5/31/2019

O imaginário (Conto), de Alberto Rangel



O imaginário
Quase a ser esmagada pelas casas altas de ao pé, a locanda do Jerônimo, pequena e antiga, ficava à rua numa obscuridade humilde de maltrapilha junto a damas vistosas do talho dos vestidos e do recamo das joias. Bem por cima da porta, num quadro azul e em letra má, lia-se esta longa, preciosa e laudatória indicação:
JERÔNIMO DA NATIVIDADE
Entalhador e santeiro Aqui trocam-se imagens,
doura-se, tamb
ém faz-se qualquer obra de conserto.
Trabalho fino e de gosto garantido.
E quem para dentro espiasse, veria um diabo de velho de raras falripas mal sustidas por um gorro de flanela escura, agitando entre o brilho e o vivo colorido das imagens a sua magra figura de ermita. Contudo nenhum pasmo do ermita, de estar ali, naquela celestial privança; antes com certo modo profano de tomar daqui, atirar pra acolá, serrar, ajustar, apertar e pintar muito para irritar as almas das raras e meigas criaturas vindas à loja para o negócio. O caso era que o ofício tirara-lhe a fé, duramente, à força do desânimo de estar ali havia quarenta e dois anos a fio, lidando de canseira no lombo e na vista, repelido cegamente da fortuna.
Dantes ainda havia certa procura de imagens, mas agora o seu comércio afrouxara sensivelmente. A freguesia era restrita a um raro mulherio de zelo religioso e mais um ou outro pároco que encomendava o santo preferido, recomendando muito a obra, churriando exi­gências e pingando o pagamento a prestações insignificantes.
— Súcia — resmoneava o Jerônimo de boca má e torcida, o gorrozinho atirado para o bulbo, agitando-se no interior da loja e circunavegando os olhos, olhos de uma luz quase fugitiva de raras fosforescências na água parada de duas poças juntas.
Ali em volta, numa corte do céu, estavam, como vasilhame espalhado na montra de um louceiro, as figu­ras prontas. Reluziam de ouro e prata nas túnicas e nos resplendores fixos à nuca com segurança. As carnes viam-se-lhes muito róseas, como de uma tenra pasta de amêndoas cobertas.
Encostado em tronco cor de chocolate um "São Sebas­tião" eriçado de setas mostrava o corpo nu. Esse pa­droeiro da cidade, de todos era o que tinha mais saída.
A um canto, um "São Luís de Gonzaga", com a cabeça meio pendida sobre o lado, vestia o busto de linho branco sobre o negro da roupeta. Fizera-o para um colégio municipal, mas como dias depois procla­mara-se a República, recusaram com desprezo o "São Luís", que ficou retirado e só, derrotado do culto pelo sopro destrutivo da revolução. O moço jesuíta parecia talvez deliciado desse repúdio dos homens...
À luz esfiada duma fisga no teto, um "São Miguel" de legionário romano, escudo redondo no punho esquer­do e todo esbraseado na couraça, no olhar e no gesto calcava com dantismo, como se pisasse num ovo, um dragão escamoso e de boca infernal.
De estamenha cor de rapé, Santo António expunha especado por sobre um livro vermelho ao braço esquerdo uma criança nua, como se retirada fosse pelo frade franciscano de uma recente parturiente. "Santa Rita" tinha nas mãos estendidas à frente uma palma e uma cruz. Como um pastor de idílio, "São João Batista", com a cintura envolvida numa pele grosseira, tinha aos pés um cordeiro branco, o qual pela expressão do pastor dir-se-ia a última rês de um rebanho perdido em últimas enxurradas na devesa...
"São José"... "São Benedito"...
E Jerônimo sabia-lhes as crônicas todas, dos mais conhecidos e dos mais obscuros, e gostava de fazer valer as suas virtudes, contando os transes, as histórias dos seus martírios, acentuando a relação dos milagres a fim de excitar o apetite ao freguês, chamando-lhe a crença ao coração como o sinapismo ao sangue, para que alte­rada a imaginação e despertada a veneração desatasse os cordões à bolsa...
E Jerônimo narrava.
Eram mulheres sobre o furioso governo dos tiranos, muito brancas e frágeis em caminho para os leões... Iam de roldão com soldados brutos da guarda. E muitas vezes, no circo, as feras com fome ficavam-lhes aos pés, as fauces travadas, diante a láctea e apetescente nudez dos corpos virgens.
Eram penitentes, solitários, em grotas no deserto, flagelando as carnes e rogando a Deus, apenas se alimen­tando de ervas mal cozidas. Havia anacoretas que ao simples olhar curavam chagas ou a cegueira...
Eram santos bispos inflamados da fé, recusando adorações aos deuses do império, e degolados nos cár­ceres sem luz. Outros dilacerados a unhas de ferro, os olhos vazados, os braços decepados, cheios de miseri­córdia ainda pelos carrascos.
Tomados de mortificação e humildade, perante o epicurismo e o orgulho dos pagãos, no Egito, na Itália, na Antioquia, na Trácia, na Panônia, a gente cristã passava ao sacrifício sob os éditos dos Césares, cantando!
Às bastonadas dos algozes, exposto à inventiva cruel de um procônsul, para que sacrificasse a Júpiter, um retorquia:
— Nada me causará dor, porque a graça de Jesus em mim reside...
E fora entregue à populaça para ser apedrejado.
Ainda vinham pregadores, fundadores de ordens... eram abades, arcebispos, imperadores e papas ou simples monges carmelitas, dominicanos...
"São Martinho" expulsava os demônios. Bastava ele deitar cinza à cabeça e apertar um cilício nos rins e prosternar-se rudemente no chão. Tinha visões. Um dia estava embiocado na cela, quando, num luminoso turbilhão, um homem apareceu-lhe de coroa com pedra­ria fina, dizendo ser o Senhor. Mas o santo replicara:
— O Senhor jamais disse que viria coberto de púr­pura e com um diadema na fronte. Assim, não acredito que seja o Senhor, senão quando apresentar-se como um sofredor, tendo sobre o corpo as marcas da cruz.
Dessa forma o tentador, desfeito o embuste, sumira-se deixando após si um fétido sufocante.
Tinha sido soldado. E de uma vez, por um inverno ríspido, marchando na coorte, rasgara a sua capa para dar um retalho a um mendigo na passagem.
Jesus apareceu-lhe depois vestido desse pano. Com um óleo santo curara uma paralítica e abraçando um leproso afastara-lhe o mal. Sem cuidar, se envenenara com o heléboro, sendo salvo porque rezara.
Por fim, tomado de fadiga, o nonagenário Martinho caiu no leito com febre, para morrer. Demônios em torno saltavam em pinchos, numa sarabanda fantástica.
E ele confiante os afastava, expirando:
— Nada há em mim que vos pertença...
Havia gente capaz de ir à loja do seu Jerônimo, só para estar a ouvi-lo dar à língua sobre a vida dos santos, publicando as lendas, as narrativas miraculosas de seus feitos, enquanto ele mesmo passava índigo no corpete de uma "Virgem Dolorosa" ou parafusava um aro de metal por trás da cabeça venerável de um "São Lucas".
Assim tinha Jerônimo fama de larga sabença e muita santimônia.
***
Viera-se a passadas isócronas e largas. Se os olhos voltara, enxergaria ainda, num diluído de velhas tintas mortas, a casa que deixara e os dois sicômoros guar­dando a porta como sentinelas... lá onde ficara sua mãe.
A estrada batida em cascalho se estirava sempre em coleios de serpe fugindo. De uma banda e de outra, pastagens.
Um rio, longe, tinha a quietude de um fio de estanho. A noite, teceloa, desfiava as meadas de sombra, enquanto num ponto do horizonte, tal a luminosidade crua, parecia estar uma fileira de fusos novos de metal. Viera numa obstinação impulsiva e nervosa. Para cá, pensava alcançar o remédio para o lar pobre. A velha ficara inconsolável. Ainda quando ele fechara a porta, dando a volta à taramela pesadamente, ouvira-a soluçar. Andando, começara a saudade a abraçá-lo... e era então todo um turbilhão de lembranças amadas... junto à cerca, bem perto de uma ovelha deitada, quando dera o primeiro beijo na Márcia e foram feitas tantas juras de amor! Tivera então vontade de cantar e à toa pela solidão entornara o coração pelos ares num feixe cris­talino de rimas. Desafogava-se da ternura assim e a andada se fazia mais descuidosa e rápida. Mas de súbito calara-se. Nem era tanto, considerara... A treva infil­trava-lhe também doçura às reminiscências; o silêncio lhe aminguava os amargores passados... Vida que vivera, balançada na luzerna dos prados seguindo o gado em pastorejo, alevantando as pargas de milha ambreada e loura, plantando a mandioca, indo buscar água nas fontes... Nesse instante para trás ficara tudo isso; só a velha mãe às costas e distante parecia-lhe ainda tão perto que o hálito dela aquecia-o... Seguia-o a sombra amorosa de sua alma e pela escuridão ele aper­cebia-lhe em trespasses o vulto enfriorado, olhos postos no filho demoradamente.
Ora! Haveria de voltar, fornido de socorros para a melhora da sorte em comum, então sairiam ambos pra cidade, plenos de conforto...
E Márcia? rosto de rosa e leite, alta no aprumo virginal dos peitos sustidos a custo pela vistosa chita do corpinho; sempre de boca acesa para os beijos e pa­lavras de ciúme! Não conseguira afastá-la de si também, esta, a aturdi-lo, tomando-o pelo pescoço, fazendo-lhe promessas de fidelidade e o impregnado do perfume leve dessa flor de esponjeira a que cheirava. Azoinava-o, perturbava-o... vira-a recriminando de abandono e des­prezo, com os olhos pesados de ansiedade e langor. Era até um delírio, a rapariga apertava-o nos braços, mordia-lhe a boca...
E arredava-a de si, tomado de receio ainda do tio Baltazar, que os estivesse a espiar por um claro de moitas.
O tio Baltazar de muitas barbas e de muito zelo pela afilhada: "Que não lhe fosse estragar a menina, algum malandro!"
Coitado do tio Baltazar!
Ainda bem que ele Jerônimo não se blasonava de a ter beijado algum dia, uma vez ao menos, porque se o velho o soubera! Se bem que a Márcia por noites e dias, na explosão de seu sangue, levasse inquieta, pas­mando a comedida temperança dos casais, numa incorri­gível fuga por sombras e recessos de verdura, onde ele — o amante famélico — a apontasse. Ali pelo correr da estrada ele sentia-a, como tantas vezes por entre o mistério murmuro das folhagens. E tateava em torno, como apalpando essa porção deliciosa e quimérica das ancas...
— Eh! Jerônimo! A seu lado na sombra, um trecho mais espesso de sombra falara passando. Era o Tonico. Vinha de lenhar, noite em fora, numa sub­missão de animal cansado, se arrastando à toca. Fora um moço alegre e ardente... a Ifigênia, porém, fizera-o triste e dócil, sempre a cuidar do ganho para ambos, tão perseverante na lavra das terras e arredio das algazarras nas tavernas e nas folgas a bailar! Já haveria de fazer bem três anos que se tinham ajuntado e quem os visse ainda a caminho da missa dominical, tal a compostura e os olhares de ambos, juraria que eram noivos de ins­tante. Um dia, pensara, também a Márcia seguiria pelo seu braço para a igreja... Haveria nessa manhã toque de sinos para alvoroçar o povoado... Mas isso seria quando voltasse... não tardaria muito, arranjando uma posição onde trabalhasse sem cessar... e prelibava o gozo da sujeição a Márcia, de momento a outro a beijá-la nos lábios, nos olhos, nos cabelos...
Então, pesada que fosse a labuta, leve far-se-ia, e as colheitas dizimadas pelo granizo e o seu gado todo pesteasse, tudo suportaria, ó Márcia!
À esquerda avultava uma figueira brava, anosa e bronca; ele achegou-se às raízes. Estava cansado e as pálpebras tinham chumbo. No torpor da sonolência advinda, ainda a velha mãe aparecia num relevo pungitivo, e Márcia, de peitos altos, aparecia também; afinal, ambas amoráveis, se confundindo na sua pobre cabeça, nimbadas igualmente de saudade e aflição, os dois perfis iluminados no sonho.
O amanhecer decorava-se primeiro de um raio velilho de névoas úmidas; mas, quando Jerônimo erguera-se para a jornada, vinha do Oriente com o rúbido sol uma ampla e viva sugestão de glória e de triunfo, que cele­brados fossem na volta de uma empresa guerreira.
Para todas as bandas até o anel em fogo do hori­zonte a paisagem se aplainava.
Da véspera não sentira esse alvoroço de lembranças queridas, seguia só, cheio desse deslumbramento das coisas, atufado na morna e álacre sensação de vida intensa, que como subia da Terra e desgalgava-se do Céu. Toda essa quente recordação de recordações, vinha na caligem de uma tarde, esvurmada da memória do Jerônimo, o qual fumava aos chupões lentos um cigarro grosseiro, metido na obscuridade abafadiça da loja.
Somente, d'acolá, dessa marcha de esperança ao sol para a profissão de santeiro, abria-se um largo hiato a que não precisava avivar, tão triste se passara em fatos de misérias, brutalidades, prostrações, desmaios e lágrimas até.
Márcia já morrera de bexigas e a velha Maçaria, daquela casinhola dos sicômoros guardando a porta como sentinelas à espera do filho se finara louca de desespero dessa volta prometida.
— Ora, para que lembrar! disse entre dentes o Jerônimo, e ia sacudir o peito num soluço, quando passos e uma voz ronronada fizeram-no elevar do mocho, armado já da máscara amável e própria de um artista feliz.
— Senhor reverendo Barreira!
O cônego repuxou para as coxas a batina, deixando à mostra as meias roxas e uns pés magníficos, largos, plantados em sapatões luzentes de fivelões à frente e atirou-se a um canto, sentando-se.
E começou a falar com muito desabrimento e raiva, lamentando os tempos abarrotados de iniquidades, os templos às moscas, o serviço divino relaxado e cam­peando nos destroços da fé os ímpios e os hereges. Tanto que fazia pensar em vésperas do Anticristo!...
O reverendo Barreira tinha a catadura de um gastrálgico. Das frestas dos seus olhos passava o olhar em línguas vívidas de fogo, como das janelas de um pavilhão em chamas. E, demais, o reverendo falava sempre, como se pregasse num sermão de quaresma. E então nesses assuntos de impiedade e altruísmo!... ele não se con­tinha, nem escolhia as doces frases dos Evangelistas, nem se socorria do mel da Sulamita, nem da cólera untuosa dos profetas. Dava-lhes para baixo, de corja, grossa patifaria, safardanas...
Por fim ele cessou com as invectivas e aflições pelo "mal parado das coisas da religião" para dizer que se abalara até ali a fim de Jerônimo compor um "Cristo crucificado", que era para uma paróquia distante. Não precisava obra perfeita. Era para a roça. Quanto ao tamanho, bastava uns seis palmos, da cabeça aos pés. Queria-o, bem como a cruz, de cedro, isto sim, por medo ao caruncho.
***
Nesse dia, era por Pentecostes, o Jerônimo começou quase alegre o trabalho prometido na véspera ao furioso cônego Barreira. Por que essa boa disposição pelos seus músculos, pela sua alma? Não sabia. Também não valia a pena estar um velho, pés na cova, voltado para o passado e a vida fazendo rebentar as cóleras inúteis... tinha de ser. Era conformar-se e já sentia as pernas trêmulas e a respiração faltava-lhe...
A luz vinda de tora entrava na sala baixa da oficina, enchendo de cintilações por toda a parte a douradura das imagens esparsas, pendurando-lhe brilhos de joalheria.
E de escavava o toro da madeira, interessado de Arte, amoroso excepcionalmente do entalhar a figura macerada do crucificado. Era para ser posto talvez numa igrejinha branca e tosca, no regaço de um vale. Tudo docemente agreste em volta, as almas e a paisagem. Sempre aos pés da imagem os corações mansos dos de­votos e as rosas bravas das sebes. Confiada lhe seria a sorte das culturas, bem como a dos defuntos. Faria cessar as chuvas a tempo, salvando as sementeiras...
E de suas mãos grosseiras saía, obra sua, rorejada do seu suor, esse Cristo para o altar, a inflamar os fiéis de Amor e de Esperança! Na proteção aos plantios, no afastar malefícios, esse pau desbastado iria dar a tutela carinhosa e o exemplo consolador a toda uma população...
E enquanto assim considerava sob o corte da lâmina, entre seus dedos nodosos saindo as linhas tetanizadas do corpo sofredor, escorridas em magrezas crispadas do suplício. Acentuava-se a disposição espasmódica da tor­tura no rosto, nos braços, no tórax, nas pernas...
Às horas sobrevinham horas e Jerônimo, todo abra­sado de um zelo de Pigmalião, afundava rio escuro do cedro para o relevo das carnes congestas, cavando axilas, relevando costelas e joelhos... numa alucinativa e em­polgante exposição de ossos e de peles que a dor esta­lasse e arroxeasse, sem atender à luz do dia em torno, que dispartia, luz achacosa e atônica, escorrida numa frouxa talagarça amarela de folha seca...
Dias por diante ele ainda cortava o lenho, abrindo numa ânsia de Forma e de Ideal talhos à exigência das crispaduras na torvação do tormento.
Ao cabo, ele suspendeu numa cru/ a escultura. O reverendo Barreira poderia vir buscá-la. Ainda lem­brava-se das palavras dele:
"Não precisa obra perfeita. É para a roça."
Faltava só fixar o Nazareno.
Mas aquele ato repugnou-o. Ia renovar a cena odiosa do Calvário. Das mãos trêmulas, o martelo e os três cravos escaparam-se. E no entanto tantos já pregara com indiferença! Uns de gesso, outros de cedro...
Não! Sebo! Era só o que faltava, ele com esses escrúpulos de beatão — assim não fosse santeiro de ofício, e deitando a cruz com a vítima ao chão, ajoelhou-se perto, apanhando em seguida resolutamente os cravos e o martelo.
E preto, afogueado dum estranho calor, bateu... Apenas pode dar o primeiro golpe, tal a impressão da realidade terrível, no movimento de monstruosa contração da mão esculpida e cravada.
A sua criatura sentia! Tinha nervos e tinha san­gue! E Jerônimo deixou cair-se de bruços num aban­dono de fulminado, para logo acordar numa agonia arfante e torcida junto do crucifixo. Ambos no chão miseravelmente e escandalosamente, o Deus-filho e o seu Pai esgrouvinhado, de jaquetão velho, sem ressalva de dignidade e circunspeção, atirado ao assoalho, como um desprezível borracho.
Por fim Jerônimo tentou erguer-se, inutilmente... alongando os olhos contemplativos para o Cristo a seu lado. Depois tentou fincar no solo as palmas das mãos e elevar o corpo... Qual! Foi então que ele sentiu essa certeza da morte vizinha.
E apavorado ele acolheu-se no fundo do seu interior de um salto, numa derrota completa da personalidade, esperando gelado a última pancada do coração e o últi­mo raio da consciência. Via-se encolhido, pequeno, no escuro, em si mesmo, como alguém buscado para uma vingança ao quarto onde escondeu-se, ouvindo os passos do celerado de punhal em punho. Tudo quieto em si, de medo, só a alma covarde a espiar sobressaltada o curso do sangue nas veias...
Ia tudo findar pois, quando Jerônimo, numa vio­lenta surpresa, começou a ver... As pupilas olhadoras, dir-se-iam desembutidas das órbitas...
Márcia veio no seu viço rural de vagabunda dos campos. Ainda o mesmo aroma de esponjeira. O colo alto, moreno e lascivo. Veio num arrebatamento de lufada, num surto de Mocidade e Desejo até ele...
Enfim se encontravam! Para nunca mais se sepa­rarem, dizia. E Jerônimo concordava, meio confuso, tal como um adolescente:
— Sim... Nunca... nunca mais!
A moça abraçava-o muito, reeditava as antigas falas no encontro pelos cercados ou encruzilhadas dos ca­minhos...
Às vezes a lua enrolava a écloga num ralo e sacer­dotal amito de luar.
Ao longe, rente à ourela vaga de um banhado, rãs coaxavam ruidosamente.
E ambos trêmulos, mãos nas mãos, infiltrados da noite e da paisagem!...
Ela recordava, expertando as cenas, esfolhando o romance da Paixão.
Ah! e o tio Baltazar — o barbaças simples, todo fanfarrão da honra de sua afilhada — enganado! Márcia ria-se, comentando com sarcasmo e desdém. Jerônimo não pôde disfarçar um gesto de desgosto, mas a rapa­riga repuxou-o para si, num estonteante estender de braços nus. Ele deixou-se arrastar na impotência de reagir por uma vaga e animal esperança de acender os sentidos... tanto a Márcia lhe recordava coisas passadas, sensificando-lhe o sexo, procurando dar-lhe furores de apetite, numa rejuvenescida cobiça daquele amor an­tigo, que Jerônimo expirava sacudido de concupis­cência...
Por isto não se lembrava que estava a morrer, voando o pânico do qual se apossara, quando a Márcia entrou sacudindo labaredas de luxúria das saias arregaçadas e pálpebras molemente descidas.
Tomado pela Márcia, na irritação de todo o sensi­tivo, o imaginário tinha cinismos de um erotômano.
Ao cabo dessa loucura ele sentiu frio, frio de tiritar. Por sobre a armação do tórax, parecia-lhe ter alguém sentado. Eram os paroxismos dessa longa e perturbada agonia.
A Márcia afastara-se subitamente deixando-lhe a cabeça vazia e o peito sem ar.
Alguma coisa de estranho passava-se em si e quis gritar.
De um trecho da treva, carregado em lividezas de verde e de roxo, o Cristo suspenso por um braço tinha a extravagância sacrílega de desprezado por podre. De único cravo seu corpo pendia como um fruto a largar duma ponta de galho. Perto dele a Maçaria, a mãe de Jerônimo, pedia num largo pranto:
— Jesus! Jesus! Salvai meu filho!
Porém a Márcia, vinda de repente, atirou-se diabolicamente à imagem para lhe abafar na boca algum perdão, fazendo-a balançar como um estranho pêndulo, maldito na expressão de uma negativa formal e cruel a súplica materna. Não e não! Não e não!
E gritava devastada de indignação:
— O homem jurou não me abandonar nunca mais! Que tem a megera Maçaria de intervir? Se estou no inferno e ela entre os eleitos, vá para o coro azul cantar os salmos, que eu só quero o amar, que eu só quero o Pecado!...
***
— Muito boa noite, senhor Jerônimo... Muito boa noite....
Ninguém respondeu.
O reverendo Barreira que entrava saudando, sem saber recitava um responso. "Boa noite!"


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Digitalização, pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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