Pescadores
Ele era de terras em que o cerúleo mar ora dormia, ora
bramia, atravessado por batéis veleiros, onde pescadores iam, ora todo azul —
espelho do dia — ora de prata — espelho do luar — ouvindo cantilenas de
navegantes à Nossa Senhora, murmúrios de ondas que se juntavam fazendo ressaltar
outras ondas. Falava com admiração do velho oceano e dizia, com voz comovida,
rezas de pescadores amorenados que tinham as suas habitações na praia: um
renque de palhoças que ao escurecer mostravam dentro luzes — o pescador chegado
do mar contava a travessia que fizera — partido, o sol no levante róseo,
chegado, no róseo poente o sol; a pescaria fora boa... ou fora má, que
desgraça! No canto da palhoça, ouvia-os uma Virgem Maria, rústica e feia, muito
simples, sem bordados e iluminada apenas pelos olhos dos pescadores que traziam
o reflexo perene da vaga e que a olhavam crentes e cheios de fé na Santa boa
que protegia os seus filhinhos e a sua companheira, quando partiam no barco,
acompanhados a princípio pelos olhos amigos que ficavam em terra, acompanhados
depois pelas gaivotas e pelas ondas. Uma vez houve um naufrágio.
Foi por uma noite negra, muito negra; estrelas, não as
havia, e não havia lua; tudo escuro, muito escuro, e o vento chibatando o ar,
fazendo chorar as arvores; quando aplacava sua fúria, os demônios soltos no
espaço podiam ouvir, transidos de susto, as preces que se elevavam das
palhoças, pedindo o amparo de Maria, a santa rústica, que não tinha bordados e
que só era iluminada pelos olhares dos pescadores.
Um
destes retardara-se no mar — o Nicolau, um grande, forte, de barba áspera e
negra, espaduas largas e olhos meigos — e... Nossa Senhora da Bonança o
proteja!... ainda não voltara.
A sua casa era a última, no fim da praia; encostava-se a um
rochedo em cujo cimo uma cruz de pau apodrecia de tão antiga que já era,
conhecida que fora pela avó do mais antigo pescador de agora — o Rui de Deus,
que de envelhecer no mar ficara branquinho como ele, e que, nesta noite também,
na sua casita, prostrado perante um pequeno crucifixo, pendurado em baixo de
uma oreografia representando um vapor, balbuciava baixinho, um sorriso bom
fazendo-lhe um raio de esperança no seu rosto ancestral: “Ô, ô! Nicolau
voltará, voltará; o meu Jesus nunca faltou ao seu velho servo” — confiado como
estava nesse valetudinário madeiro, nessa cruz que se esverdinhava da água da
chuva, caindo sobre ela, do teto, há anos sem conta; viera-lhe da avó, a mesma
que já conhecera de tradição a cruz do alto do rochedo, onde se apoiava a casa
do Nicolau, o pescador perdido, donde se eleva agora uma estranha oração, a mais
sincera e a que mais comove — quatro crianças e uma mulher choram e o eco chora
também.
São quatro crianças que crescem e que serão pescadores,
educados amando o mar livre, e ouvindo à tarde, quando no céu, que dizem que é um
grande oceano, naufraga o sol, histórias de marujos, histórias de marítimos: —
do marujo que se perdeu numa ilha que só o Senhor conhece e que lá viu um dia
num regato calmo, sobre que se inclinava para beber, que tinham embranquecido
seus cabelos e que se tinham enchido suas faces de rugas, regatos por onde,
então, correram copiosas lágrimas... lá morreu e os corvos fizeram-lhe uma sepultura
negra; a história do grumete noivo que, com cinco companheiros, entre os quais
um irmão, vagava num mar sem limites, num batei, depois de um sinistro;
acabadas as provisões, sorteando-se um a morrer, senão morreriam todos de fome,
foi ele o sorteado; mataram-no; duas horas depois apareceu ao longe um tênue
fio de terra; remaram jubilosos e o irmão do grumete morto, em pé, com as mãos
tapando o sol, procurava distinguir que lugar era: era a sua praia- natal,
feliz acaso! e em terra a noiva do grumete, tendo já distinguido o irmão de seu
noivo, chorava de alegria e dizia a uma velhinha perto, que olhava em êxtase
agradecido ao céu: — “Agora, velhinha mama, padre Bento nos casa; ele não
morreu, seu irmão nos acena, e ele vem dentro remando, remando, e pensando em
mim...” e outras, e outras histórias que Rui de Deus contava, à tarde,
esperando a volta dos pescadores.
Essas
crianças choram e chora sua mãe, Osmídia, a esposa dedicada; choram e rezam; o
vento uiva medonho na noite tormentosa.
Em casa do antigo marinheiro, continuam a borbulhar orações
dos lábios secos de Rui de Deus. O vento foi-se aplainando, de manso, muito de
manso, e o mar acalmou-se. Rui defronte do Cristo: — “Ô, ô! Nicolau voltará,
voltará.”
O mar sussurrava agora, docemente escorrendo na praia, a que
presenteava de conchas. Nas águas apareceu uma brancura — “A vela de Nicolau” —
gritaram os pescadores, que, acalmada a tempestade, tinham vindo às portas,
rendendo graças à Senhora da Bonança; não era a vela do barco do pescador: era
o primeiro raio da lua nova que surgia, esbranquiçando as nuvens — desolação...
Ao longe, no leite que a lua derramava na praia de areia,
negrejava um barco quebrado. Chegaram todos.
— “Meu Deus, é o Santa Osmídia. É o barco de Nicolau; pobre da
mulher e dos pequerruchos, coitados!” — e calaram-se. O mar chegava aos seus
pés e lambia-os. A lua parara bem por cima do barco despedaçado, onde jaziam as
esperanças dos marítimos e a crença de Rui.
***
Eh! Rui de Deus, velho lobo do mar, Nicolau nunca mais
voltará e a sua alma talvez já ande solta neste luar que ilumina tudo e que faz
ver, lá no rochedo, a cruz que apodrece, inclinada um pouco para a praia, como
que abençoando a alma do pescador, que foi sempre bom, e que, certamente,
morreu pedindo à Santa Maria que protegesse a sua Osmídia e os seus quatro
filhinhos... quatro filhinhos, como é triste morrer, meu Jesus!... Rui,
pescador mais antigo destas praias, que não faltas a abençoar os que partem
para viagens longas, Ruy, meu velho, Nicolau não voltará, não voltará...
***
Osmídia enlouqueceu. Rui de Deus quebrou o Cristo,
esverdinhado de limo, e atirou-o às ondas, não sem envelhecer, em um dia,
muitos dias de pesca mais. Criou os filhos de Nicolau; para pescadores? não
“para pescadores, não”, dizia bem triste. Não lhes contou mais histórias de
marujos e de marítimos; porém, de longe em longe, fazia-os ajoelharem-se na
praia, junto à sepultura de seu pai — o grande mar — e pedirem a Deus o eterno
descanso da alma do pescador morto, de espaduas largas e olhos meigos. Passava
sempre por eles uma velha cantando canções de mar, com os cabelos desgrenhados
como um oceano agitado — Osmídia.
A
cruz do rochedo apodrecera mais. Uma noite desapareceu:
Ruy de Deus, que já não dormia sossegado como outrora,
depois que perdera a sua crença, sentado à porta de sua casita, viu uma mulher
subir de rastros o rochedo: — “Nossa Senhora!... Osmídia, a louca!...”
persignou-se e ficou mudo a ver a louca subir; o mar soluçava, a lua pousara
num braço da cruz, onde existia uma tradição sagrada, de tão velha que era.
Osmídia ajoelhou-se perto do símbolo santo, que com o tempo
mais se inclinara para a terra e longo tempo assim se conservou. Levantou-se; —
“Vai descer”, disse Rui, em cujas barbas o vento tremia de medo. Não; súbito
abraçou o lenho podre e com ele rolou pelo espaço, dando um grito despedaçador.
O mar abriu-se, o mar fechou-se; porém, mais generoso que o
antigo mar da tormenta, deu o cadáver da mãe aos seus filhos, os quatro
robustos lenhadores, como os criara Rui de Deus, que num dia derrubaram um
velho tronco oco de uma figueira velha e nele enterraram a louca, chorando como
se ainda fossem as criancinhas que na noite da tormenta rezavam pedindo à santa
rústica a volta de Nicolau.
Sobre a terra que guardou a pobre Osmídia fizeram um comoro
de flores, e, como era perto da praia, o mar, á noite, levou-as todas para o
túmulo do pescador.
E Rui? Rui de Deus ainda lá vive; leva o dia inteiro na
porta de sua casita a olhar as ondas. Dizem pescadores aos seus filhinhos, para
fazê-los dormir, que um dia ele se transformará em um penedo, em que virão
bater as espumas do mar e a lua descansar nas noites compridas ... Contos de
pescadores...
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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