O relógio de Estrasburgo
(Conto de 1352)
A
Idade média está completamente caracterizada nas suas lendas; porque se não há
de por elas recompor a história, animá-la com essas cores vivas, dar-lhe
movimento. A mais extensa, a que absorveu todas as imaginações rudes e
criadoras, foi a lenda do Diabo, reprodução do dualismo persa, que aparece
fatalmente no período instintivo da gênese religiosa. Desta idealização do mal
provém, na arte, a realização anônima do grotesco, muitos dos velhos fabulários,
e na ascese divina a tentação de que estão cheios Ribadaneiras e Bolangistas.
A
ciência, nos primeiros séculos da Igreja, foi desprezada, amaldiçoada como
inútil e perigosa, porque tornava o espírito rebelde, orgulhoso; a alma perdia
com ela a simplicidade, que a elevava até Deus. A observação das leis físicas
do mundo era uma impiedade; Bacon e Silvestre II foram olhados como
feiticeiros. É um martirológio interminável o desenvolvimento da razão. Foi um
dos algozes Sam Paulo:
“Eu
destruirei a sabedoria dos sábios e rejeitarei a ciência dos eruditos. O que é feito
dos sábios? O que é feito destes espíritos curiosos das ciências do século? Não
os há convencido Deus da loucura das ciências deste mundo?” A Igreja não se
contentou com a acrimônia da invectiva, quis encarnar este verbo do
obscurantismo. As lutas e as agonias que se seguiram estão perpetuadas num sem
número de lendas sobre as revoltas do espírito, que vieram a sintetizar-se no
tipo do Fausto.
Em
pleno século XIV. O sol brilhante, num céu sereno e límpido de um dia de
alegria, derramava-se em torrentes sobre a catedral de Estrasburgo. Voltada
para o oriente, segundo o rigor do simbolismo religioso, recebia a luz do alto,
como um cenáculo em que as línguas de fogo vinham revelar os mistérios da vida
e a serenidade, que ela havia de infundir aos tristes que se acolhessem,
corridos das tempestades do mundo, na tranquilidade do seu recinto. A luz
refletia-se coruscante das vidraças, que ostentavam um rosicler das cores mais
caprichosas e vivas; cada pedra, cada ângulo, cada saliência destacava-se
mostrando os rendilhados e lavores esquisitos; a torre parecia então mais
altiva, não topetava com as nuvens, perdia-se na profundeza do espaço azulado e
puro. Era um belo dia de primavera.
Diante
da catedral majestosa foram-se agrupando pouco a pouco alguns vultos ociosos;
e, atraída na razão direta das massas,
instantes depois a multidão flutuava impaciente, como quem espera um prodígio
anunciado, exempligratia, um eclipse.
Não era nenhum eclipse, nem tampouco o aparecimento de um cometa, que então
fazia tremer os pontífices e os reis. Não era mesmo procissão esplêndida, que o
povo e os amadores de tertúlias estavam esperando com ansiedade. O que seria
então?
Uma
figura estranha, embuçada num tabardo escuro, chapéu emplumado ao uso da corte,
vinha montado, a passapelo, num cavalo fouveiro; custava-lhe a romper por entre
a turba apinhada; estrangeiro ali, não quis atropelar ninguém, e resolveu
esperar que o concurso fosse diminuindo.
—
O que está toda esta gente aqui a fazer, num dia de trabalho? — perguntou o
desconhecido para um rapaz, que parecia esconder-se entre o vulgo, com um ar de
tristeza e de uma dor indizível. — Há alguma procissão ou festa de jubileu?
Ainda as portas da catedral estão fechadas.
—
É certo que vindes de bem longe, — volveu-lhe vivamente o pobre rapaz — pois
que ainda vos não chegou a fama do grande Relógio de Estrasburgo. É uma
maravilha da Alemanha. Não vedes aquela estatuazinha da Virgem? Diante dela,
vem ao bater do meio-dia os três Reis Magos com os seus presentes, e o Galo autômato,
que lá está, sacode as asas logo que o sol toca o zênite.
O
cavaleiro não teve tempo para compreender o que ouviu, porque um sussurro
imenso, repentino, burburinhou por toda a praça. O carrilhão de Estrasburgo dava
meio-dia. Ficaram boquiabertos, atentos esperando o aparecimento dos Reis
Magos. Sentiu-se primeiro o ruído estrepitoso de umas asas pesadas, depois o
clangor de uma voz ênea, soturna. O cavaleiro estava pasmado com o que via. A
fama do Relógio de Estrasburgo correra as partidas do mundo. Os palácios, os
mosteiros, os castelos desejavam uma maravilha igual. Ignorava-se o nome do
artista. O cabido da catedral ufanava-se com tão magnífico e singular artefato.
—
Oh! diz-me, — acudiu o cavaleiro, saindo do espasmo da admiração — diz-me quem
fez esta obra prodigiosa, que é a inveja de todas as cidades do mundo! Por que
se não fala no nome dele? Onde está o artista? Venho de França para vê-lo.
—
Perguntais, nobre cavaleiro, como se eu pudesse violar tal segredo! Mal sabeis
que as vossas palavras acordam na minha alma uma dor profunda como um eco num
páramo aziago. Quem fez o Relógio, perguntais vós, e a glória tenta-me,
precipita-me, impele-me a arriscar a vida! Foi o meu pai! — E as lágrimas de
alegria e pesar foram-lhe arrasando os olhos, até que rompeu num choro
insofrido de criança. O cavaleiro apeou-se e estreitou-o nos braços.
—
É a saudade do teu pai, que te lava o rosto com esse choro de ingenuidade e
amor? Não soube a morte respeitar tão preclaro engenho? E eu que vinha da parte
de Carlos V, de França, para visitá-lo e falar-lhe!
—
Ele ainda vive, senhor. Mas que vida! Oh! antes a morte o tivesse envolvido nas
suas trevas geladas; antes houvesse nascido sem aquela luz do talento, que é
sempre a predestinação do martírio.
A
praça estava já deserta, e os dois partiram enleados nesta conversação.
Chegaram à oficina do relojoeiro. Era um velho; tinha o rosto escondido entre
as mãos, como quem se abismara numa abstração intensa, ou numa grande e entranhável
agonia. O estrangeiro permaneceu hirto sob a soleira da porta; não se atrevia a
interromper os processos misteriosos daquela mente perscrutadora. A criança
aproximou-se com familiaridade, e segredou-lhe longamente umas palavras mal
articuladas e confusas. O velho ergueu então a cara banhada numa alegria suave,
e voltou-se para a porta:
—
Buscam-me da parte de el-rei Carlos V de França? — perguntou ele com um ar
afável e indicando um assento ao desconhecido.
—
Em verdade, el-rei me envia aqui.
—
E o que pretende de mim, que nada posso, el-rei, que tudo manda?
—
Conhecendo a vossa boa fama, vendo que enriquecestes a Alemanha com essa
maravilha do Relógio de Estrasburgo, ele quer também colocar na torre do
palácio da Justiça uma máquina, que dividindo com justeza as doze horas do dia,
ensine a observar a justiça e as leis.
—
Como o não serviria eu de boa vontade, se me não houvessem apagado para sempre
o lume dos olhos. Não vedes estas orbitas vazias? Cegaram-me. Há já dezesseis
anos que vivo mergulhado nestas sombras cerradas, que me antecipam a escuridão
tétrica do sepulcro, mas que me prolongam a vida, no abandono da desgraça, para
sofrer a cada instante as mais excruciantes provações. Eu vivo ao desamparo;
nem sei já trabalhar. Nesta solidão do espírito, para esquecer o tédio e a
desesperação que me pungem, eu invento maquinismos complicados, que o meu pobre
filho executa. É ele o herdeiro do meu engenho. Cada pancada do relógio no
carrilhão da catedral, é uma palavra de sarcasmo, um insulto vibrado por uma
língua satânica, só entendida por mim. Vou contando as horas na mudez das
noites de insônia, e cada uma me descreve com mais feias cores esta morte onde
fui precipitado em vida.
Havia
nas palavras do velho um misto de resignação e dor, uma conformidade, uma
santidade admirável. A cara, enrugada pelos anos e o estudo, pendia-lhe sobre o
peito; o filho ainda imberbe, engraçado, ingênuo, estava de pé ao seu lado,
mudo, com os olhos no chão.
—
Como houve mãos tão barbaras, que ousaram pôr diante do vosso espírito, para
sempre, a sombra eterna da morte? Foi o acaso? Foi a malvadez que vos despenhou
nessa desgraça? Seria a inveja quem vos suplantou à traição, vendo-se obrigada
a admirar os artefatos que não podia exceder? Oh, contai-me. Não! não! tenho
horror de ouvir; deve custar-vos muito isso. El-rei há de sabe-lo e acudir-vos.
O
velho ergueu lentamente a cara; pousou as mãos sobre a cabeça loira do filho,
brincando distraído com os cabelos anelados. Depois de um momento de indecisão,
começou:
—
O bispo João de Lichtenberg encomendou-me um relógio grande para a torre de
Estrasburgo. Era preciso que as horas canônicas fossem observadas com
escrúpulo; as irregularidades na divisão do tempo causavam graves
inconvenientes às rezas e ofícios divinos do coro. Eu trabalhei dois anos
consecutivos; tinha empenhado naquela obra a minha fama. Inventei um calendário
em que representava as indicações das principais festas móveis: ao lado pus-lhe
um quadro em que estavam escritas em verso as principais propriedades dos sete
planetas; ao meio coloquei-lhe um astrolábio, em que os ponteiros notavam o
movimento do sol e da lua, as horas e os quartos. Ao alto estava uma estátua da
Virgem, perante a qual se inclinavam, ao dar do meio-dia, as figuras dos três
Reis Magos. Ficaram espantados com a maravilha da obra; soou por toda a parte a
fama dela. O povo aglomerava-se na praça para ver. O cabido receou que os
outros mosteiros ou as cortes da Europa quisessem ter um monumento igual. Como
impedi-lo? Uma noite, estava eu descansando do trabalho assíduo, improbo que
levava, quando me bateram à porta. Vieram dizer-me que o relógio estava parado.
Levantei-me à pressa, aterrado, confuso, e dirigi-me para a torre. Quando ia
subindo, e já a uma altura vertiginosa, apagaram-se de repente os archotes; os
que me acompanhavam, lançaram mão de mim para me precipitar; as unhas prenderam-me
às fendas da cantaria, com a tenacidade do amor à vida. Por fim, cansados,
agarraram-me, arrancaram-me os olhos. Aos meus gritos, os malvados respondiam
que me desse por feliz em não ser queimado vivo na praça pública, exposto à
irrisão da plebe, por feiticeiro; que eu tinha pacto com Satanás, que o evocava
com linhas cabalísticas com que formava as rodas denteadas.
O
pobre velho permaneceu um instante silencioso refletindo no assombro daquela
noite infernal; depois mudando de conversa, o embaixador pediu-lhe para levar o
filho, que havia de fazer por certo o relógio para o palácio da justiça. Não
faltaram negações e hesitações. O velho conhecia o talento do filho, e temia um
igual desastre. O cavaleiro jurou protege-lo com a vida, e traze-lo incólume a
casa do seu pai, logo que tivesse findado o trabalho.
O
relógio foi posto na torre do palácio da Justiça, e, ele que aconselhava a
observância da justiça e das leis, foi o mesmo que, dois séculos mais tarde deu
o sinal para a execranda carnificina da noite de São Bartolomeu.
Quando
o filho do relojoeiro de Estrasburgo voltou à pátria, ainda o pobre velho
vivia. Estava no meio da sua desgraça, possuído de uma alegria infinita. Na
solidão do espírito em que ficara, procurara constantemente vingar-se.
Vingou-se afinal. Um dia conseguiu aproximar-se do Relógio, e tocou numa roda
de tal forma, que não voltou mais a regular, apesar de todos os esforços; em 1574,
intentou restaurá-lo Dasípodes, outros em 1669, em 1731, até que cessou de
trabalhar em 1789, como uma relíquia última da Idade Média que arrebatava a
Revolução. O desgraçado levava esta única consolação do mundo. A mesma lenda se
conta dos relógios de Nuremberga, de Auxerre e Lyon, em que as versões parecem
filhas da compreensão de uma mesma verdade.
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