O sonho de um sabiá
Numa velha e suja gaiola de taquara, suspensa à parede de uma
taverna, vivia, há longos meses encerrado, feio, desditoso e melancólico sabiá.
Tédio mortal e agras tristezas metia-lhe tudo quanto o
cercava.
Em vez do teto azul-celeste, recamado à noite de nitentes
estrelas, que servia de majestoso dossel à mata virgem em que passara até então
feliz e descuidosa a existência, só via por entre as grosseiras lascas da
acanhada prisão a telha escura da repugnante vivenda, a que o levara um dia a
imprudência ou a desgraça.
Em lugar das auras suaves e perfumadas da serena madrugada,
que tantos cânticos lhe haviam inspirado, ou da brisa cálida dos dias tropicais
que fizera palpitar de amorosa ânsia o ardido e juvenil coração, respirava
agora um ar violento e impuro, misto de todos os nauseabundos cheiros, que
enchiam a lôbrega bodega.
Em vez do ramo débil e flexível em que, tomado de loucas e
inexplicáveis alegrias, se balançava bem no seio das frondosas moitas; em vez
dos harmoniosos folíolos das palmeiras entre os quais costumava, à hora do
crepúsculo, ocultar a sua modéstia para cantar mais a gosto, tinha que ficar,
noite e dia, trepado no grosseiro e comprido prego que sustentava a gaiola, e
cujas asperezas férreas lhe magoavam as delicadas patinhas.
De semana em semana atiravam-lhe umas talhadas de laranja
azeda ou uns restos de banana a meio apodrecida, que importuno enxame de moscas
e mosquitos vinha de tropel devorar, com mil zumbidos discordes e aterradores.
Quanto à água com que tinha de saciar a sede, criava no púcaro lascado em que a
punham uma crosta de esverdeado limo, antes de ser renovada.
Impossível é aquilatar as amarguras e angústias que curtia a
pobre da avezinha nas vinte e quatro horas do dia! Nem sequer podia dormir, tão
forte era a dor que lhe estortegava o peito.
Também em breve lhe caíram todas as penas; mirrou-se magro,
pelado, horrendo, como um desses espectros de pássaro, que Salvator Rosa pinta
em suas fantásticas composições. Pareceu ir-se-lhe a vida toda concentrando em
dois olhos minazes a fuzilarem ódio e indignação, olhos esbugalhados, fixos e
como que acocorados em cima de um bico pontiagudo e provocador.
Cuidou deveras no suicídio; mas não o soube como realizá-lo.
Se, num ímpeto de desespero, batia com a cabeça de encontro às grades da
prisão, escalavrava-se dolorosamente a pele, sem nunca conseguir a menor brecha
no duro crânio, invólucro de tão negros desígnios.
Deixar-se morrer à míngua... era, decerto, um meio; mas
nestes casos extremos é que a filosofia, malgrado nosso, insinua no imo da alma
o seu doce bálsamo e aos poucos vai dobrando os mais rebeldes espíritos à mansa
lei da resignação.
Por isto ia o merencório sabiá, embora a custo, disputar, de
quando em quando, às vorazes moscas uns bocados do asqueroso alimento. Às vezes
por engano aconteceu-lhe até engolir algumas mais assanhadas e intrometidas.
Uma vingança, porém, sabia tirar do bárbaro que lhe roubara
a liberdade.
— Não canto, nem cantarei nunca para ti! dizia ele consigo
mesmo lavrando um protesto solene e inquebrantável.
E justamente era o que mais incomodava o lorpa do vendeiro.
— Então, perguntava este levantando o nariz para a gaiola e
encarando o prisioneiro com fisionomia torva, quando pretende dar um arzinho da
sua graça? Boa vida a sua, encher o pandulho sem fazer coisa que preste!
Por dignidade, nada respondia o coitado à verberação do
bruto, cujo olhar contestava com valentia.
E assim iam, uns após outros, lentamente se arrastando os
dias, sem que o sabiá discrepasse um só instante da estudada mudez. Quando se
sentia mais abalado pelo desgosto, mais ansioso de desabafo, mais cheio de
razão contra o seu tirano, atirava lhe à cara por escárnio uns gritos
dissonantes e agudos que faziam o gato da venda abrir de espantado os
sonolentos olhos e franzir as esparsas sobrancelhas.
***
Uma feita, em quadra de rigoroso verão, houve um calor
devorador.
Ondas de luz intensa e ofuscante iluminavam a natureza nas mais
recônditas furnas, levando-lhe por toda a parte o enlanguescimento e o cansaço.
Na estrada geral batia o sol de chapa, reverberado com tal
força, que da terra se levantava um vapor sutil e incandescente.
Nas planuras torcia-se requeimada a relva miúda, ao passo
que as alterosas e copadas árvores contraíam a folhagem, para darem menor campo
aos raios do desapiedado astro.
De prostradas se haviam até calado as cacarejantes seriemas
e as estrídulas cigarras.
Deserta de freguesia estava a venda, e nem havia quem por
tal ardentia e nessa hora do dia se animasse a procurá-la.
Bocejou o alarve três ou quatro vezes ruidosamente; olhou
distraído para a alva fita do caminho que rutilava; distendeu os musculosos
braços e, afinal, vencido pelo sono, deitou-se a fio comprido num tosco banco à
sombra do alpendre de sapé, digno peristilo daquele templo da sórdida ganância.
Não tardou muito, e roncava como um perdido.
Ficou então só o nosso sabiá.
Quis resistir à modorra que por seu turno o invadia e não
pôde. Não dormiu de todo, mas, com a pálpebra lateral corrida como um véu
translúcido que lhe deixava a meio lobrigar o mundo exterior, pôs-se a cochilar
e por tal modo que, três ou quatro vezes, esteve a cair do seu prego, levado
pelo peso da cabeça e do bico.
Aí sonhou...
Sonhou que a todo o dar de asa atravessava extenso e árido
chapadão em busca de vistoso capão de mato que vira ao longe, lá bem no fundo.
Alcançou-o não sem canseira e, ofegante de tão inopinada viagem, refrescou com
algumas gotas de pura linfa o corpo que queimava.
Alisou as poucas penas que tinha e, já mais descansado,
correu os olhos pelo lugar à que chegara.
Achou-o, com razão, todo de delícias.
Orlando denso e virente bosque, serpeava um límpido e
travesso regato, a cuja borda se alinhavam, simetricamente espaçados, os tão
saudosos buritis a alternarem com grupos de lisas e vistosas imbaúbas.
Se em torno sopravam pesadas e afogueadas auras, ali ciciava
uma aragem fresca e insinuante como o hálito da aurora nas primeiras horas da
manhã. Nem lhe faltavam as fragrâncias das flores, pois nos ares se expandiam,
como borboletas presas por invisíveis fios, odoríferas orquídeas, e na terra as
espirradeiras silvestres e os roxos manacás desabotoavam as olorosas pétalas.
Que fazer em mataria tão amena e sedutora, senão cantar?
Também o nosso sabiá abriu a maviosa garganta e — sempre em
sonho — despejou torrentes de harmonias.
Sem quase tomar respiração, contou todas as histórias que
dos seus pais e velhos mestres aprendera na vida de liberdade.
Primeiro que tudo, exaltou as glórias da criação.
Na sua canora linguagem, ora com canto largo e pausado, ora
por meio de trinados e volatas ou ledas modulações, descreveu a hora que
precede o nascer do dia; imitou, como melhor pôde, as pancadas intervaladas da
vigilante anhuma poca, a que de longe responde a grita cromática das aracuãs nas
margens dos rios; pintou as gradações da luz que vem subindo, o júbilo da terra
que acorda, o burburinho da vida em suas primeiras agitações, o chilrar dos
insetos, o gazear dos pássaros a lembrar o murmúrio discreto das águas; numa
palavra, esse concerto uníssono que proclama o emergir do sol, a princípio
abafado e místico, pouco depois a mais e mais forte, afinal pujante como brado
saído de peito valente e sôfrego de viver.
Figurou em seguida, o correr do dia. Inspirado pela ocasião,
ninguém melhor do que ele, com mais concisão e verdade, lembrou a languidez que
quebra as forças da criatura nas horas enervadoras em que estua o calor. Seu
cantar teve quedas tão bem sentidas, que parecia por vezes ir-se-lhe sumindo a
voz nas fauces com o desprender da existência.
Eis, porém, que assoma a tarde. À lei fatal tem também que
ceder o astro da vida. Descamba cheio de majestade, e não tarda que desapareça.
Esquecidos os agravos de há pouco, touca-se a natureza inteira de gaze roxeada,
que breve vai mudar-se em negro e funéreo manto. Começa o império da saudade e
da meiga tristeza. A custo prendem as cumeadas das serras uns últimos raios de
sol. Foge a luz. A passos largos se adiantam as trevas; apossam-se dos plainos,
sobem os declívios; galgam os cabeços, como que perseguindo raivosas e
implacáveis a claridade, que busca nos céus o derradeiro refúgio.
É então que a jaó, na mata alagadiça, solta os seus pios,
verdadeiros soluços de dor, e que nos chapadões as medrosas perdizes amiúdam os
angustiosos chamados.
É então que nas copas das macaubeiras se congregam os
barulhentos chopins, e todos a uma dizem estrepitosos adeuses aos fugazes
clarões do dia que já foi.
Em bandos passam as pombas torcazes a voltarem aos pousos
de querência; passam também nuvens de periquitos e papagaios, por exceção silenciosos:
é que se atrasaram, e o receio das trevas que vêm chegando tira-lhes a habitual
loquela e petulância.
É noite.
Solta a onça da tétrica lapa em que se acouta um rugido....
E o nosso sabiá parou.
Acordara espantado com o grito que dera. Descerrou as
pálpebras... e estremeceu.
Diante dele viu, com terror e raiva, o vendeiro, que,
extático e boquiaberto, o estivera largo tempo ouvindo.
— Oh! exclamou com vagar, como canta! É um mestre! E eu que
pretendia hoje à tarde abrir-lhe a porta da gaiola e mandá-lo passear!
Aí o coitadinho do pássaro sentiu uma pontada tão pungente
que julgou morrer. A comoção apertou-lhe o peito; por instantes o sufocou.
Depois... nem sequer pôde chorar.
Era um simples sabiá; e o consolo supremo das lágrimas, a
bondade divina só o concedeu ao homem, que dobra a criação em peso aos seus
caprichos e ao seu jugo de ferro.
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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