Metia
pena deveras o pobre noviço, muito criança, imberbe ainda, rosto liso e sedoso
como o de uma mulher nova, olhar frio e indiferente, arrastando sua triste
batina de jesuíta naquele úmido esconderijo, de fera, que a luz ourejava com
medo...
Oscar
de Miranda tinha dezoito anos quando entrara para o convento de São Francisco
das Chagas, medonho casarão perto do mar, com uma cruz no alto, cheio de
mistério e de silêncio.
Um
grande e impenetrável segredo envolvia-lhe a mocidade, trancando-o às alegrias
do mundo e às sensações da carne.
Sua
mãe, pobre viúva, que morava num casebre da Rua das Trindades, ao pé de uma
igreja, levava melancolicamente uma existência de miséria e desgosto, suspirando
pela morte, gemendo sua velhice inconsolável. Coitada, muita vez largava-se a
pedir esmolas para não padecer fome, porque a triste queixava-se de umas dores
na espinha, que a não deixavam trabalhar muito nas suas costuras e nos seus
bilros. O filho, o ingrato Oscar, fugira-lhe de casa uma noite (que noite
aquela!) e nunca mais voltara.
—
Filho sem coração! maldizia nas horas de desespero. Deixar-me sozinha com o meu
sofrimento, nesta miséria, neste desamparo...
E
chorava, a pobre velha chorava amargamente o seu abandono, a sua dupla viuvez.
De
Oscar sabia-se apenas, e muito mal, que entrara num colégio de jesuítas sem
dizer nada à mãe, sem comunicar a pessoa alguma. Atribuíam-se-lhe umas poesias
cheias de santidade que andavam nos jornais daquele tempo, e onde cada verso
palpitava como um coração apaixonado e cada estrofe tinha um sabor amargo de
lágrimas... O pai morrera doido num hospício de província; metera-se-lhe na
cabeça que tinha visto Jesus Cristo em pessoa e que o mundo havia de se acabar
num sexta-feira da Paixão. Quando chegava a Semana Santa o acesso era certo:
confessava-se, não saía à rua, esperando o grande cataclismo. Ainda na hora da
morte lembrou à irmã de caridade que o fim do mundo estava próximo.
Os
jesuítas queriam muito ao noviço, ao "pobre menino" porque ele,
Oscar, sabia cumprir com os seus deveres religiosamente e passava a maior parte
do tempo ajoelhado no altar-mor, defronte do Redentor da humanidade, batendo
beiços, a rezar, a rezar, como quem nada espera da vida...
A
comunidade havia-lhe concedido, a muito custo, uma triste cela nos fundos do
convento, junto à estrebaria — um pequeno quarto úmido e triste, sem janelas,
ninho de ratos e de morcegos.
O
menino estava muito bem ali, dissera frei Tiago, o superior. O convento é o
purgatório da vida. Era preciso esquecer o mundo completamente, absolutamente,
viver só para Deus. Mais tarde, quando o menino ficasse homem, então, sim,
dava-se-lhe um comodozinho mais claro, mais largo e arejado... Ele, frei Tiago,
também sofrera muito no princípio, logo ao entrar para a ordem, como não? No
começo a gente padece, depois tudo corre melhorzinho...
E
o noviço passava noites e noites acordado, à luz bruxuleante de uma lamparina
de azeite, manuseando impressos religiosos, velhos "Fios Sanctorum",
crônicas seculares, a vida de Jesus... ora a olhar o teto, — o pensamento
perdido no ar, imóvel, calado, numa adinamia de todos os sentidos. Muitas vezes
os guardiães da ronda iam surpreendê-lo no seu recolhimento, alta noite, quando
só se ouvia o badalar sonolento da sineta, de hora em hora, e a respiração
larga e sibilante dos rotundos missionários.
Por
fim Oscar foi perdendo a cor primitiva e sadia do rosto, o brilho triunfante
dos olhos, a maciez sedosa da pele, a sensibilidade de certos órgãos e
tornou-se uma criatura à parte na humanidade, um ente nulo, sem vontade e sem
energia viril, como os loucos, cada vez mais langue, muito pálido, um laivo
roxo nas olheiras, galvanizado na sua invariável sotaina preta, onde já havia
manchas de cera e traços de miséria. Se a mãe o visse, com certeza não
reconhecia naquela abjeção de homem o seu filho querido...
No
escuro e cavernoso pátio do convento brilhava às vezes a luz tímida de uma vela
— era Oscar, o noviço, que ia dar de comer aos animais, — um cavalo velho e uma
jumenta, que tinham pertencido a outras gerações de frades. Obrigaram-no a isso
e a muitas outras coisas tristes...
—
É preciso sofrer, é preciso sofrer com paciência, repetia frei Tiago. Cristo
morreu por nós. Bem-aventurados os que padecem na terra: deles é o reino do
céu...
Havia,
porém, outros frades de gênio alegre, espíritos folgazões, que se divertiam à
custa do noviço.
—
Anda, vai dar de comer aos bichinhos... Bem-aventurados os que se compadecem de
seus semelhantes...
—
Já foste à cavalariça, ó lambisgoia? O cavalo de frei Tiago está te
esperando...
E
riam num deboche franciscano, à refeição.
O
outro sofria, sem dizer palavra, o debique dos jesuítas.
Aconteceu,
uma noite, que frei Tiago foi encontrar o noviço chorando com a cabeça entre as
mãos e a murmurar uma lengalenga sem sentido, frases incompletas, de idiota,
cortadas de soluços.
O
frade, que ainda tinha uns restos de piedade lá bem no fundo de sua alma,
aproximou-se devagar, no bico dos pés e pôs-se a escutar, muito admirado, cheio
de interesse, aquele monólogo incompreensível.
Pouco
a pouco Oscar foi-se ajoelhando defronte de uma imagem da Virgem, que havia na
cela, e, mãos postas, o olhar pregado à parede, os lábios trêmulos, vibrando
nervosamente, delirava como um alucinado. Saíam-lhe da boca invocações,
queixas, preces, mágoas de um misticismo evangélico e logo pragas, ameaças, blasfêmias horríveis.
—
Jesus! saltou de repente o superior. Que é isso, filho? E a sua voz conselheira
e repreensiva a um tempo foi como uma forte mordaça que tivesse cosido a boca
ao neófito.
Fez-se
de chofre um silêncio grave, um triste silêncio de ergástulo, profundo e
melancólico. O esguio perfil do velho esbatia-se na parede fantasticamente, com
a sua longa barba em ponta, o capuz triangular caído para trás.
O
noviço imobilizara-se aterrado.
—
Levante-se, criatura, tornou o monge compadecido.
Oscar
fez meia volta sobre os joelhos e abraçando as pernas do outro, beijando-lhe as
mãos, aflito, desesperado, suplicou:
—
Perdão, frei Tiago, perdão pelo amor de Deus. Ela está no céu, essa que morreu
por minha causa, alma de minha alma, irmã de Nossa Senhora. Eu amo-a contudo,
porque ela é a minha Maria Santíssima, rainha de meu coração, vera-efígie da
mãe de Jesus...
—
Filho, que é isto?! Estás louco, perdeste o juízo? Acalma-te, ergue-te!
Debalde
frei Tiago procurava suspender pelo braço o pobre moço. Oscar pesava mais que
chumbo, e arrojava-se-lhe aos pés com uma fúria selvagem, proferindo absurdas
imprecações, em que passavam queixas de amor...
—
Insensato, quanta blasfêmia!
O
velho monge tapava os ouvidos horrorizado, indeciso, pedindo a Deus que
aparecesse alguém para o socorrer naquela aflitiva situação.
Mas
havia um silêncio de sepultura no pátio e nos corredores do casarão entregue ao
sono da meia-noite.
Entretanto,
era preciso resolver alguma coisa. Aquilo não podia continuar. Decididamente o
rapaz estava doido. Fez um grande esforço para arredar o noviço, cujos músculos
pareciam de ferro e, depois de uma luta de momento, breve, mas encarniçada,
pôde evadir-se, abalando por ali fora, cheio de pavor, assombrado, como um
assassino que foge à própria sombra.
—
Espera! Espera! prorrompeu o noviço, perseguindo-o. Espera, frei Tiago!
Quero-te estrangular, foste tu que me prendeste aqui dentro... Espera, demônio!
Mas
tropeçou na carreira que levava, e estendeu-se no chão com todo o peso do
corpo, abertos os braços formando uma cruz negra.
Surgiram
luzes por todas as portas. O convento inteiro acordara com o barulho,
espavorido, sobressaltado.
E,
ao lívido clarão das lanternas, aquele corpo magro e sumido, entulhando o
pacato corredor, inerte sobre as lajes, tinha o aspecto sinistro de um crime
noturno...
Oscar
de Miranda estava numa postura de crucificado, peito sobre o chão de granito.
Morreu instantaneamente, jorrando sangue pela boca.
Ao
redor do cadáver moviam-se os frades numa azáfama acelerada, sombrios,
lúgubres, entrecruzando-se no corredor sem fim, multiplicando-se em sombras,
como uma fantástica legião de demônios.
Só
então foi descoberto o mistério que pesara sobre o coração de Oscar: — um
primeiro amor discreto e malogrado. Lá estava, a um canto da cela, dentro de
uma simples caixa de ébano, toda a história banal e pungente dessa paixão
ignorada, que frei Tiago narrara agora com uma pena tocante:
—
Ninguém suspeitara tal coisa, dizia ele. Uma loucura, uma verdadeira loucura!
A
crônica limitou-se a registrar o fato com a fria simpleza de um depoimento.
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Digitalização, pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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