Os quatro filhos de Amon
(Conto do Cerco do Porto)
Havia
três dias que o Marechal Solignac desembarcara no Porto com alguns soldados belgas;
com eles entrara também para dentro do cerco um terrível inimigo — o
cólera-morbo. Aos tipos, que já devastavam a cidade, veio juntar-se essa nova
desolação, para tornar mais completo o triunvirato da morte. De cem pessoas,
atacadas diariamente, sucumbia um terço. A fome ia conduzindo ao desespero,
porque, além das forças inimigas, desde Janeiro que os vendavais bloqueavam a
barra. À falta de carne, os doentes eram sustentados a sopa de bacalhau; os
caldos eram temperados com açúcar e aguardente, as camas eram desfeitas para
sustento dos cavalos, e, além dos preços dos gêneros encarecerem, os merceeiros
vendiam falsificações doentias, tais como de azeite e óleo de linhaça, ou de
manteiga e sebo. Era preciso lutar com a fome, e em fevereiro começou a distribuir-se
uma sopa econômica, de um quartilho de caldo de feijão com arroz e farinha de
trigo; no primeiro dia acudiram trezentas pessoas, ao segundo dia subiram já a
setecentas as rações. Enfim, desde a perda do reduto do Monte de Crasto, que
Solignac apenas conservou oito horas, as condições de resistência da cidade
tornaram-se desesperadas; derrotado o marechal, na sua tentativa de assalto ao
Castelo do Queijo, em 24 de janeiro, a consequência desastrosa fez-se logo
sentir. O inimigo compreendeu que, fechando a barra do Porto, venceria o cerco
pela fome. Para isso fortificou quase toda a costa, e levantou a terrível
bateria de Serralves, que cortava toda a comunicação com a Foz. Pelo seu lado,
os liberais reforçaram o reduto da Senhora da Luz e ocuparam imediatamente as
alturas do Pasteleiro e do Pinhal. Mas a resistência ia-se tornando cada vez
mais inútil, porque além da chuva de granadas que caiam dia e noite sobre a
cidade, além da recrudescência do cólera, para o qual já não bastava o hospital
da Quinta dos Congregados, o mar conservava-se tão tempestuoso que não era
possível aparecer vela alguma no horizonte! Foram quarenta dias desesperados,
quarenta dias em que esteve tudo perdido, menos a força moral.
A
história oficial, subordinada à exação dos boletins de campanha, não alude a
este ciclo dos quarenta dias do princípio do ano de 1833, e contudo nesse
período de desolação extrema é que se praticaram os maiores rasgos de validez
moral: todos foram heróis, as mulheres, os velhos. É triste que homens do
talento de Garrett e de Herculano, e mesmo generais que sabiam trocar a espada
pela pena, e que foram heróis nesses grandes dias de sacrifício, se não
lembrassem de coligir as sublimes tradições épicas do cerco do Porto, que ainda
casualmente se repetem. Essas tradições vão-se perdendo, como toda a poesia de
um povo, que começa a morrer pelo esquecimento do seu passado. Contaremos um
desses esplêndidos episódios, desconhecido dos historiadores, mas conservado
ainda na vida burguesa do Porto; pinta-nos o espírito de resistência em que a
cidade se achava, nesses quarenta dias decisivos.
A
4 de março, as tropas de D. Miguel foram atacar as posições dos liberais na
Foz, seguras de que era já impossível sustentá-las mais tempo; no meio da sua
alucinação, os atacados tomaram a ofensiva, e os rebeldes retiraram-se deixando
duzentos mortos no campo. D. Pedro, que gastava os seus esforços em conciliar
os generais despeitados, aparecia sempre em todos os momentos de conflito. Era
junto dos soldados, ao pé dos voluntários burgueses, que ele readquiria
confiança e se mostrava alegre, pressentindo o triunfo da causa da liberdade. D.
Pedro apareceu na bateria da Luz; foi aí que se viu um velho que ele encontrava
sempre vagabundo pelas linhas, nos pontos em que eram renhidos os ataques.
Notou que o velho andava desarmado, e observando diligentemente; não pôde
deixar de dirigir-se a ele com um interesse e familiaridade em parte provocados
pelo seu aspecto venerando e cheio de autoridade:
—
Amigo! que faz você por aqui?
—
Senhor, tenho aqui nas linhas um filho.
—
Bem; então ande à vontade, se não tem medo das balas.
—
Medo das balas? Isso são confeitos de noivado. Não tivesse eu cá os meus
setenta e quatro, que outro galo cantaria.
—
O seu filho, vê-o daí?
—
Por enquanto ainda o vejo. Não estou aqui por ter medo de perdê-lo; é para ir
sossegar as mulheres, as irmãs, que sempre estão com preocupação. Querem saber
alguma coisa das linhas.
Este
diálogo foi interrompido por um toque de carga à baioneta; pode-se imaginar
quem trouxe para a cidade a notícia do triunfo. Chegou o terrível dia 24 de
maio; estava acabado de construir o reduto das Antas, guardado apenas por
trinta soldados de caçadores 5. Nisto, as tropas inimigas, de dois mil homens,
tomaram o reduto das Antas! Era preciso desapossá-las, a todo o transe, e de fato
não puderam conservar o reduto além das três horas da tarde desse dia.
Infantaria três, nove e dez, quarenta lanceiros e um batalhão inglês cumpriram
o seu dever; foi uma refrega atroz. O Monte das Antas ficou juncado de
cadáveres; mais adiante, na Casa Negra, era ainda maior a carnificina.
Foi
no combate da retomada das Antas que D. Pedro voltou a encontrar o velho
burguês; já lhe tinham dito como se chamava. Era o contraste do ouro, o tipo do
antigo homem bom, chão e abonado, como o caracteriza a Ordenação do reino;
chamava-se Cosme Martins. Assim que D. Pedro deu por ele no tropel, destacou-se
dos oficiais, para falar-lhe:
—
Outra vez por aqui, com este fogo?
—
Tenho cá outro filho.
—
Outro filho? Como se chamam os rapazes?
—
Na bateria da Luz está o meu Eduardo, tem dezenove anos feitos.
—
Pode bem com a espingarda. E o outro?
—
Está aqui nas Antas; é o meu Thomaz, já formado em leis.
Em
meio da conversa, D. Pedro foi interrompido por uma destas circunstâncias que
se dão em todo o campo de batalha; vieram contar-lhe como se achara uma carta
na algibeira de um morto por onde se sabia que era o major dos realengos de
Trancoso. Não se tornaram a ver, nesse dia, o velho e D. Pedro.
A
sete de abril, descobriu-se a longa estacada feita pelos inimigos desde as
primeiras casas de Paranhos até à Eira do Covelo. Queriam fortificar-se ali;
não havia tempo a perder; era preciso desalojá-los. A artilharia dos liberais
começou a responder desde as nove horas da manhã, e durou o fogo até às seis
horas da tarde. Cruzaram-se as baterias da glória, do Pico das Medalhas, do
Sério, da Aguardente e de São Brás. Uma força de mil homens saiu fora das
linhas, para tomar de assalto o monte do Covelo, que os inimigos abandonaram.
Porém, no dia 10, os miguelistas voltaram, com o intuito de retomar os pontos
perdidos, onde os liberais tinham levantado um reduto em menos de oito horas.
Estavam lá dentro apenas duzentos soldados; foram atacados por mais de dois mil
dos rebeldes, que chegaram até dez passos de distância. No meio do fogo, quase
à queima-roupa, jogavam-se os insultos que tornavam mais violento o ataque; de
dentro perguntavam aos assaltantes se eles traziam os sacos para a pilhagem da
cidade. Foram momentos decisivos: duzentos homens livres puderam esmagar dois
mil janízaros.
No
meio desse implacável desbarato, andava D. Pedro, e quando voltou a avistar o
velho, que estava envolvido num antigo capote de camelão, sorriu-se para ele,
como quem o tomava já como um presságio de felicidade. E enquanto tocava a
reunir, D. Pedro foi para ele, esfregando as mãos:
—
Olá! bom homem.
—
Senhor D. Pedro, eles hoje é que pagaram o vinho.
—
E bem pago. Então você tem por cá mais algum filho?
O
velho não pôde deixar de alegrar-se com a pergunta maliciosa, e respondeu com
uma convicta serenidade:
—
Tenho aqui mais outro filho.
—
Outro filho, homem! De dois, sei eu.
—
Este é o que me ajuda no ofício; ficou de ontem para hoje no reduto do Covelo,
e já sei que está são como um pero...
—
Parabéns, amigo, parabéns. Com que então, na bateria da Luz, um; no reduto do
Monte das Antas, outro; no Covelo...
—
É o meu filho Cosme.
—
Ainda tem mais algum?
O
velho sorriu-se, com ar de quem busca atenuar uma frase, que poderia ser tomada
como expressão de vaidade:
—
Não queria falar do outro filho, que tenho na bateria do Pico das Medalhas,
antes de me encontrar ali com a vossa majestade.
—
Oh! homem! outro filho?
—
E mais que tivesse; esse é o meu Fortunato; e quando não está no fogo da
bateria fica de semana, em serviço médico no hospital dos coléricos de São
Pedro de Alcântara.
D.
Pedro emudeceu diante da revelação casual de um tão completo sacrifício.
Abraçou o velho, porque não pôde articular palavras, e os olhos
marejaram-se-lhe de lágrimas. Aquela natureza egoísta, como a de todos os
príncipes, insensível à dedicação como o revela a demissão do grande Mouzinho
da Silveira, foi uma vez tocada pela realidade das coisas. As palavras
desinteressadas daquele velho revelaram-lhe que se ele sabia sacrificar-se por uma
filha, ninguém, numa cidade sem muros, cercada por mais de oitenta mil
inimigos, dizimada pela peste, apertada pela fome, ameaçada pelo saque, ninguém
poupava o seu sangue, porque todos queriam converter a liberdade num direito. O
sacrifício de um pai ficava suplantado pelo sacrifício a uma geração inteira!
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...