O Quixote de Avellaneda
SEGUNDO TOMO DEL
IGENIOSO HIDALGO DON QUIXOTE DE LA MANCHA, que contiene su tercera salida; y
es la quinta parte de sus aventuras.
Compuesto por el
Licenciado Alonso Fernández de Avellaneda, natural de la Vila de Tordesillas.
Al Alcaide,
Regidores, y hidalgos, de la noble villa de Argamesilla, patria feliz el
hidalgo Cavallero Don Quixote de la Mancha.
Con Licencia, En
Tarragona en casa de Felipe Roberto, Año 1614.
Vale a pena ler esse maravilhoso romance ‘apócrifo’, que descreve com humor e ligeireza a continuação das façanhas de Dom Quixote, até então escamoteadas pelo seu criador Miguel de Cervantes. Essa publicação veio cair sobre a cabeça de Cervantes, como se fosse a estrela anunciadora do nascimento de Cristo. O milagre se deu: nenhuma campanha publicitária serviria tanto aos propósitos de exorcizar o estresse e a depressão que naquele momento abatia Cervantes, deixando-o derrotado para a arte de escrever.
Depois
disso Cervantes despertou mais gênio do que nunca, completou o Dom Quixote, sem
deixar de se mostrar exímio espadachim – duelou com Avellaneda com honra e
glória. Sabiamente, preservou o Dom Quixote ‘apócrifo’ de maior dano (que
poderia advir com algum processo) e assim protegeu o seu romance, legando para
a posteridade o tríptico literário de maior genialidade erigido até
hoje. Hoje o Dom Quixote de Cervantes só deve ser lido tendo de entremeio o
livro de Alonso Fernández de Avellaneda.
Isso porque,
tecnicamente falando, o Dom Quixote de Alonso Fernández de Avellaneda não deixa
a desejar a nenhuma das publicações da época. Quem escreveu, ao contrário do
que dizem alguns críticos, conhecia a técnica dos textos produzidos num tempo
em que a novela crescia, tornava-se adulta, paria o romance, “gênero
literário de natureza narrativa, do grupo ficção, em que se narra um
episodio ou incidente da vida, em geral fictício”. (Afrânio Coutinho).
Além das raízes
mais antigas (a epopéia e as gestas medievais), o romance moderno firmou-se
esteticamente submetendo-se ao poder da novella italiana de Bocaccio,
Bandello, Fiorentino e Masuccio, desembocando no romance picaresco (Lazarillo
de Tormes, Guzmán de Alfarache, el Bucón, El diablo
cojuelo), que definitivamente são as fontes do romance de costumes e de
aventura tais como Dom Quixote, de Cervantes, o Gargântua, de
Rabelais, Astreé, de Honoré d’Urfé e por aí afora.
Pois o livro
apócrifo de Dom Quixote enquadra-se perfeitamente na estética daquela época,
fato reconhecido por Miguel de Cervantes, cujas críticas ao volume foram
amenas. Na tradução brasileira o crítico Lucílio Mariano Jr. em nota de orelha,
observa esse detalhe:
“O livro apócrifo,
sem ter a genialidade do modelo, possui inegável valor literário, desde que
considerado como uma farsa, uma paródia da história escrita pelo “manco de
Lepanto”. Suas situações são sem dúvida hilariantes, além de possuírem como
marca registrada o tempero forte de uma linguagem bem mais desabusada, que às
vezes atinge níveis rabelaisianos de grotesco e de “grossura”.
Pode-se acrescentar
que a “dureza de pedra” à qual Cervantes alude no texto de Avellaneda, deve-se
ao fato do mesmo ter sido obrigado a seguir o roteiro previsto no tomo I, o que
limita o campo de ação do narrador e dos personagens. Voltando a Lucílio
Mariano Jr.:
“Alguém asseverou
certa vez que o livro de Avellaneda seria considerado uma verdadeira obra de
arte... se nunca tivesse havido o livro de Cervantes. (...) é um livro bem
escrito – isto é fora de questão.”
Lucílio Mariano Jr.
observa a falta de grandiosidade em Dom Quixote o a ausência de pureza em
Sancho Pança, “mas isto é porque Avellaneda (...) preferiu realçar o
lado pior de ambos, acentuando a loucura do fidalgo e tornando Sancho um misto
de bufão e de glutão”. E para concluir: “Se o dramático saiu perdendo, o
cômico pôde ser potencializado, sucedendo-se situações engraçadíssimas, uma
após outra”.
Como
Cervantes reagiu ao romance? Vejamos como o livro de Avellaneda se encaixou bem
no espírito de Cervantes. Logo de cara serviu de provocação e estímulo para que
ele mesmo saísse da letargia e partisse para pôr no papel a segunda parte da
história, que havia prometido ao encerramento do primeiro romance, “a fim de
tirar a náusea causada por outro Dom Quixote, que, com o nome de segunda
parte, se disfarçou e correu pelo orbe”.
Cervantes, que
andava demasiado inepto, enclausurado nos limites das suas moléstias, deu
graças a Deus ter surgido, assim do nada, um motivo para reviver as aventuras
de Dom Quixote, cujas edições se expandiram e replicaram rápido, como fogo na
palha, por toda a Ibéria, Portugal, França, Itália e Inglaterra. A continuação
do Quixote medrava em sua cabeça como erva no campo.
Não só o Dom
Quixote II foi assim induzido ao sucesso. Cervantes não deixou passar em branco
a menção às Novelas Exemplares e replicou a lembrança: “Mas, efetivamente,
agradeço a este senhor o dizer que as minhas novelas são mais satíricas
do que exemplares, porque isto mostra que são boas e não o poderiam ser se não
tivessem de tudo”.
Tudo é
publicidade... bem sei que são tentações do Demônio, que uma das
maiores é meter-se-lhe a um homem na cabeça que pode compor e imprimir um livro
com que ganhe tanta fama como dinheiro e tanto dinheiro como fama Talvez
aconteça o mesmo a este historiador, que não se atreva a tornar a soltar a
presa do seu engenho em livros que, em sendo maus, são mais duros que pedras.
e pouco me importa
que haja ou não haja imprensas no mundo e que se imprimam ou não contra mim
mais livros do que letras têm as coplas de Mingo Revulgo.
Não se parecerem
com as dele são as razões desta história, que se prossegue com a autoridade com
a qual ele começou, e com a cópia de fiéis relatos chegados a sua mão.
mas que se queixe
de meu trabalho pelo ganho que lhe tiro de sua segunda parte; pois não poderá,
pelo menos, deixar de confessa termos ambos o mesmo fim, qual seja o de
desterrar a perniciosa lição dos vãos livros de cavalaria, tão encontradiça em
gente rústica e ociosa.
Não só tomei por
meio entremear a presente comédia com as ingenuidades de Sancho Pança, evitando
ofender a quem quer que seja ou fazer ostentação de sinônimos desnecessários,
embora pudesse fazer bem o segundo, e mal o primeiro.
Só digo que ninguém
deve espantar-se de pertencer a autor diferente esta segunda parte, pois não é
novidade pessoas diferentes prosseguirem a mesma história. Quantos não trataram
dos amores de Angélica e de seus sucessos? As Arcádias, diversos as
descreveram. A Diana não é toda de uma só mão.
Em algo esta
segunda parte se diferencia da sua primeira, porquanto tenho humor oposto ao
seu, e, em matéria de opiniões quanto às coisas da História – e tão autênticas
quanto esta – cada qual pode dar as que melhores lhe parecerem, mormente se
para tanto lhe abre campo dilatado a cáfila dos papéis que para compô-la ele
leu, e que são tantos como os que deixei de ler.
Não me venha quem
quer que seja murmurar que não deveria permitir a impressão de semelhantes
livros, pois este não ensina a ser desonesto, ma sim a não ser louco. E
permitindo-se tantas Celestinas, que já andam mãe e filha pelas praças, bem s
pode permitir pelos campos um Dom Quixote e um Sancho Pança, a quem jamais se
conheceu vício; antes mui bons desejos de desagravar órfãs, desfazer tortos,
etc.
Com
esse prólogo cheio de prevenções contra o que viesse de ataques ao seu
atrevimento, Alonso Fernández de Avellaneda inicia o livro, sabendo de antemão
que deveria a obra ter a mesma altura do talento e simplicidade de Cervantes. E
assim foi. Não é mau o livro, diverte, é fiel, espalha-se derramando as
aventuras como se o Quixote tivesse dois pais, iguais em talento.
DUELO IMAGINÁRIO ENTRE DOIS PRÓLOGOS
Avellaneda: – Como
é quase comédia a história de Dom Quixote de La Mancha, não pode nem deve sair
sem prólogo. Assim, no princípio desta segunda parte de suas façanhas, sai
este, menos cacarejado e menos agressor de seus leitores do que aquele que na
primeira parte escreveu Miguel de Cervantes Saavedra e mais humilde do que
aquele saído em suas novelas, mais satíricas que exemplares, se bem que não
pouco engenhosas.
Cervantes:
– Valha-me Deus! Com quanta vontade deves estar esperando agora leitor, ilustre
ou plebeu, este prólogo, julgando achar nele vinganças, pugnas e vitupérios
contra o autor do segundo Dom Quixote; quero dizer, contra aquele que foi
gerado em Tordesilhas e nasceu em Tarragona! Pois em verdade te digo que não
hei de te dar esse contentamento, pois ainda que os agravos despertam a cólera
nos mais humildes peitos, no meu há de ter exceção esta regra. Quererias que eu
lhe chamasse asno, atrevido e mentecapto, mas tal coisa não me passa pelo
pensamento. Castigue-o seu pecado, engula-o a seu bel prazer e que não lhe
provoque engulhos.
Avellaneda: – Não
será estranho a ele o tom e as razões desta história, que se continua com a
autoridade que ela a começou, com a cópia de fiéis relatos que à sua mão
chegaram. E digo mão, pois confessa de si que tem só uma. E falando tanto de
todos, vamos dizer dele que, como soldado tão velho em anos quanto moço em
brios, tem mais línguas que mãos. Porém é certo se queixar do meu trabalho pelo
ganho que dele tiro da sua segunda parte...
Cervantes: – O que
não pude deixar de sentir foi que me chamasse de manco e velho, como se estivesse
na minha mão retardar o tempo, fazer que parasse para mim ou como se tivesse
saído manco de alguma rixa de botequim e não do mais nobre feito que viram os
séculos passados, presentes e esperam ver os vindouros. Se as minhas feridas
não resplandecem aos olhos de quem as mira, são estimadas, pelo menos, por
aqueles que sabem onde se ganharam. Que ao soldado melhor parece morto na
batalha do que livre na fuga. E tanto sinto isto que digo que, se agora me
propusessem e facilitassem o impossível, antes quisera ter estado naquela
peleja prodigiosa, do que curado das minhas feridas sem lá ter ido. As
cicatrizes que o soldado ostenta no rosto e no peito são estrelas que guiam os
outros ao céu da honra e ao desejar justo louvor.
Avellaneda: – Uma
coisa não poderá, pelo menos, deixar de confessar: que temos ambos um fim, que
é desterrar a perniciosa lição dos vazios livros de cavalarias, tão comum na
gente rústica e caseira. Se bem que nos meios diferenciamos, pois justamente
tais livros celebram as nações mais estrangeiras e a nossa deve tanto a eles,
por haver entretido, honestíssima e fecundamente tantos anos os teatros da
Espanha com estupendas e inumeráveis comédias, com o rigor da arte que pede o
mundo, com a segurança e limpeza que de um ministro do Santo Ofício da
Inquisição se deve esperar.
Cervantes:
– Sendo assim como é não tenho motivo para perseguir nenhum sacerdote que, de
mais a mais, seja também familiar do Santo Ofício da Inquisição. E se ele o
disse referindo-se a quem parece [Lope de Vega], de todo em todo se enganou,
que desse tal adoro eu o engenho, admiro as obras e a ocupação contínua e
virtuosa. Mas, efetivamente, agradeço a este senhor dizer que as minhas novelas
são mais satíricas do que exemplares, porque isto mostra que são boas e não o
poderiam ser se não tivessem de tudo.
Avellaneda: – Não
só tomei por meio entremesar a presente comédia com as simplicidades de Sancho
Pança, fugindo de ofender alguém e de fazer ostentação de sinônimos inventados,
apesar de saber fazer muito bem o segundo e mal o primeiro. Peço que ninguém se
espante de ver sair de diferente autor esta segunda parte, pois não é novidade
o prosseguir uma história diferentes pessoas. Quantos têm falado dos amores de Angélica
e suas aventuras? As Arcádias, diferentes autores têm escrito. A
Diana não é toda de uma só mão.
Cervantes: –
Sabendo que não se deve acrescentar mais aflições ao aflito e as que este
senhor deve ter são enormes sem dúvida, pois não se atreve a aparecer em campo
aberto e com céu claro, encobrindo o seu nome e falseando a sua terra como se
tivesse feito alguma traição de lesa-majestade. Da minha parte não me tenho por
agravado, bem sei que são as tentações do Demônio e uma das maiores é meter na
cabeça de alguém que pode compor e imprimir um livro com que ganhe tanta fama
como dinheiro e tanto dinheiro como fama. E para confirmação disto quero que
com todo o donaire e graça lhe contes este conto: "Havia em Sevilha um
doido que deu no mais gracioso disparate e teima que nunca se viu. Fez um
canudo de cana pontiagudo e apanhando um cão na rua ou em qualquer outra parte,
prendia uma pata com os pés, com a mão levantava a outra e, como podia, lá lhe
adaptava o canudo no lugar em que, soprando, o deixava redondo como uma bola.
Quando ficava desse jeito dava duas palmadinhas na barriga e soltava dizendo
aos circunstantes, que sempre eram muitos: – Pensarão agora vocês que é pouco
trabalho inchar assim um cão?" – Pensará agora você que é pouco trabalho
fazer um livro?
Avellaneda: –
Também Miguel de Cervantes, já tão velho como o castelo de São Cervantes, anda
pelos anos tão descontente, que tudo e todos o enfadam. Por isso está tão
carente de amigos que, quando quiser adornar seus livros com sonetos
campanudos, terá de solicitá-los - como ele mesmo diz - ao Preste João das
Índias ou ao Imperador de Trapizonda, porque não encontrará autor, quiçá em
toda a Espanha, que não se ofenda de que mencione seu nome. Como permitirão
tantos ter os seus versos no princípio dos livros do autor de quem murmura?
Rogue a Deus que também o deixe, agora que se recolheu à Igreja e foi
consagrado! Contente-se com a sua Galatea e as comédias em prosa, que
apenas isso é a maioria de suas novelas.
Cervantes:
– Dizes que ando muito acanhado e que me mantenho demasiadamente dentro dos
limites da minha modéstia. Convém advertir que não se escreve com cabelos
brancos, mas sim com o entendimento, que costuma aprimorar-se com os anos. Se
este conto não se enquadrou, conto outro que também é de orate e de cão:
"Havia em Córdoba um doido que tinha por costume carregar na cabeça uma
pedra de mármore ou um pedregulho. Ao topar com algum cão descuidado,
aproximava-se e deixava cair o peso em cima dele. O cachorro se machucava e
ladrando e ganindo corria tanto que não parava nem em três ruas. Acontece que
entre os cães atacados um deles era o cão dum chapeleiro, que o estimava muito.
O doido atirou a pedra na cabeça do cão que desatou a ganir dolorido, quando o
dono viu tudo e tudo sentiu, agarrou na vara de medição, foi ter com o doido e
não lhe deixou uma costela inteira. A cada paulada que lhe dava, dizia: –
Ah! ladrão! Ah! cachorro! Pois não viste, cruel, que o meu cão era
podengo? E repetindo o nome “podengo” muitas vezes,
enfim largou o louco, depois de ter deixado seus ossos num feixe só. Se lamentando
da sova que levou, o doido sumiu e por mais de mês não saiu à praça. Ao cabo
desse tempo voltou com a mesma invenção e com maior carga. Chegava aos cães,
olhava fixo para eles por muito tempo e sem querer nem se atrever a descarregar
a pedrada, dizia: – Este é podengo! Cautela!" E
efetivamente, quantos cães topava, ainda que fossem sadios e fortes, dizia que
eram podengos e nunca mais disparou o pedregulho. Talvez aconteça o mesmo a
este historiador: que não se atreva a tornar a soltar a presa do seu engenho em
livros que, em sendo maus, são mais duros que pedras.
Avellaneda:
– Não me canses. São Tomás ensina que a inveja é a tristeza do bem e do
progresso alheio, doutrina que tomou de São João Damasceno. A este vício dá por
filhos São Gregório na exposição e detração do próximo, gozo dos pesares e
pesar das alegrias. E bem se chama este pecado inveja a non videndo,
quia invidus non potest videre bona aliorum. Efeitos todos tão infernais
como sua causa, tão contrários aos da caridade cristã, de quem disse São Paulo,
charitas patiens est benigna est, non emulatur; non agit perperam, non inflatur,
non est ambitiosa, congaudet, veritati. Desculpem os erros das citações da
primeira parte, porque o fato dele tê-la escrito entre companheiros de cárcere,
não pôde deixar de sair tisnada deles, nem menos queixosa, murmuradora,
impaciente e colérica, igual ficam todos os presos.
Cervantes:
– Senti também que me chamasse invejoso e me descrevesse como a um ignorante.
Qualquer coisa que seja a inveja, verdade, verdade, de duas que há eu só
conheço a santa, a nobre e a bem-intencionada. Viva o grande Conde de Lemos,
cuja cristandade e liberdade bem conhecida, contra todos os golpes da minha
aziaga fortuna, me conserva de pé. E viva para mim também a suma caridade do ilustríssimo
[Cardeal-arcebispo] de Toledo. Pouco me importa que haja ou não haja imprensas
no mundo, que se imprimam ou não contra mim mais livros do que letras têm as
coplas de Mingo Revulgo. Estes dois príncipes, sem que a minha adulação
solicite, nem outro gênero de aplauso, só por sua bondade tomaram a seu encargo
favorecer-me. E nisso me tenho por mais ditoso e mais rico do que se a fortuna
pelos caminhos ordinários me tivesse posto no pináculo.
Avellaneda: – Em
algo diferencia esta parte da primeira sua; porque tenho o humor também
contrário ao seu. E em matéria de opiniões em coisas de história, tão autêntica
como esta, cada qual pode caminhar por onde melhor pareça. Ainda mais dando
para ele tão dilatado campo, a cáfila dos papéis são tantas, tanto quanto os
que deixei de ler.
Cervantes: –
Digo-lhe também que a ameaça que me faz, de que me há de tirar os lucros com
seu livro, nada se me dá que, acomodando-me ao entremez famoso de A
Perendenga, lhe respondo que viva para mim o vinte e quatro meu senhor e Cristo
para todos.
Avellaneda:
– Não me murmure nada de que se permitam impressões de semelhantes livros, pois
este não ensina a ser desonesto e sim a não ficar louco. E permitindo-se tantas
Celestinas, que já andam mãe e filha pelas praças, bem se pode permitir
pelos campos um Dom Quixote e um Sancho Pança, dos quais jamais se conheceu
algum vício, antes somente muitos desejos de desagravar órfãos e desfazer os
tortos da vida.
Cervantes: – A
honra pode-a ter o pobre, mas não o vicioso. Pobreza pode enublar a fidalguia,
mas não escurecê-la de todo. Mas como a virtude dá alguma luz de si, ainda que
seja pelos inconvenientes e vestígios da estreiteza, vem a ser estimada pelos
altos e nobres espíritos e, portanto, favorecida. E eu quero dizer mais a ti
leitor, senão advertir-te, que esta segunda parte de Dom Quixote que te ofereço é cortada pelo mesmo oficial e no mesmo
pano que a primeira e que te dou nela Dom Quixote dilatado e finalmente morto e
sepultado, para que ninguém se atreva a levantar-lhe novos testemunhos, pois já
bastam os passados e basta também que um homem honrado desse notícia destas
discretas loucuras, sem querer de novo entrar com elas. A abundância das
coisas, ainda que sejam boas, faz com que se não estimem e a carência, ainda
que das más, alguma coisa se estima.
Rio de Janeiro, Cachambi, 8 de janeiro de
2015.
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