a importância e a grandeza
cultural trazidas pela emigração compulsória dos negros africanos, que acabaram
por se impor numa civilização recém – nascida. Mesmo subjugados fisicamente, os
pretos plantaram uma cultura de tanta importância que, mesmo hoje, influi, ao
sobreviver mesclada aos novos elementos, na criação/recriação artística do
nosso povo.
Algumas
dessas culturas vindas através de seu povo escravizado, contam os estudiosos
como uma das mais importantes a ioruba, cuja língua – o nagô – acabou por se
transformar quase em língua geral dos negros no Brasil. As liturgias,
cerimônias e cânticos de terreiros eram apresentados geralmente nessa língua,
já demonstrando uma busca de identificação entre as diversas tribos aqui
aportadas. Esse processo transculturativo resultou em cultos religiosos, tais
como o Candomblé, a Macumba, o Xangô, adotados indistintamente por diversos
segmentos negros.
A influência
através da música também foi importantíssima, eis que instrumentos como
tambores, atabaques, agogôs, afofiés, usados nas várias práticas religiosas e
pára-religiosas, descendem basicamente dos iorubas. Os bantos contribuíram com
instrumentos outros tais como os tambores de jongo, o ingono, o zambê, a cuíca,
o berimbau.
A palavra Quilombo
descende dos bantos que, “embora de expressão cultural inferior,
deixaram vários traços característicos de sua influência”.
Apesar de
defender a ideia de ser o Quilombo um auto puramente brasileiro e alagoano,
convém lembrar que mesmo as representações locais recebiam a influência negra,
seus criadores. Manuel Diégues Jr. não hesita em afirmar que “além de seus
cultos religiosos, com seus sacerdotes e suas práticas próprias, fixaram
(os bantos) sua influência em instrumentos de música, em danças como os
quilombos, os maracatus e em aspectos do bumba-meu-boi, principalmente nas
sobrevivências totêmicas”.
Sabendo-se
que “a recreação é uma necessidade orgânica e ao mesmo tempo
integradora do homem ao meio social” e que “as festas foram sempre uma
força de acomodação social”, é natural que os negros, agora reunidos
em grupamentos numerosos – os Quilombos – , procurassem não só recordar danças
e cantos da sua terra nativa, como também expressar teatralmente acontecimentos
que resultaram da captura, deportação e escravatura numa terra desconhecida.
O Quilombo,
esse torneio popular, é justamente essa “festa que relembra as lutas
e o anseio de liberdade dos negros escravos que um dia se refugiaram nas
florestas de palmares, criando os núcleos de Zambi, Subupira, Macaco, Ozengá e
Andolaquituxe, redutos liquidados definitivamente em 1694”, como bem diz
Alceu Maynard Araújo (op. Cit. Pág. 391).
Como festejo
popular, porém, tende a se acabar, mesmo porque, sendo representado em qualquer
época do ano, a importância de outros acontecimentos culturais pode sempre
relegá-lo a intermináveis adiamentos e, por fim, ao esquecimento. O Quilombo
geralmente junta-se a outras festas de caráter religioso como forma de
sobrevivência. A festa tem também contra a sua permanência o fato de se
estender em sua teatralidade por cerca de três dias
consecutivos, iniciando-se a representação erigindo-se uma grande paliçada (um
cercado de palha) simbolizando o Mocambo, à qual se acrescentam mais dois
Mocambos menores, para os pretos e os índios. É a própria representação visual
de um Quilombo verdadeiro.
Nessa
primeira fase começam a aparecer os personagens principais do drama:
Os índios
trajam tangas, cocares, perneiras de pena (na ausência desta são feitas de
capim). Pintam-se de urucum, à moda das pinturas indígenas em tempo de guerra,
portando como armas o arco e as flechas.
Os negros
representam o escravo típico: vestem somente uma calça de mescla e camiseta
branca. Muitas vezes o peito está desnudado. Complementam a figuração um chapéu
de palha e suas armas de guerra – foices de madeira.
A existência
de Reis e Rainhas entre os personagens, cujo traje se confunde com os demais
usados nas Congadas, reisados, Guerreiros etc. (não esquecer que os figurantes
são comuns a diversos desses autos durante todo o ano – e não têm recursos
econômicos para renovar o vestuário), é que faz com que pesquisadores
determinem ser o Quilombo um auto como outro qualquer, reminiscente dos Congos
e, por extensão, das Mouriscadas!
A que
triste destino o
cientificismo exagerado dos
nossos folcloristas é capaz de levar as nossas tradições...
São
personagens também importantes no auto a Catirina (uma escrava negra que
carrega um boneco), o Papai-Velho (com cajado e uma foice nas mãos,
barbas brancas), o Espia-dos-Índios (um dos índios com traje mais
enfeitado) e o Vigias-dos-Pretos (também um escravo cujos trajes são
enfeitados com espelhos), que carrega uma espingarda às costas.
Ao todo são
cerca de cinqüenta participantes, mas esse número pode variar. Os dois grupos
distintos, pretos e índios, representam inicialmente partes teatrais
independentes entre si. Feito o arraial primeiramente o grupo negro começa a
agir como se estivesse realmente num Quilombo, saqueando as
fazendas em derredor, enchendo os Mocambos de coisas roubadas. Aí talvez esteja
a explicação da presença de uma rainha branca (menina) entre os negros. Nesses
saques é bem provável que também pessoas fossem raptadas, sobreviventes fossem
levados para os Quilombos, crianças fossem “adotadas” como filhos. Até os
índios norte-americanos agiam assim.
No dia
seguinte, tanto o povo quanto os índios (e aqui estes estão a serviço de um
chefe branco) começam a rodear a paliçada onde se encontram as coisas roubadas.
A representação segue. Os negros cantam a canção-hino do Quilombo:
Folga nêgo
Branco não
vem cá
Se vié
Pau há de
levá.
Tiririca
Faca é de
cortá
Folga parente
Caboco não é
gente.
Dá-lhe toré
Dá-lhe toré
Faca de ponta
Não mata
mulé.
Siririca
Faca de cortá
Samba nêgo
Branco não
vem cá
Se vié
O diabo há de
levá.
Folga nêgo
Branco não
vem cá
Se vié
Inicia-se o
resgate das coisas roubadas. Os índios e os brancos destroem a paliçada, o
mocambo. É a guerra. Quilombos incendiados, negros mortos por mercenários. É
Palmares. A Rainha-branca prisioneira dos pretos é repatriada. A guerra
continua: negros mal armados com foices (peça tipicamente de agricultura) e
paus enfrentam os índios e caboclos armados com flechas e espingardas.
Todos os
pretos são mortos, o Quilombo destruído, a vitória é dos brancos, os poucos
sobreviventes, mulheres, crianças, velhos, voltam a ser escravizados. Os
prisioneiros são agrilhoados e desfilam pela cidade sendo oferecidos a novos
Senhores pelos caboclos e índios que não sabem o que fazer com um escravo. Eles
também à sua maneira, são escravos. Os pretos velhos que sobreviveram ao
massacre soltam cantos e lamentos:
– Ioiô,
compra nêgo véio...
Alguns são
vendidos e os índios recebem dinheiro e comida em troca. A cachaça corre. A
lamentação prossegue:
– Meu branco
tem pena de nêgo véio...
– Meu branco,
solta o nêgo véio...
Toda epopéia
dos Quilombos, não só de Palmares, foi descrita. A reminiscência da destruição
dos Mocambos negros, da erradicação do sonho de liberdade que durou pouco mais
de trinta anos, o encerramento das repúblicas com que os negros africanos
tentaram recuperar um pouco de dignidade, o fim da primeira luta do escravo
contra a sujeição, o cativeiro, a humilhação de ter sido animalizado.
Muitas vozes
ainda vão se levantar contra o Auto do Quilombo, como muitas se fazem ouvir
contra todas as lutas de libertação empreendidas pelos negros, mesmo hoje, no
limiar dos anos 2000. Não respeitam a condição orgulhosa que o povo pudesse
ter, mesmo agrilhoado e subjugado ao pelourinho. Antes que a cultura negra
fosse reconhecida, antes que sua contribuição étnica para o Brasil fosse
corretamente avaliada, antes que o negro pudesse se sentar na mesma mesa que
seu dominador – antes que autos como o Quilombo pudesse ser representado –
muito sangue, lágrima e suor foram derramados.21
O que o
Quilombo surpreende os estudiosos é que tem a coragem de mostrar uma
guerra suja, na qual seus criadores – os pretos, saem vencidos. Saem mesmo?
Houve vencidos e vencedores? Se holocaustos como a destruição sistemática dos
Quilombos existentes no Brasil mostram vencedores e vencidos, não são os
cadáveres que representam os derrotados. Antes, são os vivos e vitoriosos que
perdem.
Quilombo – o
folguedo – dá esse exemplo. Representar com arte a guerra suja, a derrota, na
qual o derrotado mesmo subjugado pelos vencedores se apresenta de cabeça
erguida como se vitorioso fosse.
Convém não
deixar que esse espírito morra nas representações já escassas dos autos
alagoanos. E, se possível, restituir-lhe a originalidade no que foi violentado
pela raça dominadora. Esse sim deve ser o verdadeiro papel dos folcloristas:
interrogar-se a cada momento o porquê da sobrevivência de um refrão que por si
só resume toda a história dos Quilombos.
“Folga nêgo
Branco não
vem cá Se vié
Pau há de
levá.”
Notas:
Clóvis Moura
– Os Quilombos e a Rebelião Negra – Brasiliense, 1981.
Idem
Apud Théo
Brandão – Quilombo – Cadernos de Folclore n.º 28 – Funarte, 1978.
Alfredo
Brandão – Branco não vem cá – Antologia do Negro Brasileiro – Édison
carneiro (org.) Edições de Ouro, 1967.
Théo Brandão
– Folguedos Natalinos – Quilombo – Universidade
Federal de Alagoas – Museu Théo Brandão, 1976(?)
Théo Brandão
– Quilombo – Cadernos de Folclore n.º 28 – Funarte, 1978.
Idem, idem.
Idem, idem.
Manuel
Diégues Júnior – Etnias e Culturas no Brasil – Civilização
Brasileira, 1977.
Idem, idem.
Alceu Maynard
Araújo – Folclore Nacional – (Vol. 1) Melhoramentos, 1964.
FICHA TÉCNICA:
QUILOMBO – UM AUTO DE SANGUE.
D. O. LEITURA, PUBLICAÇÃO
CULTURAL DA IMPRENSA OFICIAL DO ESTADO SÃO PAULO, 4 (42) NOV. 1985.
NÚMERO ESPECIAL: ZUMBI –
HISTÓRIA E CULTURA NEGRA NO BRASIL D. O. LEITURA;
RUA DA MOOCA, 1.921 – CEP
03103 – SÃO PAULO-SP.
EDITOR: WLADIMIR ARAÚJO.
EDITOR DE ARTE: IONALDO
CAVALCANTI
COMISSÃO DE REDAÇÃO:
EDIMILSON CARDIAL E JOSÉ MARIA DO PRADO.
***22
O AUTO DOS QUILOMBOS
TÉO BRANDÃO
(Diário de Notícias,
19/06/1955)
Um folguedo reputado como característico das Alagoas
e, no consenso da maioria dos estudiosos brasileiros, interpretado como uma
sobrevivência histórica da célebre Tróia Negra que se estabeleceu em terras da
então capitania de Pernambuco, é o Auto ou dança dos quilombos.
Pedro Nolasco Maciel que a ele primeiro se referiu,
bem como Alfredo Brandão e Artur Ramos que o fixaram em descrições consideradas
clássicas, afirmaram categoricamente que o Auto relembrava os quilombos que se
estabeleceram, durante o domínio holandês, na serra da Barriga ou do Barriga e
adjacências, durante quase um século, e que foram, após numerosas expedições,
destruídos pelas forças conjugadas do cabo dos paulistas — mestre de campo
Domingos Jorge Velho e do capitão-mor da capitania de Igaruçu — Bernardo Vieira
de Melo: "Era aquilo um brinquedo tradicional que renovava os quilombos
dos Palmares" (Pedro Nolasco Maciel). "É uma festa puramente alagoana
que relembra um dos fatos mais importantes de nossa história — a guerra dos
Palmares" (Alfredo Brandão). "As populações alagoanas das imediações
da serra da Barriga e dos vales do Mundaú e do Paraíba até hoje guardam a
lembrança, nos autos folclóricos, etc." (Artur Ramos).
Todavia, a verdade é que tais populações não ligam o
folguedo que encenam a tal sucesso histórico. O próprio Artur Ramos, atribuindo
o fato à sobrevivência no inconsciente coletivo ou folclórico, confessa que
"eles ignoravam por completo a significação do Auto dos quilombos. Ou procuravam
uma explicação qualquer, mas sem a menor ligação com a epopéia palmarina".
Constatação que ainda hoje se pode fazer. Por exemplo o ensaiador e rei dos
caboclos do Quilombo apresentado em Maceió, por ocasião da IV Semana Nacional
do Folclore — o Carmelinho, nos dizia que o "brinquedo" fora
inventado por causa dos três Reis Magos (?). Como houvesse o rei dos negros se
casando com uma menina alvinha, o rei dos caboclos, com inveja, pois não
encontrava moça para se casar resolveu, combater os negros para roubar-lhe a
rainha e se casar com ela.
Fato, entre outros, que levou Renato Almeida e Oneida
Alvarenga a apresentarem ressalvas ao autoctonismo alagoano do Auto e à sua
pretendida origem palmarina.
Estranhando a circunstância de celebrar o folguedo uma
luta de negros e índios que nunca tiveram entre si rivalidade ou ódio, e o fato
raro e esquisito de comemorarem aqueles num Auto sua própria derrota, tentou
Renato Almeida explicar a incongruência pelo desvio para o índio (participante
de alguns dos troços de invasores palmarinos) da animosidade que deveria ser
dirigida para os brancos. Oneida Alvarenga sugere também dúvidas sobre a
ligação do Auto com o Quilombo dos Palmares sobretudo ao assinalar sua
semelhança com os cucumbis ou quicumbres que, segundo Guilherme P. de Melo,
celebram lutas entre negros foragidos e índios que os vendiam. Informação
fidedigna de nosso colaborador tenente Manuel Euclides nos confirma que em
Propriá o folguedo tem o nome de cacumbi. Muito provável, pois, a sugestão de
Oneida Alvarenga sobre a terminação primitiva do Auto pela vitória dos negros,
modificada talvez por algum branco que ajustou o Auto já denominado de Quilombo
à realidade ou quase realidade da história palmarina. E, porventura, até mesmo
brancos eruditos tenham batizado com o nome de Quilombo a folguedos em que havia combates de negros e índios, fazendo o
ajustamento histórico como parece terá acontecido com vários outros autos do
Brasil. Ainda agora no inquérito procedido pelo IBGE — Delegacia de Alagoas,
obtivemos dados de um caboclinho de Porto Calvo em que há dois partidos — um de
índios e outros de negros que se degladiam. (sic)
Na capital, o folguedo ocorre, com períodos variáveis
de ausência, em vários arrabaldes e circunscrições: Fernão Velho, Tabuleiro dos
Martins, Trapiche da Barra, Ponta da Terra, Alto do Jacutinga, etc. Aliás, é
deste bairro, então formado quase por duas ou três ruas, que temos a primeira
referência escrita sobre o Auto, no jornal "Cruzeiro do Norte" de 27
de janeiro de 1893. Noticiando a festa de São Gonçalo do Alto do Jacutinga se
diz que: "funcionará um Quilombo em frente à capela e o brinquedo dos
galos".
Note-se que aí o folguedo se realiza numa festa fora
da época natalina. É que com as cavalhadas é dos únicos folguedos que não são
exclusivos do Natal mas aparece em quaisquer festividades públicas, nas festas
dos órgãos, nas grandes festas religiosas das cidade e povoados do interior e
até mesmo sem festas, em funções promovidas por donos de botequim e bares que
se valem da diversão para atrair aos seus estabelecimentos o público que
frequenta, aprecia e assiste comumente o folguedo.
É natural que assim seja. Como a maioria de nossos
autos, o Quilombo é ensaiado e integrado por gente do povo, pela arraia-miúda —
pequenos trabalhadores, mercantes, operários ou marginais: brancos, mulatos,
pretos, caboclos ou cafusos. E a própria assistência, se outrora podia
comportar elementos das classes mais elevadas das vilas e cidades — senhores de
engenho, negociantes e pessoas de prol, atualmente quase que consiste em
pessoas de categoria média ou inferior — pequenos funcionários, empregados
domésticos, pessoas apenas remediadas, etc.
As descrições clássicas e mais conhecidas do Quilombo
são as de Alfredo Brandão em Viçosa de Alagoas, e de Artur Ramos em
Folclore negro do Brasil.
Mas, ao seu lado embora mais sucintas, outras
referências existem sobre o Auto: a de Pedro Nolasco Maciel no romance de
costumes editado em 1890, Traços e troças onde descreve um Quilombo em
Fernão Velho; a de Félix Lima Júnior, no seu excelente artigo sobre o Natal
em Bebedouro (Jornal de Alagoas, 1950) e a de Oscar Silva, no artigo
Os quilombos publicado no mesmo jornal registrando o Auto em
Santana de Ipanema.
Mais completa e com pormenores inexistentes nas
versões até então publicadas, é mesmo com a tradição da maior parte do estado,
é a do folclorista paulistano Alceu Maynard de Araújo publicada no Jornal de
Alagoas e comunicada à Comissão Nacional de Folclore, colhida em Piaçabuçu
onde o arguto e operoso pesquisador fez pesquisas antropológicas e sociais para
a Comissão do Vale do São Francisco.
A versão que procuramos dar, sistematizando melhor a
descrição do Auto, foi colhida através de Camelinho, de Bebedouro, organizador
do grupo apresentado na IV Semana Nacional do Folclore, em 1952, no arrabalde
de Bebedouro.
Aí na grande praça que foi o palco tradicional das
mais animadas festas natalinas do estado e que tem o nome do seu saudoso
animador — Bonifácio Silveira, arma-se o rancho dos negros — uma barraca de
paus roliços, aberta e cercada de palhas. À sua frente, planta-se o jardim ou
sítio — uma carreira de bananeiras, mamoeiros, ladeando a entrada. Bandeirolas
de papel, palhas de coqueiro, bambus, plantas diversas, ornamentam o
"sítio" e o rancho, e dão-lhe um ar mais festivo e alegre. No outro
lado, fica o abrigo dos índios ou caboclos — tapume de varas fechado de palhas
de coqueiro ou galharia de árvores.
E atrás, destaca-se na sua alvura de cal e na
singeleza de suas linhas a velha matriz de Santo Antônio, pano de fundo de
tantas tradições populares.
É geralmente assim, numa praça, largo ou numa rua de
mais amplas proporções que se exibe o Quilombo pois sua ação que implica em
lutas combates de espadas, correrias, danças etc., necessita amplo espaço.
Folguedo de entrecho simples, com pouquíssimas
cantigas e certa independência de ação dos figurantes dentro do desenvolvimento
quase inalterável do Auto, não necessita ele quase de ensaio ou preparo prévio
como as outras danças dramáticas em que há lutas de espadas (reisados,
guerreiros, caboclinhos). Mesmo porque seus ensaiadores são geralmente velhos
dançadores que aliciam também pessoas hábeis como figurantes.
Estes, eram em Maceió, em 1952, no Quilombo de
Camelinho: o rei dos negros, o dos caboclos, a rainha dos negros, a mamãe velha
ou catirina, o papai velho, o vigia dos negros, o espia dos caboclos, o vassalo
dos índios, e, por fim, negros e caboclos num total de 18 figurantes para cada
troço. Já em Viçosa, Alfredo Brandão anotava no começo do século, apenas os
dois reis, a rainha, os caboclos e os negros; e Maynard Araújo registra em
lugar dos vigias e espias — os secretários dos dois reis e o pai do mato em vez
do pai velho. E também um "entremeio" ou "bicho" — a onça.
Quanto aos trajes e implementos constam de calças
curtas de mescla azul, camiseta branca, sem mangas, chapéu de palha de
ouricuri, foice de madeira pintada, para os negros. Para os caboclos — calção e
camisetas tintos de roxo terra, cocar, tanga, braceletes e pulseira de penas,
apetrechos de penas, apetrechos característicos de índios (cabaças, cuias,
arcos e flechas). Os reis trajam-se como reis de reisado ou guerreiro: camisa e
calções de ciré, capa da mesma fazenda enfeitada de cepiguilha dourada e
prateada, guarda-peito enfeitado de espelhos, coroas de aljôfar, ouropel
colorido, areia brilhante e espelhos, espadas da antiga guarda nacional.
A rainha veste-se de branco, levando também
guarda-peito de espelhos, capa amarela comprida e diadema de papelão pintado.
A catirina (homem travestido de mulher) usa saia e
casaco de florões, pano de cor amarrado na cabeça e pinta-se de tiana de
panela.
O papai velho ostenta cabeleira e barba brancas,
cajado e foice nas mãos.
http://www.jangadabrasil.com.br/julho59/fe59070c.htm
(16/12/2009)
******
DA SUPOSTA REMEMORAÇÃO DAS LUTAS DO QUILOMBO DOS PALMARES NO FOLGUEDO QUILOMBO DE ALAGOAS
(EXCERTOS)
ANTONIO ALEXANDRE BISPO
Problemática similar à discutida com relação às
"Bandas de Couro" é aquela que diz respeito a certas tentativas de
interpretação do folguedo natalino denominado "Quilombo", em Alagoas,
no qual também tomam parte os conjuntos instrumentais citados. A questão foi já
suficientemente discutida por vários pesquisadores; a discussão parece, porém,
no presente, retroceder a um nível de politização na análise que já se supunha
superado. Esse retrocesso coincide com a aparência de embasamento científico
que se pretende dar a certas atividades político-sociais e político-religiosas
aliadas ao conceito de Zumbi (cf. prefácio do bispo de Palmares no folheto Palmares
de Liberdade e Engenhos de Escravidão, Caxias do Sul, 1985).
A romantização do correspondente episódio histórico já
se manifesta no artigo "Narração de alguns successos relativos à Guerra
dos Palmares de 1668 a 1680", de João Francisco Cabral, impresso na Revista
do Instituto Archeologico e Geographico Alagoano (N° 7, 1875, 175 ss.).
No I° Congresso Brasileiro de Geografia, em 1914,
Alfredo Brandão tentou demonstrar a localização dos antigos quilombos; no I°
Congresso Afro-Brasileiro de Recife, em 1934, Mario Mello afirmou:
"Em torno dos Palmares paira grande
atmosphera de sympathia." ("A República dos Palmares", 1° vol.,
183-185).
Alagoas se distingue, no presente, pela acentuada
atenção que intelectuais e personalidades da vida pública e eclesiástica
emprestam a questões relativas aos Palmares. Significativo foi, por exemplo, a
ampla cobertura que a imprensa deu à visita do príncipe D. Pedro de Orleans e
Bragança a locais comemorativos dos Quilombos, em 1983.
Théo Brandão (Quilombo, Rio de Janeiro, 1978,
Cadernos de Folclore, 28) já constatou, há muito, claramente:
"A coincidência do nome do Auto ou dança
com a do mais famoso e maior Quilombo existente no Brasil, a grande difusão do
Auto no atual Estado de Alagoas, onde se deu o sucesso histórico, e, até certo
ponto, a similitude do mesmo com o enredo do Auto levaram muito naturalmente os
estudiosos a deduzirem uma origem histórica para o Auto ou Dança dos Quilombos.
A convicção, generalizada até pouco tempo, era de que o Auto representava uma
sobrevivência histórica da célebre Tróia Negra (...)." (pág.4)
Essa seria a convicção, entre outros, de Guilherme
Theodoro de Melo, de Alfredo Brandão e Arthur Ramos. O especialista alagoano
corrige porém essa suposição:
"A verdade, porém, é que tais populações não
guardam a menor lembrança da república negra e da guerra que a ela foi
movida, nem ligam de qualquer modo o folguedo que denominam Quilombo a tal
sucesso histórico." (pág.5)
Segundo ele, poder-se-ia supor uma origem do folguedo
nos autos europeus, uma "reinterpretação brasileira ou mesmo africana
da antiga Mouriscada ou Mouros e Cristãos peninsulares e europeus". (pág.
10)
Abelardo Duarte, porém, no seu livro já citado, Folclore
Negro das Alagoas (pgs. 373ss.), tece reflexões a respeito e, sem dar
argumentos convincentes, afirma peremptoriamente:
"Acredito que o Auto dos Quilombos seja
de inspiração histórica e não vale a pena tentar mais uma hipótese para
explicá-los. Os fatos o demonstram sobejamente." (pág. 379)
Os fatos e os documentos porém não o demonstram e essa
afirmação não pode ser aceita cientificamente. Trata-se de mais um
mal-entendido histórico causado por uma obsessão de natureza antropológica de
cunho biologístico. Trata-se, também, como já observou Théo Brandão, sobretudo
de um mal-entendido criado pela denominação do folguedo. Por outro lado,
trata-se, pelo que tudo indica, de uma insuficiente consideração do fenômeno de
formação de quilombos em Alagoas no contexto mais amplo do mundo de influência
portuguesa no Congo/Angola da época.
A palavra "Quilombo" (kilombo) dizia
respeito, em meados do século XVI, ao tipo de acampamento fortificado utilizado
pelos jagas, povo africano de discutida origem e que, sempre em movimentação
guerreira, constituiu sempre severa ameaça à existência do reino cristão do
Congo. As notícias referentes a esse povo são misturadas com concepções
possivelmente lendárias. Consta que possuíam um único líder, Zimbo; que seguiam
uma determinada lei (Kigila) imposta por uma rainha proveniente de outra
região; que matavam inicialmente os próprios filhos masculinos, adotando
aqueles aprisionados dos povos atacados; com os restos de meninos queimados
vivos faziam a pomada "Magi-a-Samba", com a qual ungiam os seus
corpos. Mais tarde, a prática do assassínio dos próprios filhos masculinos
teria sido substituída por uma cerimônia de resgate simbólico que lhes dava o
direito de considerá-los como presa de guerra (Graziano Saccardo, Congo e Angola:
con la storia dell‘antica missione dei Cappuccini 1, Venezia-Mestre, 1982,
60). Durante o grande ataque ao Reino do Congo (1571-1573), foram eles
combatidos pelos congoleses com auxílio de exército português enviado por D.
Sebastião. Os jagas, ao invés de retornarem a sua terra de origem, se
refugiaram junto a povos afins ao Sul do Congo, ocupando Matamba e a região do
alto Cuanza e penetrando no reino de Ndongo. Com isso, a história de Angola
(Ngola, aqui vista na sua oposição ao reino do Congo, não como o futuro Estado)
se mistura com a dos jagas, sobretudo sob a ação da rainha Njinga-Mbandi-Ngola
(1582-1663). Batizada sob o nome de D. Ana de Sousa, essa guerreira
"Senhora de Ndongo" passou posteriormente à lei dos jagas, também
vivendo em "quilombos" e mantendo um corpo de jovens vestidos com
saias.
Já esses dados provenientes da mesma época da formação
dos quilombos em Alagoas, época de domínio da Espanha e de conflitos com
holandeses em ambos os lados do Atlântico indicam que uma eventual
interpretação histórica da tradição dos quilombos não pode ser procurada
exclusivamente do lado brasileiro.
Vários aspectos dessa tradição parecem lembrar os
fatos considerados, sobretudo a estrutura básica de luta dos "índios
vencedores" com o seu rei trazendo roupas européias contra os negros nos
quilombos; possuem uma rainha branca e o motivo é o do resgate de objetos e de meninos
roubados pelos negros.
Lembrando da hipótese de uma vinculação com os
Cucumbis levantada por Oneyda Alvarenga, poder-se-ia citar ainda a circuncisão
de meninos e, aceitando-se a similaridade detectada por vários folcloristas com
as tradições dos Congos e Congadas, o aparecimento, em alguns desses últimos
grupos, da figura da Rainha Ginga, motivos porém não constatados no folguedo de
Alagoas.
Tudo indica, portanto, que motivos históricos (não
ligados diretamente com acontecimentos do Palmares) foram adaptados a uma
estrutura herdada de tradições européias. Estas diziam respeito às muito
divulgadas representações da Guerra de Tróia com o rapto de Helena, jogos
provenientes da Antiguidade (labirintos, caracóis e outros) e que receberam no
decorrer dos séculos re-interpretação cristã, ligada sobretudo com as festas da
Epifania. Por mais estranho que pareça aos intelectuais, a razão está com um
dos representantes do próprio folguedo, citado por Théo Brandão:
"O brinquedo foi inventado por causa dos
três Reis Magos: o Rei do Caboclo, o Rei Negro e o Rei de Nação." (pág.5)
Não se trata, nessa discussão, do problema da
"ignorância" de fatos históricos alagoanos por parte dos
participantes do Quilombo. Trata-se, antes, de um problema dos estudiosos da
cultura: do querer conscientemente ignorar tradições européias medievais já
sobejamente estudadas.
(...)
http://www.revista.akademie-brasil-europa.org/CM11-09.htm (16/12/2009)
***
DANÇA DO QUILOMBO: OS SIGNIFICADOS DE UMA
TRADIÇÃO
(EXCERTOS)
DEMIAN MOREIRA REIS
OS FOLCLORISTAS E A DANÇA DO
QUILOMBO
Vamos discutir um pouco o olhar folclorista sobre a
dança do Quilombo. Há uma polêmica comum entre os estudiosos, sejam eles
folcloristas, literatos, musicólogos ou cientistas sociais, sobre a possível
historicidade da dança. O questionamento dessa historicidade deriva basicamente
da abordagem folclórica à qual a dança é submetida. Tentarei apresentar, em
ordem cronológica, os autores e os argumentos que eles utilizam em suas
definições do Quilombo, de modo a mostrar as divergências e os consensos no
aspecto da historicidade da dança.
De acordo com Alfredo Brandão - o primeiro folclorista
a nos fornecer, em 1914, uma descrição da dança em Viçosa de Alagoas - "o
Auto popular dos quilombos é uma festa puramente alagoana que relembra um dos
factos mais importantes da nossa história - a guerra dos Palmares ...". O
fato da Dança do Quilombo ser original de Alagoas, somado ao fato de ter sido
em Alagoas o Quilombo dos Palmares, e o enredo do Auto contar a história de um
mocambo de negros que é destruído por índios, são os elementos que convencem
Alíredo Brandão de que o Auto pelo menos "relembra" a guerra dos
Palmares. Portanto, de acordo com ele, o Auto do Quilombo possui uma historicidade
que, de alguma forma, o liga ao fato histórico da guerra dos Palmares.
Arthur Ramos, por sua vez, concordando com Alfredo
Brandão em relação a historicidade do Quilombo, considera o Auto uma
"sobrevivência histórica dos negros no Brasil, que "relembra" o
acontecimento de Palmares. Ramos, já influenciado pela psicanálise, localiza a
historicidade do Auto do Quilombo no "inconsciente coletivo" dos
negros de Alagoas. O autor vai além de Alfredo Brandão, pois efetivamente
sugere uma continuidade na memória das populações que habitam as imediações da
serra da Barriga e dos vales do Parahyba e Mundaú, que se expressaria nos autos
folclóricos. Arthur Ramos chega mesmo a dizer: "No Auto, poderemos até
certo ponto recompor a vida dos negros confederados no Quilombo célebre, cuja
história não foi sufficientemente escripta."
Apesar de afirmar que o Auto do Quilombo é uma
sobrevivência histórica da guerra dos Palmares que nos permite, até certo
ponto, recompor a vida dos negros palmarinos, Ramos situa essa “lembrança"
no inconsciente folclórico, pois nenhum dos negros a quem ouviu "tinha a
menor noção das luctas históricas dos Palmares. Elles ignoravam por completo a
significação do Auto dos quilombos. Ou procuravam uma explicação qualquer, mas
sem a menor ligação com a epopéia palmarina". Portanto, segundo Ramos, a
memória do acontecimento histórico de Palmares está presente no Auto dos
quilombos, mas não na memória consciente das populações do interior de Alagoas.
Renato Almeida, outro comentador da dança dos
quilombos, aceita a ideia de que ela é uma sobrevivência inconsciente, mas
acredita que seja insuficiente o argumento que Ramos usa para explicar a
rivalidade entre negros e índios. Segundo Ramos, esta animosidade provém da
expedição organizada pelo governador da capitania d. Pedro de Almeida, e da
qual faziam parte soldados, índios, pardos da Ordenança e pretos do capitão
Henrique Dias. Almeida não considera esse fato relevante, e sugere a
possibilidade de imaginação popular aumentar as proporções dos fatos secundários,
dando-lhes importância essencial. Em seguida Almeida lança a hipótese de que o
folguedo teria sido criado por senhores de engenho para
servir de advertência aos escravos. Daí a substituição do inimigo tradicional
dos negros - entenda-se os brancos - pelos índios. O autor admite, no entanto,
a falta de base histórica para confirmar a hipótese.
Para Mário de Andrade, a dança do Quilombo não
representa uma inspiração direta do caso histórico de Palmares. Ele vê no rapto
e na reconquista da mulher branca a repetição de um "motivo temático"
que faz parte de outras danças tradicionais: "É o rapto e a reconquista da
princesinha cristã, muito frequente na parte dramatizada das Cavalhadas. E o
rapto e a reconquista da Salôia que ocorre em algumas Cheganças. Já o argumento
de lutarem entre si negros e índios no Quilombo parece indicar o caso histórico
de Palmares. Mas também eu creio se tratar de um motivo temático, pois de
índios e de negros em combate, existem outras danças dramáticas no centro do
país [...I. Tudo isto não impede, está claro, que a dança do Quilombo tenha o
seu fundamento histórico, a única das nossas danças dramáticas que se inspira
num fato da história brasileira."
Mário de Andrade usa o princípio da luta entre o Bem e
o Mal para explicar a luta entre índios e negros, enquanto o rapto e resgate da
mulher branca se ligam ao "motivo temático" presente nas cavalhadas e
nas cheganças. Assim, sua interpretação vai no sentido dos princípios gerais
que se repetem aqui e acolá.
Para Oneyda Alvarenga, a dança do Quilombo se inspira
incontestavelmente no fato histórico dos quilombos, mas defende que não há
elemento capaz de sustentar que o Auto celebre, particularmente, o Quilombo dos
Palmares. Alvarenga descarta o argumento geográfico sustentado por Alfredo
Brandão e Arthur Ramos, que se baseiam na coincidência de Auto tematizar o
Quilombo e ao mesmo tempo se originar em Alagoas, onde existiu Palmares. Oneyda
parece aceitar a ideia, lançada por Renato Almeida, de que o Auto seria uma
manipulação dos senhores com o objetivo de conter as fugas e o aquilombamento
dos negros e desviar seu ódio para os índios, já que viam na dança uma
celebração da derrota dos negros e a afirmação de uma animosidade entre índios
e negros. Em relação ao segundo aspecto da dança, Alvarenga aponta para um
possível paralelismo, presente na poesia popular, onde o preconceito de cor
antinegro sustenta que índios e caboclos são superiores aos negros. Assim, a
agressão mútua entre índios e negros é confirmada num outro âmbito cultural, o
do racismo.
Alceu Maynard Araújo ainda trabalha com a ideia de que
o Auto do Quilombo "relembra as lutas e os anseios de liberdade dos negros
escravos que um dia se refugiaram nas florestas de Palmares." E continua:
"Duzentos e tantos anos depois, os 'caboclos' , os 'pretos', os 'catirina'
ladrões, os 'pais-de-mato', no seu bailado que se apresenta na ribalta da praça
pública, mostram-nos que os entremezes desta dança dramática de hoje são
fragmentos do episódio histórico da 'Tróia Negra', farrapos da Ilíada alagoana,
escrita com o sangue de milhares de negros, índios e brancos, sabiamente
aproveitado do catequista que além de teatralizá-la não se esqueceu de fixar
certos preceitos religiosos como o da ressurreição.'' Nesta versão os negros
são todos mortos pelos índios mas o rei dos caboclos os faz ressuscitar com folha-de-
mato, agora como escravos prontos para serem vendidos.17 Araújo aceita o modelo
de historicidade do Auto que o identifica com o acontecimento de Palmares, mas
determina um elemento novo como criador da dança: o catequista. O episódio da
ressurreição, presente na versão de Piaçabuçu, confirmaria a intervenção
catequista.
Até aqui a polêmica em torno do Quilombo, no aspecto
da historicidade, incide na possível origem histórica do Auto nos
acontecimentos de Palmares.
Essa historicidade é percebida do ponto de vista da
localização geográfica e da identificação dos prováveis criadores da dança.
Quando os autores percebem a historicidade a partir da
geografia, eles tendem a associar o tema do Auto - o massacre de um mocambo de
negros - com o lugar em que ela foi apresentada - interior de Alagoas, região
onde sabe-se por evidência histórica que existiu o que ficou conhecido como o
Quilombo dos Palmares. Quando os autores percebem a historicidade a partir da
tentativa de identificar os criadores da dança, tendem a enxergar influência
branca, pois para eles trata-se de um folguedo em que os negros celebram sua
própria derrota pelos índios. A animosidade entre índios e negros confirmaria
definitivamente a origem do folguedo negro enquanto manipulação branca.
Já Edison Carneiro se posiciona da seguinte forma: o
Auto "parece ser uma adaptação semi-erudita do Auto dos Congos para
comemorar a vitória das armas luso-brasileiras contra o Quilombo dos
Palmares."18 Carneiro coloca que a dança tinha como objetivo "criar
uma consciência contra as insurreições de escravos, que por todo o século XVII
intranquilizaram a região." Nesse sentido o conteúdo da peça não possui
verdade histórica do ponto de vista dos negros escravos, prováveis dançadores
da época.
Seu argumento principal contra a historicidade
palmarina é que os índios que combateram os quilombolas em algumas expedições
na Serra da Barriga não eram de Alagoas ou Pernambuco, pois os índios da região
fizeram amizade com os palmarinos, inclusive lutando à favor dos seus mocambos.
Por outro lado, a população sabia que eram as tropas
de linha que se embrenhavam nas matas perseguindo os quilombolas e não os
índios. Por último, sendo o Zumbi um chefe muito popular, se o Auto fosse de
criação puramente negra, ele ressaltaria o Zumbi como herói. É interessante
perceber que Carneiro nega a historicidade da dança como uma criação puramente
popular, mas identifica na manipulação branca uma tentativa de controlar formas
de resistência negra à escravidão, como insurreições escravas, o que de certa
forma devolve historicidade aos escravos de Alagoas.
Abelardo Duarte, traz uma novidade na interpretação do
Quilombo. Começa concordando com a ideia de que o Auto é uma
"sobrevivência histórica", já que evocaria episódios da guerra dos
Palmares. Seguindo a trilha de Arthur Ramos, Duarte também situa o Auto no
inconsciente folclórico, de modo que sua significação estaria fora do alcance
dos praticantes.
Acrescenta, no entanto, que o Auto usa elementos
lendários presentes na literatura oral da região dos vales do Jacuípe, Mundaú e
Paraíba. Por exemplo, refere-se a lenda de que Zumbi vivia com uma moça branca
que foi raptada de uma engenho de Porto Calvo. Com relação à participação
indígena no enredo, mostra que está em sintonia com os acontecimentos
históricos, pois descobriu um documento de 1864 que relata uma reivindicação
por parte dos descendentes dos Tapuias do terço dos paulistas de Domingos Jorge
Velho, "Índios que se aldearam por toda a vasta região do velho 'distrito
dos Palmares'." Eis o que diz sobre o documento: " Em 1864, o major e
procurador dos índios, cidadão índio José Lopes da Silva, dirigindo uma
reclamação ao imperador Dom Pedro 11 sobre a apropriação de terras nas aldeias
indígenas de sua jurisdição por parte de terceiros, dizia textualmente que 'na
Província Alagoas existiam as Aldeias de Atalaia, Urucu, Limoeiro, Palmeiras,
Colégio e Jacuí, compreendendo cerca de 147.736 fogos, ocupando o vasto
território outrora dominado pelos prófugos de Palmares, expulsos estes pelos
esforços e sacrifícios dos índios, fundando estes as aldeias referidas,
etc."
O que sugere que o Auto seria então uma celebração
indígena de sua vitória sobre os palmarinos e não uma celebração negra de sua
derrota frente aos índios. É uma pena que Duarte apenas indique, sem precisar,
que o documento foi encontrado no Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico
de Alagoas, mas pelo menos foi o primeiro até aqui a relacionar
o significado do enredo a uma informação histórica concreta, dois séculos distantes
do fim de Palmares. A referência a aldeia de Limoeiro, por exemplo, é
interessante, pois na minha breve pesquisa de campo tive a oportunidade de
presenciar a encenação da dança do Quilombo precisamente na atual cidade de
Limoeiro de Anadia, no dia 20 de janeiro de 1995.
Theo Brandão publicou o texto de maior fôlego sobre o
Auto do Quilombo. Seu trabalho, seguindo a linha das abordagens folclóricas,
oferece mais etnografia do que análise. Reúne e transcreve fontes e posições de
folcloristas, historiadores e estudiosos que se debateram com o assunto e
finaliza com suas próprias observações de um Auto do Quilombo em Bebedouros,
bairro tradicional de Maceió. Na parte que dedica aos dados históricos do
Quilombo, acaba rejeitando as teses de que o Auto pertence ao inconsciente
coletivo, ou que fosse uma sobrevivência histórica do Quilombo dos Palmares,
principalmente devido a ignorância por parte dos próprios dançadores sobre os
acontecimentos de Palmares. Valoriza a ideia de que se trata de um Auto de
influência branca, e menciona particularmente a sugestão de Oneyda de que é
possível supor que a prisão do rei negro após sua morte e ressurreição, parte
final da encenação, fosse uma parte introduzida a partir de elementos
semi-eruditos, provavelmente feita no final do século XIX.
Concordo quanto a possíveis modificações, mas esta não
fora feita no final do século XIX, pois há registros de que desde 1844 o enredo
do Quilombo acaba com a escravização dos negros aquilombados, informação que
inclusive consta do próprio texto de Theo Brandão.
A interpretação mais recente que encontrei sobre a
dança do Quilombo de Alagoas foi publicada em 1983 por Dirceu Lindoso. O que
nos interessa no seu livro sobre rebeliões de pobres em Alagoas, entre 1832 e
1850, é o capítulo que dedica à "Copla do 'Folga Negro' e a Menina Branca.
"O autor prefere negar que o conteúdo da peça possa relembrar com
inteireza a guerra dos Palmares do século XVII, porém levanta alguns pontos que
acredita serem situações análogas: o nome dado a peça, Quilombo, a existência
de guerreiros e um rei negros, a referência contra os brancos na copla, a
derrota do rei negro e a destruição do Quilombo. Por outro lado, aponta outros
três episódios da encenação contrários ao argumento de que relembra Palmares: a
existência de uma rainha-menina-branca, a defesa da rainha-menina-branca pelos
índios e a dança do toré em oposição a copla do "folga negro". Acaba
afirmando, no entanto, que esses três elementos da encenação poderiam ser
explicados, como já apontara Abelardo Duarte, pela "lenda que conta que
Zumbi tomava, como mulher, uma mulher branca raptada em Porto Calvo. 0s
caboclos guerreiros são os índios do Terço Paulista de Domingos Jorge Velho,
que combateram os mocambos dos Palmares.
Mas Lindoso está convencido de uma outra visão sobre a
dança do Quilombo, que a coloca mais próxima de uma técnica pedagógica branca
de inferiorizar a condição negra frente ao sistema
"sesmeiro-escravista".
Acha absurda a hipótese de que a encenação fosse uma
criação apenas de escravos negros, porque ela ressalta a sua derrota e não a
sua vitória. A manifestação Iúdica seria um canal para se "interiorizar
nos negros e outros pobres a imagem de sua miséria como fato natural, e não um
inconsciente produto histórico e social." De certa forma Lindoso está
recolocando a interpretação de Edison Carneiro, porém especificará melhor a sua
argumentação.
Aponta que essa técnica pedagógica de redução social
teria como alvo os mocambos dos Papa-Méis, de Alagoas, e dos malunguinhos da
mata do Catucá, de Pernambuco. Os negros Papa-Méis participaram da guerra dos
Cabanos de 1832 a 1836, que ocorreu entre o norte de Alagoas e o sul de
Pernambuco, e malunguinho era o nome dado aos escravos que formaram
mocambos ao redor do Recife, entre 1828 e 1836. A coincidência cronológica
entre esses dois eventos e a semelhança das forças sociais mobilizadas serão
retomadas com o fim de avançar ria análise dos significados da dança do
Quilombo num outro trabalho.
SUGESTÕES PARA UMA REINTERPRETAÇÃO DA DANÇA DO QUILOMBO
Uma análise histórica sobre a dança do Quilombo
deveria procurar desvendar seus significados num determinado contexto e, se
possível, uma busca de fontes primárias sobre a vida dos escravos (quilombolas
em potencial) e índios, tanto os que se aliavam aos negros quanto os que eram
mandados para lutar contra eles. Tomemos, por exemplo, um registro de 1851:
"Tradições. Costuma-se fazer nesta Província uma brincadeira tosca chamada
os Quilombos que neste ano se fez também nesta capital consistindo em um
arremedo do assalto dos índios aos Negros, que depois de vencidos se vendem aos
espectadores. Isso é uma recordação que o povo tem conservado desde aquela
época até o presente. (158 anos depois do sucesso!) e que se fora bem
desempenhado seria uma função provincial relativamente moralizadora". O
registro fala que se a dança "fora bem desempenhado seria uma função
provincial relativamente moralizadora."
Essa afirmação nos deixa duas dúvidas quanto a sua
eficácia moralizadora: primeiro se ela não for bem desempenhada não terá uma
função moralizadora e não a tendo teria outra função, não-moralizadora ou
desmoralizadora, do ponto de vista de um funcionário público provavelmente
branco e livre. Mas do ponto de vista dos encenadores, provavelmente negros livres
ou escravos, quem sabe a dança cumpria uma função.
Um segundo ponto é que, ao colocar a frase no
pretérito imperfeito - "seria" - o autor do registro está sugerindo
que a dança poderia ser moralizadora, mas não está sendo. Portanto, estaria
prevalecendo a outra moral - talvez uma moral mais próxima dos interesses dos
negros, libertos ou escravos - ou a imoralidade do ponto de vista de um branco
livre.
Com respeito a "moralidade" temos ainda a
noticia da postura que proíbe a dança em Marechal Deodoro, em 1839, alguns anos
depois da guerra dos Cabanos e da destruição dos mocambos do malunguinho:
"Art. 11 - Fica proibido o bárbaro e imoral espetáculo denominado -
Quilombo. Os contraventores sofrerão a pena de oito dias de prisão e multa de
dois mil réis e sendo escravos serão seus senhores obrigados a multa
somente."
Teríamos que ter uma ideia mais precisa do que quer
dizer 'bárbaro e imoral" no espetáculo do Quilombo para os que
reivindicavam a sua proibição.
Quem sabe a encenação naquele momento estivesse ligada
a uma outra ordem de acontecimentos? Será que nessa versão afinal eram os
quilombolas que venciam e, a partir das proibições, os artistas adaptaram a
estrutura dramática a uma forma "moralizadora"? A indicação de uma
pena diferenciada para escravos e livres ou libertos mostra que provavelmente
brincavam livres e escravos juntos: será que o ritual da encenação abolia
perigosamente as fronteiras entre escravos e negros livres? O certo é que para
as autoridades e os fazendeiros, a quebra dessas fronteiras era vista como
ameaça, pois poderia mobilizar forças que ameaçassem a escravidão.
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