O menino sem olhos
Uma
mãe teve dois filhos.
Eles
foram pedir esmola, que não tinham nada.
Ela
deu-lhes um farnel e perguntou-lhes se queriam ambos comer da mesma vasilha ou
levar cada um o seu farnel.
O
mais velho disse que era melhor cada um levar o seu farnel.
Assim
foi.
No
caminho o irmão mais novo perguntou ao irmão se era melhor comerem cada um do
seu farnel ou comerem primeiro um e depois o outro.
O
mais velho disse que era melhor assim.
Assim
foi.
No
primeiro dia comeram ambos a comida do mais novo.
No
segundo dia, eram já horas de almoçar, disse o mais novo:
–
Ó irmão, vamos agora comer?
O
mais velho respondeu-lhe:
–
Não, que ainda é cedo.
Depois
ia comendo e o mais novo não comia nada.
Ao
jantar, o mesmo; enfim, o irmão mais novo já levava tanta fome que lhe tornou a
pedir ao menos um bocadinho de pão.
O
mais velho disse-lhe:
–
Se me deixares tirar um olho, dou-te.
O
mais novo, como estava desesperado com fome, obrigou-se a deixar tirar um olho.
Mas o irmão mais velho tirou-lhe o olho, mas não lhe deu o bocadinho de pão.
O
mais novo tornou a pedir-lhe ao menos metade. O irmão disse-lhe:
–
Pois só te dou metade se me deixares tirar o outro olho.
Depois
o mais velho foi-se embora e deixou o irmão ali só e desamparado.
O
menino, vendo-se cego, deixou-se por lá andar a ver se encontrava alguém que o
guiasse no caminho.
Chegou
abaixo de um monte e ouviu cantar a água de um rio, e ali parou dizendo
consigo:
–
Nada, daqui não passo eu, que, como não veio nada, posso meter-me ao rio e
morrer afogado.
Conheceu
que era noite e foi indo às apalpadelas e encontrou uma árvore e abanou com
ela, e ouviu cantar as folhas e depois trepou para cima e ali ficou naquela
árvore.
Próximo
à árvore estava uma ponte, onde costumava ir o demônio com as bruxas fazer
audiência.
Daí
a pouco vieram todas, conforme é costume, e estavam perguntando umas às outras
o que tinham feito naquele dia.
Uma
delas respondeu ao demônio que tinha cortado as águas à capital da França, onde
que ao fim de três dias morreria tudo à sede.
O
demônio perguntou-lhe o que tinha ela feito para cortar essas águas.
Diz
ela:
–
Eu, no espaço de quatro a cinco léguas, por onde passa a água, encantei uma
cobra e meti-a no canal da água, onde a cobra está presa de cabeça e rabo
dentro de um anel, e a água está presa no meio do rolo da cobra.
O
demônio perguntou:
–
Então não haverá outra vez remédio para soltar essa água para a cidade?
A
bruxa disse:
–
Há, mas eu não digo a ninguém.
O
demônio disse:
–
Então, nem a mim?
A
bruxa respondeu:
–
A ti sim, como mestre. O remédio é havendo quem se aventure a lá ir com uma
lança de ouro e tirar o anel que está dentro da cobra sem a ferir; tanto corre
a cobra para o monte, como a água que vem da fonte.
O
menino, que estava em cima da árvore, aprendeu isto tudo.
Uma
outra bruxa disse:
–
Eu também enfeiticei o rei da Itália, que está encarangado (entrevado, perro
dos nervos do corpo) de todos os membros do corpo que se não pode mover para
lado algum. E toda a família real morre desta aflição.
O
demônio perguntou:
–
Então, que lhe fizeste tu para ele estar assim encarangado?
Respondeu
a bruxa:
–
Cosi os olhos a um sapo, com a mesma linha apertei o sapo de pés e mãos e tudo,
e meti-o debaixo da cama de Sua Majestade.
O
demônio perguntou:
–
Então não haverá remédio para dar outra vez saúde a este rei?
A
bruxa disse:
–
Há, havendo quem vá daqui à Itália ao jardim do rei, que tem um marmeleiro em
cima de um chafariz, e havendo quem lhe colha o primeiro ranco (arranco, ramo),
que faz um S em cima do chafariz, e lhe aguçar a ponta do feitio de uma lança,
e pescar com ela um peixe azul que anda dentro do tanque, e derretê-lo numa
bilha que não tenha levado nada, e levantando o pé esquerdo do leito do rei e
tirando o sapo que está metido debaixo, e descosendo-lhe os olhos e
desamarrando-o de modo que não se fira o sapo, e deitando depois o sapo ao
jardim. Estando o peixe derretido, dar depois uma untura ao rei, e daí a pouco
logo o rei está com a sua saúde, mas decerto o rei morre porque eu não o conto
a ninguém.
O
menino, que estava em cima da árvore à escuta, aprendeu tudo.
Depois
uma outra bruxa disse ao demônio:
–
E tu, o que é que fizeste?
O
demônio respondeu:
–
Eu já fiz obra maravilhosa, já fiz com que tirasse os olhos um irmão ao outro;
também já há três dias que tenho feito com que uns bem-casados se deem
mal.
A
bruxa perguntou-lhe:
–
Então que fizeste tu para um irmão tirar os olhos ao outro?
O
demônio respondeu:
–
Atentei-o para o mais velho não dar um bocadinho de pão ao mais novo sem lhe
tirar os olhos.
A
bruxa perguntou:
–
Então não haverá remédio para esse menino ficar outra vez com vista?
O
demônio disse:
–
Há, mas como o há de ele saber se eu não conto a ninguém?
A
bruxa disse:
–
Mas deves contá-lo a nós, como nós te contamos tudo a ti.
O
demônio então disse:
–
Está aqui perto uma árvore, cortando-lhe três folhas e cuspindo-lhe três vezes,
antes de amanhecer, e pisando estas folhas na mão, com o sumo da folha e com
cuspo da boca, untando as capelas dos olhos (pálpebras), aí se fica com a vista
natural.
–
E para se darem outra vez os bem-casados como se davam?
O
demônio respondeu:
–
Indo a uma igreja matriz, colhendo uma bilha de água benta da pia do batismo,
colhendo umas ervinhas que lhes chamam os cristãos alecrim.
A
bruxa perguntou:
–
Então, que fizeste tu para esses casados se darem mal?
O
demônio respondeu:
–
Aqui ao cimo deste monte moravam uns bem-casados, e eu fui-me meter debaixo da
cama. O homem, quando entrava de fora para dentro, olhava para debaixo da cama e
via-me lá e figurou-se-lhe que era um homem e começou logo a maltratar a mulher
de más palavras. Assim se começou de dar mal, julgando que a mulher andava
amigada. A mulher não fazia senão chorar e dizer que tal coisa não fazia.
A
bruxa perguntou:
–
Então, não haverá outra vez remédio para eles ficarem bem?
O
demônio respondeu:
–
Sim, então já te não disse que em ir buscar a bilha de água benta da casa em
cruz, quando me lá vir, que eu fujo, e assim se tornam eles a darem-se bem?
Nisto,
o menino, que estava em cima da árvore, aprendeu tudo; depois pegou nas folhas
da árvore, que era a mesma onde ele estava, e fez o que disse o demônio. Depois
ficou logo com vista.
Assim
que foi dia, desceu pela árvore abaixo e tratou logo de procurar a casa dos malcasados.
Fez
tudo quanto o demônio disse e eles ficaram bem.
Dali
passou à França e desencantou a cobra e deu água à cidade.
O
rei de França deu-lhe logo uma porção de dinheiro.
Depois
foi para a Itália e fez também o mesmo que a bruxa tinha dito ao demônio.
Quando
o peixe estava derretido, o menino falou para o rei e disse:
–
Real Senhor, tenha a bondade de mandar todos os médicos embora, que Vossa Real
Majestade hoje ainda os há de ir visitar a casa.
O
rei assim fez.
Depois
o menino esfregou-o com o óleo do peixe e ficou o rei logo curado.
Depois
que o rei se achou bom, levou o menino para o palácio e depois casou com a
filha do rei.
O
rei morreu e ele ficou senhor do reinado.
Nisto,
o irmão mais velho andava pedindo pelo mundo; foi andando de terra em terra,
até que foi dar ao reino do irmão, mas sem saber.
Um
dia estava o rei à janela mais a rainha e viu aquele homem e conheceu que era o
irmão e disse para a sentinela que estava à porta do palácio:
–
Ó sentinela, prenda-me aquele homem e traga-mo cá à minha presença.
Neste
momento foi-se o rei fardar com as suas insígnias como rei e sentou-se no
trono.
A
sentinela levou o preso à presença do rei.
Depois
o rei começou a perguntar ao homem de que terra era ele.
O
preso estava sem saber o que havia de dizer. Afinal lá contou a sua vida.
Depois o rei perguntou-lhe:
–
Que é feito da tua mãe?
Ele
disse:
–
Eu não sei, porque desde que saí de casa não tornei lá a voltar.
–
E que é feito de teu irmão?
–
Então Vossa Majestade conhecia meu irmão?
O
rei disse que sim e perguntou-lhe porque é que ele lhe tinha tirado os
olhos.
O
irmão começou a negar. O rei disse-lhe então que bem sabia que tinha sido por
tentação do diabo e que ele era o seu irmão.
Depois
ficou no palácio com o rei, que lhe perdoou.
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