Polítipo
Pobre Boaventura! Jamais o
caiporismo encontrou asilo tão cômodo para as suas traiçoeiras manobras como
naquele corpinho dele, arqueado e seco, cuja exiguidade física, em contraste
com a rara grandeza de sua alma, muita vez me levou a pensar seriamente na
injustiça dos céus e na desequilibrada desigualdade das coisas cá da terra.
Não conheci ainda criatura de
melhor coração, nem de pior estrela. Possuía o desgraçado os mais formosos
dotes morais de que é susceptível um animal da nossa espécie, escondidos,
porém, na mais ingrata e comprometedora figura que até hoje viram meus olhos
por entre a intérmina cadeia dos tipos ridículos.
O livro era excelente, mas a
encadernação detestável.
Imagine-se um homenzinho de
cinco pés de altura sobre um de largo, com uma grande cabeça feia, quase sem
testa, olhos fundos, pequenos e descabelado; nariz de feitio duvidoso, boca sem
expressão, gestos vulgares, nenhum sinal de barba, braços curtos, peito
apertado e pernas arqueadas; e ter-se-á uma ideia do tipo do meu malogrado
amigo.
Tipo destinado a perder-se na
multidão, mas que a cada instante se destacava justamente pela sua
extraordinária vulgaridade; tipo sem nenhum traço individual, sem uma nota própria,
mas que por isso mesmo se fazia singular e apontado; tipo, cuja fisionomia
ninguém conseguia reter na memória, mas que todos supunham conhecer ou já ter
visto em alguma parte; tipo a que homem algum, nem mesmo aqueles a quem o
infeliz, levado pelos impulsos generosos de sua alma, prestava com sacrifício
os mais galantes obséquios, jamais encarou sem uma instintiva e secreta ponta
de desconfiança.
Se em qualquer conflito, na
rua, num teatro, no café ou no bonde, era uma senhora desacatada, ou um velho
vítima de alguma violência; ou uma criança batida por alguém mais forte do que
ela, Boaventura tomava logo as dores pela parte fraca, revoltava-se indignado,
castigava com palavras enérgicas o culpado; mas ninguém, ninguém lhe atribuía a
paternidade de ação tão generosa. Ao passo que, quando em sua presença se
cometia qualquer ato desairoso, cujo autor não fosse logo descoberto, todos
olhavam para ele desconfiados, e em cada rosto o pobre Boaventura percebia uma
acusação tácita.
E o pior é que nestas ocasiões,
em que tão injustamente era tomado por outro, ficava o desgraçado por tal modo
confuso e perplexo, que, em vez de protestar, começava a empalidecer, a engolir
em seco, agravando cada vez mais a sua dura situação.
Outro doloroso caiporismo dos
seus, era o de parecer-se com todo o mundo. Boaventura não tinha fisionomia
própria; tinha um pouco da de toda a gente. Daí os quiproquós em que ele apesar
de tão bom e tão pacato, vivia sempre enredado. Tão depressa o tomavam por um
ator, como por um padre, ou por um barbeiro, ou por um polícia secreto;
tomavam-no por tudo e por todos, menos pelo Boaventura da Costa, rapaz
solteiro, amanuense de uma repartição pública, pessoa honesta e de bons
costumes.
Tinha cara de tudo e não tinha
cara de nada, ao certo. A circunstância da sua falta absoluta, de barba
dava-lhe ao rosto uma dúbia expressão, que tanto podia ser de homem, como de
mulher, ou mesmo de criança. Era muito difícil, senão impossível,
determinar-lhe a idade. Visto de certo modo, parecia um sujeito de trinta anos,
mas bastava que ele mudasse de posição para que o observador mudasse também de
julgamento; de perfil representava pessoa bastante idosa, mas, olhado de
costas, dir-se-ia um estudante de preparatórios; contemplado de cima para baixo
era quase um bonito moço, porém, de baixo para cima era simplesmente horrível.
Encarando-o bem de frente,
ninguém hesitaria em dar-lhe vinte e cinco anos, mas, com o rosto em três
quartos, afigurava apenas dezoito. Quando saía à rua, em noites chuvosas, com a
gola do sobretudo até às orelhas e o chapéu até à gola do sobretudo, passava
por um velhinho octogenário; e, quando estava em casa, no verão, em fralda de
camisa, a brincar com o seu gato ou com o seu cachorro, era tirar nem pôr, um
nhônhô de uns dez ou doze anos de idade.
Um dia, entre muitos, em que a
polícia, por engano, lhe invadiu os aposentos, surpreendeu-o dormindo, muito
agachadinho sob os lençóis, com a cabeça embrulhada num lenço à laia de touca,
e o sargento exclamou comovido:
– Uma criança! Pobrezinha!
Como a deixaram aqui tão desamparada!
De outra vez quando ainda a
polícia quis dar caça a certas mulheres, que tiveram a fantasia de tomar trajos
de homem e percorrer assim as ruas da cidade, Boaventura foi logo agarrado e só
na estação conseguiu provar que não era quem supunham. Outra ocasião, indo
procurar certo artista, de cujos serviços precisava, foi recebido no corredor
com esta singularíssima frase:
– Quê? Pois a senhora tem a
coragem de voltar?… E quer ver se me engana com essas calças?
Tomara-o pela pobre, a quem na
véspera havia despedido de casa.
Não se dava conflito de rua,
em que, passando perto o Boaventura, não o tomassem imediatamente por um dos
desordeiros. Era ele sempre o mais sobressaltado, o mais lívido, o mais
suspeito dos circunstantes. Não conseguia atravessar um quarteirão, sem que
fosse a cada passo interrompido por várias pessoas desconhecidas, que lhe davam
joviais palmadas no ombro e na barriga, acompanhando-as de alegres e risonhas
frases de velha e íntima amizade.
Em outros casos era um credor
que o perseguia, convencido de que o devedor queria escapar-lhe, fingindo não
ser o próprio; ou uma mulher que o descompunha em público; ou um agente
policial que lhe rondava os passos; ou um soldado que lhe cortava o caminho supondo
ver nele um colega desertor.
E tudo isto ia o infeliz
suportando, sem nunca aliás ter em sua vida cometido a menor culpa.
Uma existência impossível!
Se se achava numa repartição
pública, tomavam-no, infalivelmente, pelo contínuo; nas igrejas passava sempre
pelo sacristão, nos cafés, se acontecia levantar-se da mesa sem chapéu,
bradava-lhe logo um consumidor, segurando-lhe o braço:
– Garção! Há meia hora que
reclamo que me sirva.
Se ia provar um paletó à loja
do alfaiate, enquanto estivesse em mangas de camisa, era só a ele que se
dirigiam as pessoas chegadas depois. Nas muitas vezes que foi preso como
suposto autor de vários crimes, a autoridade afiançava sempre que ele tinha
diversos retratos na polícia. Verdade era que as fotografias não se pareciam
entre si, mas todas se pareciam com Boaventura.
Num clube familiar, quando o
infeliz já no corredor, reclamava do porteiro o seu chapéu para retirar-se, uma
senhora de nervos fortes chegou-se por detrás dele na ponta dos pés e
ferrou-lhe um beliscão.
– Pensas que não vi o teu
escândalo com a viúva Sarmento, grandíssimo velhaco?!
O mísero voltara-se
inalteravelmente, sem a menor surpresa. Ah! ele já estava mais habituado
àqueles enganos.
Que vida!
Afinal, e nem podia deixar de
ser assim, atirou-se ao mar.
No necrotério, onde fui por
acaso, encontrei já muita gente; e todos aflitos, e todos agoniados defronte
daquele cadáver que se parecia com um parente ou com um amigo de cada um deles.
Havia choro a valer e, entre o
clamor geral, distinguiam-se estas e outras frases:
– Meu filho morto! Meu filho
morto!
– Valha-me Deus! Estou viúva!
Ai o meu rico homem!
– Ó senhores! Ia jurar que
este cadáver é o do Manduca!
– Mas não me engano! é o meu
caixeiro!
– Dir-se-ia que este moço era
um meu antigo companheiro de bilhar!…
– E eu aposto como é um velho,
que tinha um botequim por debaixo da casa onde eu moro!
– Qual velho, o que! Conheço
este defunto. Era estudante de medicina! Uma vez até tomamos banho juntos, no
boqueirão. Lembro-me dele perfeitamente!
– Estudante! Ora muito
obrigado! há mais de dois anos chamei-o fora de horas para ir ver minha mulher
que tinia de cólicas! Era médico velho!
– Impossível! Afianço que este
era um pequeno que vendia jornais. Ia levar-me todos os dias a “Gazeta” à casa.
É que a morte alterou–lhe as feições.
– Meu pai!
– O Bernardino!
– Olha! Meu padrinho!
– Jesus! Este é meu tio José!
– Coitado do padre Rocha!
Pobre Boaventura! Só eu
compreendi, adivinhei, que aquele cadáver não podia ser senão o teu, ó triste
Boaventura da Costa!
E isso mesmo porque me pareceu
reconhecer naquele defunto todo o mundo, menos tu, meu desgraçado amigo.
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