Os dois irmãos e a mulher morta
Eram
dois irmãos, um rico, e o outro pobre; casaram, mas o pobre tinha muitos
filhos, e o rico nenhum. Estavam de mal um com o outro, por intrigas da mulher
do que era rico, que se envergonhava daqueles cunhados, e demais a mais
compadres. Vai de uma vez o rico trazia umas manadas no campo, e uma rês
transviou-se e foi cair num barrocal e lá ficou morta. Os filhos do pobre
quando vieram do mato foram contar o caso à mãe:
—
Pois ide lá ao barrocal buscar o novilho, porque assim sempre teremos que
comer.
Os
rapazes foram, fizeram-no em postas e trouxeram tudo para casa. A mulher do
rico desconfiou, e disse ao marido que fosse a casa do irmão saber como aquilo
era.
—
Como é que hei de ir lá? Bem sabes que estou de mal com meu irmão, desde as
partilhas. E de mais como é que se pode saber se foram os meus sobrinhos que
espostejaram o novilho?
—
Pois juro que foram os teus sobrinhos que roubaram a carne; foram, e sou eu que
hei de pôr tudo em pratos limpos.
—
Não sei de que feitio.
—
Não sabes? Pois mete-me neste caixão, deixa-lhe um buraco para eu espreitar, e
vai a casa de teu irmão pedir para o guardar.
—
Com essa me rio eu. Pois com que pé hei de ir pedir a meu irmão para me guardar
a caixa, estando nós desavindos?
—
Tu não sabes da missa a metade. Vai ao compadre e dize-lhe que chegou tropa, e
temos aquartelados em casa, e com medo do que der e vier lhe pedes para te
guardar a caixa.
Dito
e feito. O irmão pobre esteve por tudo e ficou muito glorioso de guardar a
caixa das riquezas do irmão que sempre o desprezara; puseram-na junto da
lareira. Como era já de noite, o rico despediu-se, e nisto começam os rapazes
seus sobrinhos a fazer-lhe figas nas costas, e a gritar:
—
Hoje há carne assada! hoje há carne assada! O novilho chega para todos tomarem
uma barrigada.
A
mulher do irmão rico deu um estremeção dentro da caixa, com raiva. Os rapazes
calaram-se e disseram uns para os outros:
—
Estão ratos na caixa.
—
Deixa-los, vamos nós comendo; a estas horas a mulher de meu irmão está roendo
as unhas de perra que ela é.
Nisto
a comadre deu outro estremeção de furiosa.
—
A caixa está cheia de ratos, com certeza.
—
Bota-se-lhe água a ferver.
—
Mas por onde?
—
Aqui está um buraco. Foi por onde eles entraram.
Vão
à panela da água para os pés e despejaram-na para dentro da caixa. A comadre e
tia, que estava dentro dela, morreu sem tugir nem mugir.
O
irmão rico estava com curiosidade de saber da experiência e foi buscar a caixa;
o irmão pobre entregou-lha logo. Pelo caminho já lhe perguntava:
—
Sempre foram eles que roubaram a carne?
Nada.
Chegou a casa e quando abriu o caixão deu com a mulher morta, e negra com as
escaldaduras.
—
Ai, que ela morreu excomungada! Foi castigo de levantar esse aleive a meu
irmão.
Tratou-se
do enterro, e a mulher foi depositada na igreja para se lhe fazerem os ofícios
no outro dia. Disse então o irmão pobre para a mulher:
—
Se eu fosse de noite à igreja, tirava as joias que a excomungada leva para a
cova.
—
Lá isso faz pena ver estragar dinheiro.
O
homem lá se introduziu conforme pôde na igreja, e fez uma trouxa de tudo o que
pôde tirar à comadre excomungada. Não contente pegou no corpo e foi encostá-lo
no altar-mor com o missal aberto diante. Quando o sacristão veio de manhã,
ficou de queixo caído e correu a dar parte ao pároco da freguesia. Este foi
entender-se com o marido da defunta que pagou bem os exorcismos, e o corpo
enterrou-se logo depois de vestido e enfeitado com mais joias. O compadre pobre
lembrou-se de ir furtar tudo isto ao cemitério. De noite, quando estava
desenterrando a excomungada, ouviu vozes ao pé do cemitério. Pôs-se a escutar,
e pelo que pescou, viu que eram uns estudantes que vinham de furtar um porco, e
o tinham pousado em cima do muro do cemitério. Diz agora um deles:
—
Falta-me o relógio! E esta? vou por ele.
—
Eu vou contigo. Não há perigo que ninguém nos venha aqui tirar o porco.
O
pobre assim que não sentiu ninguém foi ao lugar onde pousaram o porco, e
tirou-o de dentro de um saco, onde estava, meteu dentro a excomungada, deixou-a
ficar e safou-se com o porco para casa. Quando os estudantes vieram, pegaram no
saco, e foram ter a casa de uma taberneira para lhes arranjar uma ceia; vão
para abrir o saco e dão com a mulher morta. A estalajadeira berrou logo:
—
Ai, que ela é a excomungada!
—
E agora? como nos havemos de livrar desta? É a excomungada que se enterrou esta
manhã.
—
Vamos pô-la aí à porta de qualquer figurão da terra.
Pegaram
nela e foram pô-la inteiriçada a uma porta; o corpo foi escorregando,
escorregando, até que embarrou na aldraba da porta e fez barulho. Fanaram de
dentro, mas como ninguém respondia vieram à janela. Viram um vulto, e pensando
que estava a gazuar a porta, abriram-na de repente e deram-lhe muita pancada. O
corpo caiu. O dono da casa pensou que o tinha matado, e para se ver livre da
justiça, montou o corpo em cima de um burro e pô-lo a caminho para a feira. Ao
passar pela porta do compadre pobre, diz ele para a mulher:
—
Ainda aqui me aparece a excomungada. Desta vez sempre se ganha um burro.
E
pegou no corpo e foi pô-lo num cerrado do padre. Quando o padre o soube foi exorcismá-lo
montado na burra do sacristão, porque este o tinha avisado de que a excomungada
andava no cavalo que pastava no cerrado. Assim que o cavalo viu a burra, correu
atrás dela; o padre foge, a burra segue o caminho de casa, e ao entrar pela
estrebaria dentro, o padre bate com a cabeça na padieira ao tempo que o cavalo
chega com o corpo da excomungada. O padre quebrou a cabeça e morreu, e todos
disseram que tinha sido a excomungada que lhe caiu em cima. O irmão rico pensou
que a alma da mulher andava penada, e para a despenar foi ter com o irmão e
deu-lhe os bens que lhe tinha roubado e ainda muito dinheiro.
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