5/10/2019

O “Filósofo” (Conto), de Coelho Neto



O “Filósofo”

Cesário, debruçado sobre um grande atlas, aberto em cima da mesa, passeava o longo e nodoso dedo pela carta, resmoneando. Sentindo os passos de Jorge, levantou a cabeça:

— Estamos independentes, hem? Foram-se as gralhas? Pois, meu amigo, grandes e verdadeiras foram as palavras que eu aqui te disse: Tenho os ouvidos atordoados ainda e atenta bem a ver se não escutas, de quando em quando, o eco abominável das gargalhadas daquela partênia. Não sentes? São de assombrar, palavra! Precisamos recitar aqui dentro a Oração de Demóstenes ou alguma coisa de Cícero para purificar o ambiente. Dize-me: tens por aí alguma carta do mundo antigo? Ando a refazer o roteiro dos Árias, preciso disso para a minha obra e não encontro nesta carta sórdida senão coisas de ontem, discriminações pulhas de lugarejos vis, sem história, sem tradição, sem passado colônias inglesas, terras esterilizadas pela cobiça e pela crueza dos homens e dos tais sítios nem menção. Vê se descobres por aí nos teus cabedais alguma coisa. Se não tens, dize de uma vez para que eu desça. É possível que encontre na Biblioteca o que preciso. Ainda assim prefiro que procures porque, como é coisa preciosa e útil, decerto não será fácil achar nas estantes da Alexandria indígena.

E curvou-se de novo, mas, sempre passeando o dedo pela carta, interpelou o amigo:

— E a Cegonha, hem? Não foi. Já a vi pensativa e murcha ali na varanda a buscar sonhos no céu com os óculos radiantes. Mulher forte!

— Detesta as Moretti. Julga-as como eu.

— Ah! moralidade tem ela, isso tem. É mulher para exemplo. Deviam citá-la num Tesouro das meninas como modelo de virtudes, a fealdade inclusive, que é a maior das virtudes, porque repele o inimigo. Mas dize, como há de ser? E o roteiro?

— Que queres, não tenho livro que te sirva.

— Diabo! E eu que tencionava começar hoje a minha obra. É verdade... E se eu começasse pelo segundo capítulo? Há exemplos. Eu, que aqui estou, nasci por um braço. Há quem tenha nascido pelos pés: o Cosme, por exemplo, deve ter nascido assim. Hem? que dizes? Se eu começasse pelo segundo capítulo? E aprumando-se: Mas fala, homem... Estás mais triste do que a irlandesa. Fala e trata de acender o gás ou de fazer com que o acendam, porque já não vejo nada na Ásia: tudo é sombra. E o Mommsen? Tens aí o Mommsen?

A sala clareou de jato e a luz forte do gás, esbatendo-se no jardim, como que ainda mais lhe adensou as sombras crepusculares. Cesário passou a mão pela calva e, espreguiçando-se, bocejou estrondosamente:

— Diabo! Estou com uma famosa courbature. Dobrou-se para trás, com as mãos nos rins e, firmando-se, estendeu o braço para a chama loura do gás: Bem andou Jeová criando a luz antes de mais nada. Entanto há na sua grande obra alguma coisa anterior ao Fiat... a avareza, por exemplo... que dizes? Essa claridade entra-nos pelos olhos e vai até o mais fundo do cérebro como o sol atravessando os vidros de uma claraboia. E ainda há luz lá fora.

Lançou o olhar ao exterior e, voltando-se:

— Dize, que tal achas o pensamento que um dia procurei apertar em um soneto? e avançando com grandes gestos dramáticos, foi até a porta e levantou os olhos para o céu de opala: Ouve lá, não está em metro ainda. Digo-te a coisa como a recebi do gênio. A cena do soneto simples, tristonha: um crepúsculo. Eu digo então: Expira o sol! e atirou o braço esticado para o teto. Expira o sol... e Deus!... arma no céu um catafalco: a noite, trazendo para cirial do morto o plenilúnio. Que te parece? indagou e, fitando-o com grandes olhos: Mas que tens, homem? Estou aqui a falar-te como Apuleio aos bárbaros. Que tens? Jorge caminhava ao longo da sala, de mãos para as costas, parando, de instante a instante, para ouvir o “filósofo”. Que tens?

— Estou aborrecido, contrariado.

— Com a saída da menina? Não te preocupes. Descansa. Não lhe pegam os vícios das outras. Lembra-te da Marina do mestre. Onde é que Péricles a encontra? num alcouce infame e retira-a pura, como se retira o lótus d’água pútrida. Não te preocupes. Vamos cuidar de atravessar estas horas de sombra a rir. Queres que te diga? se algum dia eu procurasse meus filhos haviam de conhecer tudo filhos e filhas, tudo! A menina é sisuda, e, quando ela chegar, entrega-a à Cegonha para um grande banho moral. Não te preocupes. Anda daí. Olha a tarde que vai lá fora. Aposto que a Cegonha anda a gozá-la. Vem daí. E voltando-se de golpe: Afinal nem julgaste o meu pensamento. Que tal?

Jorge encostou-se à mesa e, brincando com a espátula de marfim, enfezado, deixando cair lentamente as palavras, disse:

— Nada me irrita tanto como essa amizade de Sara. Tenho insistido com ela para que vá, pouco a pouco, evitando tais relações... mas qual! É pior. Não a contrario, bem sabes; faço-lhe todas as vontades, basta, porém, que demonstre que não me agrada isto ou aquilo para que ela insista caprichosamente. E se me oponho, são maus modos, choros, não quer comer. Afinal parece que lhe devo merecer alguma coisa.

— Mas vem cá, não te aflijas, isso não tem valor. Não consintas mais, aí tens. É dizer francamente, na cara, quando elas aqui tornarem com convites: Não! não! e não! És pai, estás no teu direito. E passando-lhe um braço pelo ombro: Mas vem cá e sê franco: Tu o que sentes é falta da menina, e é natural: criaste-a. Mas, meu amigo, isso é bom em parte para que te vás acostumando porque, afinal, ela não há de ficar solteira toda a vida. E quando casar?

Houve uma pausa. Jorge afastou-se da mesa e, passando a mão pelo rosto, estacou no meio da sala, a olhar a panóplia que rebrilhava à luz. Voltou-se por fim dizendo, com resignação:

— Ah! bem, quando casar!... Mas vê-la em companhia de tal gente!? — Enfureceu-se: — E não sei que mais hei de fazer para que essas senhoras compreendam que não as tolero: evito-as, pouco lhes falo quando as encontro. Ainda hoje, viste? passaram aqui o dia e eu deixei-me estar a ler. Não sei mais que hei de fazer. — E caminhando, a sacudir os braços: — Não as aturo, fazem-me mal. No Catete, enquanto lá estivemos, nunca as visitei e elas não me saíam de casa perturbando-me o trabalho e a paz. Deves lembrar-te?

Cesário sentara-se num pliant e acompanhava com o olhar os passos do amigo. De repente, frenético, estrincando os dedos das mãos, bramiu:

— Pois, meu caro, com tal gente nada de eufemismos: não compreendem? é dizer-lhes a coisa à bruta. — Forcejou nos dois braços e, escorregando pelo linho, levantou-se pachorrento: — É dizer-lhe francamente.

Inocêncio apareceu à porta e, antes que falasse, Jorge despediu-o com um gesto:

— Já vamos; e para Cesário:

— É o que ainda faço, palavra de honra. E o que elas fazem com essa senhora...

— Com a Cegonha? Ora! ela não dá por isso. É fria, não tem nervos. O que ela quer é que a deixem em paz. Pensas que se zanga? Pois sim!... E, travando-lhe do braço, berrou-lhe ao ouvido: Não tem nervos! E noutro tom: Vamos jantar... Vamos, e pelo jardim, porque a irlandesa deve andar por lá extasiada, e assim, depois de nos deliciarmos com um pouco de sublime, vamos preparados para mirar-lhe os ângulos da cara macerada.

À porta Cesário estacou subitamente, apontando para o jardim:

— Olha, que te dizia eu? Olha lá... não vês aquela sombra esguia? Que te dizia eu? E, ganhando o jardim, o "filósofo" levantou os braços para o céu límpido: Mas admira! admira, homem! Há lá céus que se comparem a este? e luares...? Qual Nápoles, qual carapuça! Céu é isto! E como a irlandesa viesse perto, Cesário saudou-a: Good evening, Miss!... E ela, de longe, com um risinho, correspondeu: Good evening!

E tomando a frente, subiu as escadas, rija, ereta como um autômato. Cesário, de braço com o amigo, sussurrava:

— Olha bem... Vai ali um admirável tipo étnico. Dize se por esta mulher um Spencer não reconstituiria a raça dessa grande mina de John Bul, como os naturalistas, com um osso, reconstroem o arcabouço de uma das bestas colossais das eras pródigas, anteriores ao banho universal. Mas olha bem. Ela vai ali para o jantar com a mesma serenidade fria com que os homens rijos do seu país vão para os gelos do pólo ou para os cálidos sertões da Núbia.

Miss chegara à varanda e, voltando-se, lançou os olhos ao céu:

— Esplêndida noite!

Admirável, Miss!

E, já no alto, de mãos aos flancos, o olhar erguido: Lembra-se, Miss? As lindas frases do idílio entre Lourenço e a filha do Judeu, no Mercador de Veneza, quando, olhando o luar, entram a recordar noites de amores?

— Sim, sim...

E Mamoasele risonha, inflando as bochechas, com uma voz máscula e cadente, recitou:

The moon shines bright: in such a night as this...

Mas Cesário interrompeu-a delirante:

— Isso! isso! Grande memória, Miss! É fenomenal! Estupenda memória! E, como em monólogo: The moon shines bright... Exatamente. Mas é admirável! Jorge recostara-se à balaustrada. Miss, de olhos altos, contemplava o luar e Cesário, em pequenos passeios, balançando os braços, repetia baixinho: The moon shines... Súbito, porém, parando diante da porta da sala iluminada, lembrou: E o jantar? Estamos aqui em hipnose e a sopa esfriando. Entrando, voltou-se exclamando: Mas que memória, Miss!

Mamoasele sorria.

Folhagens e flores em vasos alegravam a mesa, arranjada caprichosamente como para um festim, debaixo do grande lustre, o “alampadário” como dizia o filósofo que, de vez em vez, em assomos de entusiasmo, lamentava ter nascido em tempos tão vis, sem arte, sem bravura, sem cavalheirismo e, gesticulando para o bronze, saudava-o como um representante da arte pura, antes da invasão do mercantilismo na estética.

Jorge e Cesário colocaram-se ao lado de Mamoasele que se sentara à cabeceira.

O copeiro serviu a sopa e, à primeira colherada, Cesário formulou a receita de uma futura alimentação reconstituinte e breve, tendo por base a peptona. E explicou:

— O homem é o animal por excelência, o rei da fauna, culminando na escala zoológica. É o ser que fala e ri, o único que se veste, e corta as unhas, os calos e o cabelo, reconhece as dívidas e casa-se. É o depositário do espírito de Deus, etc., etc. E esse ente superior, apesar de milênios de cultura, vive ainda como o troglodita nutrindo-se de carniça... só porque tem dentes, remanescentes da brutalidade primitiva. Mas, que diabo! assim como já não nos servimos das unhas nas lutas, tratando-as como enfeites dos dedos, que o manicuro enforma e pule, por que não havemos de fazer o mesmo aos dentes, conservando-os apenas como ornamentos? Há por aí quem os tenha encastoados em ouro, com brilhantes... O homem, a princípio, caçou para comer, como o leão e o urso, e espostejava vorazmente a presa, devorando-lhe os tassalhos crus. Com o fogo inventou o assado e toda a complicada culinária, causa da dispepsia. Hoje, começa a preocupar-se com a alimentação sintética, podendo trazer no bolso uma caixa de pílulas para nutrição de um ano e um frasco de essência fluida de uva para emborrachar-se às gotas.

Miss ouvia de olhos baixos, enlevada nas palavras sonoras do sábio suspendendo, às vezes, a colherada que levava à boca. Jorge interveio:

— Cesário, vê se concilias a palestra com a sopa, que está esfriando.

O “filósofo” baixou a cabeça e, durante um momento, sorveu gorgulhantemente. Depois, passando o guardanapo pelas barbas, referiu-se a Sarita:

— Se ela aqui estivesse já nos tínhamos travado em alguma discussão. Faz falta.

Mamoasele correu com os olhos rapidamente de um a outro. Jorge tamborilava com os dedos na borda da mesa, distraído. Notando que as suas palavras caíam na indiferença do amigo, como folhas secas num chão de areia, o “filósofo” calou-se, mas no momento de lhe servirem o peixe, resmungou, amuado:

— E dizer que isto é irmão da Afrodite.

Partiu o pão, trincou uma lasca e dirigiu-se a Mamoasele.

— E eu posso falar, porque tenho um estômago de ferro. Como tutu de feijão com linguiça à meia-noite, deito-me e durmo como um abade. Não sou homem de resguardos aqui como este senhor, que anda sempre com bicarbonatos e elixires eupépticos e está aí que é uma lástima. Tudo isso, esses enjoos pessimistas, essa melancolia, essas rugas, esses cabelos brancos, precoces, tudo isso é estômago.

Jorge contestou:

— Enganas-te. Não tenho tão mau estômago assim. O que isto é é obra do tempo e do que ele me tem trazido. São quarenta e seis anos puxados.

Mamoasele ponderou:

— Não é muito, senhór doctór. Na Europa um homem de quarenta e seis anos é moço. E o senhor doctór tem-se em conta de velho?

— Se tenho...!

Cesário interveio:

— Pois não vê? É a própria decrepitude, a anciania. É já um antepassado. Estás aí a pedir bordão e curatela. Velho...

De ímpeto aprumou-se carrancudo, repeliu o talher e levantando as mãos ambas à cabeça exclamou:

— E eu? E eu então? Eu que nem mais um fio de cabelo tenho na cabeça, porque as farripas que me restam refugiaram-se na zona do pescoço, como vês? E puxou as mechas com fúria. E, todavia, não tenho um cabelo branco, nem um fio. Voltou-se arrebatadamente para Mamoasele: Conheci um rapaz, aliás um atleta, que, aos vinte anos, tinha a cabeça com um capulho de algodão. Isso de cabelos brancos não quer dizer nada: é questão de couro, como a vegetação depende em muito do terreno. A velhice não está nos cabelos, mas no interior. Tu, por exemplo, Jorge: tens todas as faculdades íntegras, tens estro, entusiasmo, ideal, és são. Digeres bem, dormes oito horas a fio, pensas com ideias próprias, que mais? Velhos caducos, monstros cacóquimos são esses cretinos que por aí andam como trambolhos entulhando a vida com ignorância e vícios. Esses sim! Chama a um de tais, pede-lhe uma noção. Responderá com ornejo e coice. Velhice... velhice...! É como a tal história das terras cansadas. A Europa dá pão e vinha, linho e azeite desde os primeiros dias do mundo já não falo da Ásia veneranda e não há lá terras gastas. E aqui, com uns séculos de café, açúcar e mandioca já os lavradores queixam-se de exaustação do solo e pedem florestas virgens para o machado e o fogo. Preguiça é que é! Aqui estou eu, à beira dos cinquenta... Pois tenho uma memória de anjo, menos para datas. Para datas sou uma zebra!

O copeiro entrava com uma terrina quando a campainha do telefone retiniu vivamente.

— Deixa isso aí. Vai atender, disse-lhe Jorge. E os três imobilizaram-se, à escuta.

Pelas afirmativas do criado: “Sim senhora. Estão jantando. Sim, senhora. Já foi”, Mamoasele concluiu:

— É Miss.

Jorge pôs a cabeça a fito e, mal o copeiro reapareceu risonho, perguntou:

— Quem é?

— É D. Sara que está pedindo a roupa.

— Já lha mandaram?

— Já sim, senhor. O jardineiro saiu daqui ind’agorinha mesmo.

O jantar foi rápido e só Cesário falou sobre a vanidade da ciência. Mamoasele, recolhida, respondeu apenas a uma pergunta do “filósofo” à questão da Irlanda, aplaudindo Gladstone, “o apóstolo venerado da liberdade de Erin”.

O café foi servido na varanda, ao luar. Cesário passeava de um lado para outro, entourido. Jorge, em um dos bancos, fumava, d’olhos no céu. Miss deixara-se ficar na sala, embalando-se em uma cadeira, divertindo-se com as travessuras de Diana que saltava com uma bola de papel, abocanhando-a, correndo assanhada e trêfega, a rosnar. Bá, arrastando os passos, fechava os armários, discutindo com os criados e, no silêncio diáfano do luar, vibravam silvos de locomotivas.

— Ora aí tens a vida disse Cesário. O dia de hoje, se houvesse ponto na eternidade, devia ser marcado com a nota de falta para nós ambos, porque afinal não aproveitamos um só minuto em obra de espírito. Um dia que o pio Antonino consideraria perdido. Primeiro a beleza radiante da manhã, que inutilizou todas as minhas forças cerebrais, porque eu sou incapaz de conceber diante do maravilhoso extasio-me e o meu êxtase é assim como uma beatitude besta. Linda manhã! E, por uma reminiscência estranha, caminhando de mãos nos bolsos, recitou baixinho: The moon shines bright... Logo, porém, abandonando o poeta, repetiu enlevado: Linda manhã! Depois a estrondosa invasão das mulheres. E, escarafunchado nervosamente a orelha, perguntou frenético: Ó Jorge, não te parece que o mundo seria um paraíso se Deus, inspirado pelo diabo, não houvesse feito a mulher? Já sei que vens com a eterna cantiga da geração. Mas, que diabo! as árvores são todas de um sexo e, para feminino, aí está a terra venerável, perenemente fecunda. Nós faríamos como as árvores. À medida que fôssemos envelhecendo, em vez dessa hera ignóbil dos cabelos brancos, as nossas cabeças cobrir-se-iam de sementes, que o sol fecundaria como fecunda as outras do honesto mundo vegetal. No outono sacudiríamos a guedelha e a Terra encarregar-se-ia de criar os epígonos que, na primavera, sairiam das moitas dizendo “Papai! Mamãe!” e beijando a poeira maternal, como fez o romano.

Seríamos senhores absolutos do planeta, habitaríamos ainda o Éden, sem preocupações de senhorio e venda, alfaiate e botica, cercados de flores sem espinhos e de animais sem ferocidade e o chão sagrado não se teria tingido clamorosamente com o sangue do fratricídio. Não haveria Vaidade e a Discórdia, mãe das guerras, não acharia onde pousar. Seria a delícia, a bem-aventurança. Todo o mal da Vida é de origem feminina. Está aí o testemunho da História. A tal criação de Eva foi uma espiga e tanto...! Que diabo! houve uma ilha só de mulheres: Lemos, e resistiu; por que não há de ser o mundo só dos homens? Se o Criador não fosse tão orgulhoso emendaria a sua obra eliminando Eva, não te parece?

Jorge falou baixinho como se não quisesse interromper o silêncio da noite:

— Sim... mas não haveria a bondade. O homem é egoísta, essencialmente egoísta, sufoca todos os sentimentos em favor do seu “eu”. É a mulher quem o faz amoroso, meigo, resignado, emprestando-lhe ternura, piedade e crença.

— Egoísta! Egoísta, o homem! bradou Cesário. Em que é que somos egoístas, nós que desistimos de tudo em favor da mulher? Em que é que somos egoístas?

— Em tudo, Cesário afirmou Jorge pachorrentamente.

— Pelo amor de Deus!... E que é o ciúme na mulher senão a explosão do egoísmo da carne? E o amor materno, que é senão um egoísmo avaro, a manutenção eterna da posse da criatura que a mulher prende, a princípio, ao colo, depois nos braços, mais tarde retém com afagos quando percebe o despontar do instinto de independência e, finalmente e é a sogra! roncou soturno, a fúria trágica quando descobre que uma força superior lhe arrebata o escravo do coração? Que é a bênção senão uma prova de eterna submissão do filho? Egoísta, o homem? em quê? História!

Jorge ergueu-se com lentidão e, debruçando-se à balaustrada, concluiu:

— O teu caso já foi descrito por La Fontaine. E recitou baixinho:

Certain renard gascon, d’autres disent normand,
Mourant presque de faim, vit au haut d’un treile
Des raisins...

Mas o filósofo atalhou-o esbravejando:

— Estás enganado! Eu é que não tenho querido. Conheço o perigo e evito-o. Estás enganado. Apesar de toda a minha austeridade, já achei uma dama que solicitou a minha presença em certo sítio misterioso, lá para as bandas da Tijuca, perdida por mim, por me ter ouvido, uma noite, em casa não sei de quem, discutir a Revolução Francesa com um bacharel analfabeto.

— E então?!

— Então? Eu não frequento caramanchéis, à noite. Prefiro a robustez dos meus pulmões a todos os beijos das Circes que por aí andam. Demais, achei desaforada a proposta. A mulher não queria o homem, não se apaixonara pelo homem, senão pelas palavras do homem. Assim, pois, em vez de levar para lá o meu corpo, mandei-lhe de presente uma história de França, onde ela podia achar, e com a fulguração do estilo, tudo quando eu repetira combatendo o jurista que cortejava uma dama à custa dos heróis da campanha santa.

Não fui e a senhora, para os que têm olhos libidinosos, passa por ser uma das maravilhas do grande mundo. Não sou um despeitado, como pensas sou um homem de programa. E também não aborreço a mulher como criatura, não! Um corpo de mulher bem feito e esbelto encanta, não há dúvida, mas deixem-na ficar como ornato, levem toda essa graça divina para um pedestal e eu serei o primeiro entre os seus admiradores. Como esposa é que não, isso não, porque com o seu espírito fútil vai, pouco a pouco, eliminando a energia do homem, conseguindo, as mais das vezes, torná-lo escravo dos seus nervos e dos seus sorrisos. Esposa é que não! Olha para a história, meu amigo, e verás a mulher à frente de todas as calamidades. Acordes vieram interromper a facúndia do filósofo: Que é isso, Jorge?

— Chopin.

— É a Cegonha. Mulher horrenda! mas grande artista. Grande artista! Fossem todas como ela: só espírito. Porque afinal essa pobre Miss não tem outra coisa senão espírito, não te parece? Essa, garanto eu, não pecará jamais pela carne por falta de matéria-prima. Horrenda, mas grande espírito, não há dúvida. E o noturno sentimental soava docemente no silêncio do luar. Súbito Cesário levantou-se:

— Ficas aí? Eu desço, vou traçar o plano do livro. Estou em veia de trabalho. Vens?

— Não, fico ainda. Está fresco aqui.

— Então até logo. E recitando: The moon shines bright... foi-se lentamente pela escada.

Um comentário:

Sugestão, críticas e outras coisas...