O “Filósofo”
Cesário, debruçado sobre um
grande atlas, aberto em cima da mesa, passeava o longo e nodoso dedo pela
carta, resmoneando. Sentindo os passos de Jorge, levantou a cabeça:
— Estamos independentes, hem?
Foram-se as gralhas? Pois, meu amigo, grandes e verdadeiras foram as palavras
que eu aqui te disse: Tenho os ouvidos atordoados ainda e atenta bem a ver se
não escutas, de quando em quando, o eco abominável das gargalhadas daquela
partênia. Não sentes? São de assombrar, palavra! Precisamos recitar aqui dentro
a Oração de Demóstenes ou alguma coisa de Cícero para purificar o ambiente.
Dize-me: tens por aí alguma carta do mundo antigo? Ando a refazer o roteiro dos
Árias, preciso disso para a minha obra e não encontro nesta carta sórdida senão
coisas de ontem, discriminações pulhas de lugarejos vis, sem história, sem
tradição, sem passado colônias inglesas, terras esterilizadas pela cobiça e
pela crueza dos homens e dos tais sítios nem menção. Vê se descobres por aí nos
teus cabedais alguma coisa. Se não tens, dize de uma vez para que eu desça. É
possível que encontre na Biblioteca o que preciso. Ainda assim prefiro que
procures porque, como é coisa preciosa e útil, decerto não será fácil achar nas
estantes da Alexandria indígena.
E curvou-se de novo, mas,
sempre passeando o dedo pela carta, interpelou o amigo:
— E a Cegonha, hem? Não foi.
Já a vi pensativa e murcha ali na varanda a buscar sonhos no céu com os óculos
radiantes. Mulher forte!
— Detesta as Moretti. Julga-as
como eu.
— Ah! moralidade tem ela, isso
tem. É mulher para exemplo. Deviam citá-la num Tesouro das meninas como modelo
de virtudes, a fealdade inclusive, que é a maior das virtudes, porque repele o
inimigo. Mas dize, como há de ser? E o roteiro?
— Que queres, não tenho livro
que te sirva.
— Diabo! E eu que tencionava
começar hoje a minha obra. É verdade... E se eu começasse pelo segundo
capítulo? Há exemplos. Eu, que aqui estou, nasci por um braço. Há quem tenha
nascido pelos pés: o Cosme, por exemplo, deve ter nascido assim. Hem? que
dizes? Se eu começasse pelo segundo capítulo? E aprumando-se: Mas fala, homem...
Estás mais triste do que a irlandesa. Fala e trata de acender o gás ou de fazer
com que o acendam, porque já não vejo nada na Ásia: tudo é sombra. E o Mommsen?
Tens aí o Mommsen?
A sala clareou de jato e a luz
forte do gás, esbatendo-se no jardim, como que ainda mais lhe adensou as
sombras crepusculares. Cesário passou a mão pela calva e, espreguiçando-se,
bocejou estrondosamente:
— Diabo! Estou com uma famosa
courbature. Dobrou-se para trás, com as mãos nos rins e, firmando-se, estendeu
o braço para a chama loura do gás: Bem andou Jeová criando a luz antes de mais
nada. Entanto há na sua grande obra alguma coisa anterior ao Fiat... a avareza,
por exemplo... que dizes? Essa claridade entra-nos pelos olhos e vai até o mais
fundo do cérebro como o sol atravessando os vidros de uma claraboia. E ainda há
luz lá fora.
Lançou o olhar ao exterior e,
voltando-se:
— Dize, que tal achas o
pensamento que um dia procurei apertar em um soneto? e avançando com grandes
gestos dramáticos, foi até a porta e levantou os olhos para o céu de opala:
Ouve lá, não está em metro ainda. Digo-te a coisa como a recebi do gênio. A
cena do soneto simples, tristonha: um crepúsculo. Eu digo então: Expira o sol!
e atirou o braço esticado para o teto. Expira o sol... e Deus!... arma no céu
um catafalco: a noite, trazendo para cirial do morto o plenilúnio. Que te parece?
indagou e, fitando-o com grandes olhos: Mas que tens, homem? Estou aqui a
falar-te como Apuleio aos bárbaros. Que tens? Jorge caminhava ao longo da sala,
de mãos para as costas, parando, de instante a instante, para ouvir o
“filósofo”. Que tens?
— Estou aborrecido,
contrariado.
— Com a saída da menina? Não
te preocupes. Descansa. Não lhe pegam os vícios das outras. Lembra-te da Marina
do mestre. Onde é que Péricles a encontra? num alcouce infame e retira-a pura,
como se retira o lótus d’água pútrida. Não te preocupes. Vamos cuidar de
atravessar estas horas de sombra a rir. Queres que te diga? se algum dia eu
procurasse meus filhos haviam de conhecer tudo filhos e filhas, tudo! A menina
é sisuda, e, quando ela chegar, entrega-a à Cegonha para um grande banho moral.
Não te preocupes. Anda daí. Olha a tarde que vai lá fora. Aposto que a Cegonha
anda a gozá-la. Vem daí. E voltando-se de golpe: Afinal nem julgaste o meu
pensamento. Que tal?
Jorge encostou-se à mesa e,
brincando com a espátula de marfim, enfezado, deixando cair lentamente as
palavras, disse:
— Nada me irrita tanto como
essa amizade de Sara. Tenho insistido com ela para que vá, pouco a pouco,
evitando tais relações... mas qual! É pior. Não a contrario, bem sabes;
faço-lhe todas as vontades, basta, porém, que demonstre que não me agrada isto
ou aquilo para que ela insista caprichosamente. E se me oponho, são maus modos,
choros, não quer comer. Afinal parece que lhe devo merecer alguma coisa.
— Mas vem cá, não te aflijas,
isso não tem valor. Não consintas mais, aí tens. É dizer francamente, na cara,
quando elas aqui tornarem com convites: Não! não! e não! És pai, estás no teu
direito. E passando-lhe um braço pelo ombro: Mas vem cá e sê franco: Tu o que
sentes é falta da menina, e é natural: criaste-a. Mas, meu amigo, isso é bom em
parte para que te vás acostumando porque, afinal, ela não há de ficar solteira
toda a vida. E quando casar?
Houve uma pausa. Jorge
afastou-se da mesa e, passando a mão pelo rosto, estacou no meio da sala, a olhar
a panóplia que rebrilhava à luz. Voltou-se por fim dizendo, com resignação:
— Ah! bem, quando casar!...
Mas vê-la em companhia de tal gente!? — Enfureceu-se: — E não sei que mais hei
de fazer para que essas senhoras compreendam que não as tolero: evito-as, pouco
lhes falo quando as encontro. Ainda hoje, viste? passaram aqui o dia e eu
deixei-me estar a ler. Não sei mais que hei de fazer. — E caminhando, a sacudir
os braços: — Não as aturo, fazem-me mal. No Catete, enquanto lá estivemos,
nunca as visitei e elas não me saíam de casa perturbando-me o trabalho e a paz.
Deves lembrar-te?
Cesário sentara-se num pliant e acompanhava com o olhar os
passos do amigo. De repente, frenético, estrincando os dedos das mãos, bramiu:
— Pois, meu caro, com tal
gente nada de eufemismos: não compreendem? é dizer-lhes a coisa à bruta. — Forcejou
nos dois braços e, escorregando pelo linho, levantou-se pachorrento: — É
dizer-lhe francamente.
Inocêncio apareceu à porta e,
antes que falasse, Jorge despediu-o com um gesto:
— Já vamos; e para Cesário:
— É o que ainda faço, palavra
de honra. E o que elas fazem com essa senhora...
— Com a Cegonha? Ora! ela não
dá por isso. É fria, não tem nervos. O que ela quer é que a deixem em paz.
Pensas que se zanga? Pois sim!... E, travando-lhe do braço, berrou-lhe ao
ouvido: Não tem nervos! E noutro tom: Vamos jantar... Vamos, e pelo jardim,
porque a irlandesa deve andar por lá extasiada, e assim, depois de nos
deliciarmos com um pouco de sublime, vamos preparados para mirar-lhe os ângulos
da cara macerada.
À porta Cesário estacou
subitamente, apontando para o jardim:
— Olha, que te dizia eu? Olha
lá... não vês aquela sombra esguia? Que te dizia eu? E, ganhando o jardim, o
"filósofo" levantou os braços para o céu límpido: Mas admira! admira,
homem! Há lá céus que se comparem a este? e luares...? Qual Nápoles, qual
carapuça! Céu é isto! E como a irlandesa viesse perto, Cesário saudou-a: Good evening, Miss!... E ela, de longe,
com um risinho, correspondeu: Good
evening!
E tomando a frente, subiu as
escadas, rija, ereta como um autômato. Cesário, de braço com o amigo,
sussurrava:
— Olha bem... Vai ali um
admirável tipo étnico. Dize se por esta mulher um Spencer não reconstituiria a
raça dessa grande mina de John Bul, como os naturalistas, com um osso,
reconstroem o arcabouço de uma das bestas colossais das eras pródigas,
anteriores ao banho universal. Mas olha bem. Ela vai ali para o jantar com a
mesma serenidade fria com que os homens rijos do seu país vão para os gelos do
pólo ou para os cálidos sertões da Núbia.
Miss chegara à varanda e,
voltando-se, lançou os olhos ao céu:
— Esplêndida noite!
Admirável, Miss!
E, já no alto, de mãos aos
flancos, o olhar erguido: Lembra-se, Miss? As lindas frases do idílio entre
Lourenço e a filha do Judeu, no Mercador de Veneza, quando, olhando o luar,
entram a recordar noites de amores?
— Sim, sim...
E Mamoasele risonha, inflando
as bochechas, com uma voz máscula e cadente, recitou:
The moon shines bright: in such a night as this...
Mas Cesário interrompeu-a
delirante:
— Isso! isso! Grande memória,
Miss! É fenomenal! Estupenda memória! E, como em monólogo: The moon shines bright... Exatamente. Mas é admirável! Jorge
recostara-se à balaustrada. Miss, de olhos altos, contemplava o luar e Cesário,
em pequenos passeios, balançando os braços, repetia baixinho: The moon shines... Súbito, porém,
parando diante da porta da sala iluminada, lembrou: E o jantar? Estamos aqui em
hipnose e a sopa esfriando. Entrando, voltou-se exclamando: Mas que memória,
Miss!
Mamoasele sorria.
Folhagens e flores em vasos
alegravam a mesa, arranjada caprichosamente como para um festim, debaixo do
grande lustre, o “alampadário” como dizia o filósofo que, de vez em vez, em
assomos de entusiasmo, lamentava ter nascido em tempos tão vis, sem arte, sem
bravura, sem cavalheirismo e, gesticulando para o bronze, saudava-o como um
representante da arte pura, antes da invasão do mercantilismo na estética.
Jorge e Cesário colocaram-se
ao lado de Mamoasele que se sentara à cabeceira.
O copeiro serviu a sopa e, à
primeira colherada, Cesário formulou a receita de uma futura alimentação
reconstituinte e breve, tendo por base a peptona. E explicou:
— O homem é o animal por
excelência, o rei da fauna, culminando na escala zoológica. É o ser que fala e
ri, o único que se veste, e corta as unhas, os calos e o cabelo, reconhece as
dívidas e casa-se. É o depositário do espírito de Deus, etc., etc. E esse ente
superior, apesar de milênios de cultura, vive ainda como o troglodita
nutrindo-se de carniça... só porque tem dentes, remanescentes da brutalidade
primitiva. Mas, que diabo! assim como já não nos servimos das unhas nas lutas,
tratando-as como enfeites dos dedos, que o manicuro enforma e pule, por que não
havemos de fazer o mesmo aos dentes, conservando-os apenas como ornamentos? Há
por aí quem os tenha encastoados em ouro, com brilhantes... O homem, a
princípio, caçou para comer, como o leão e o urso, e espostejava vorazmente a
presa, devorando-lhe os tassalhos crus. Com o fogo inventou o assado e toda a
complicada culinária, causa da dispepsia. Hoje, começa a preocupar-se com a
alimentação sintética, podendo trazer no bolso uma caixa de pílulas para
nutrição de um ano e um frasco de essência fluida de uva para emborrachar-se às
gotas.
Miss ouvia de olhos baixos,
enlevada nas palavras sonoras do sábio suspendendo, às vezes, a colherada que
levava à boca. Jorge interveio:
— Cesário, vê se concilias a
palestra com a sopa, que está esfriando.
O “filósofo” baixou a cabeça
e, durante um momento, sorveu gorgulhantemente. Depois, passando o guardanapo
pelas barbas, referiu-se a Sarita:
— Se ela aqui estivesse já nos
tínhamos travado em alguma discussão. Faz falta.
Mamoasele correu com os olhos
rapidamente de um a outro. Jorge tamborilava com os dedos na borda da mesa,
distraído. Notando que as suas palavras caíam na indiferença do amigo, como
folhas secas num chão de areia, o “filósofo” calou-se, mas no momento de lhe
servirem o peixe, resmungou, amuado:
— E dizer que isto é irmão da
Afrodite.
Partiu o pão, trincou uma
lasca e dirigiu-se a Mamoasele.
— E eu posso falar, porque
tenho um estômago de ferro. Como tutu de feijão com linguiça à meia-noite,
deito-me e durmo como um abade. Não sou homem de resguardos aqui como este
senhor, que anda sempre com bicarbonatos e elixires eupépticos e está aí que é
uma lástima. Tudo isso, esses enjoos pessimistas, essa melancolia, essas rugas,
esses cabelos brancos, precoces, tudo isso é estômago.
Jorge contestou:
— Enganas-te. Não tenho tão
mau estômago assim. O que isto é é obra do tempo e do que ele me tem trazido.
São quarenta e seis anos puxados.
Mamoasele ponderou:
— Não é muito, senhór doctór.
Na Europa um homem de quarenta e seis anos é moço. E o senhor doctór tem-se em
conta de velho?
— Se tenho...!
Cesário interveio:
— Pois não vê? É a própria
decrepitude, a anciania. É já um antepassado. Estás aí a pedir bordão e
curatela. Velho...
De ímpeto aprumou-se
carrancudo, repeliu o talher e levantando as mãos ambas à cabeça exclamou:
— E eu? E eu então? Eu que nem
mais um fio de cabelo tenho na cabeça, porque as farripas que me restam
refugiaram-se na zona do pescoço, como vês? E puxou as mechas com fúria. E,
todavia, não tenho um cabelo branco, nem um fio. Voltou-se arrebatadamente para
Mamoasele: Conheci um rapaz, aliás um atleta, que, aos vinte anos, tinha a
cabeça com um capulho de algodão. Isso de cabelos brancos não quer dizer nada:
é questão de couro, como a vegetação depende em muito do terreno. A velhice não
está nos cabelos, mas no interior. Tu, por exemplo, Jorge: tens todas as
faculdades íntegras, tens estro, entusiasmo, ideal, és são. Digeres bem, dormes
oito horas a fio, pensas com ideias próprias, que mais? Velhos caducos,
monstros cacóquimos são esses cretinos que por aí andam como trambolhos
entulhando a vida com ignorância e vícios. Esses sim! Chama a um de tais,
pede-lhe uma noção. Responderá com ornejo e coice. Velhice... velhice...! É
como a tal história das terras cansadas. A Europa dá pão e vinha, linho e
azeite desde os primeiros dias do mundo já não falo da Ásia veneranda e não há
lá terras gastas. E aqui, com uns séculos de café, açúcar e mandioca já os
lavradores queixam-se de exaustação do solo e pedem florestas virgens para o
machado e o fogo. Preguiça é que é! Aqui estou eu, à beira dos cinquenta...
Pois tenho uma memória de anjo, menos para datas. Para datas sou uma zebra!
O copeiro entrava com uma
terrina quando a campainha do telefone retiniu vivamente.
— Deixa isso aí. Vai atender,
disse-lhe Jorge. E os três imobilizaram-se, à escuta.
Pelas afirmativas do criado:
“Sim senhora. Estão jantando. Sim, senhora. Já foi”, Mamoasele concluiu:
— É Miss.
Jorge pôs a cabeça a fito e,
mal o copeiro reapareceu risonho, perguntou:
— Quem é?
— É D. Sara que está pedindo a
roupa.
— Já lha mandaram?
— Já sim, senhor. O jardineiro
saiu daqui ind’agorinha mesmo.
O jantar foi rápido e só
Cesário falou sobre a vanidade da ciência. Mamoasele, recolhida, respondeu
apenas a uma pergunta do “filósofo” à questão da Irlanda, aplaudindo Gladstone,
“o apóstolo venerado da liberdade de Erin”.
O café foi servido na varanda,
ao luar. Cesário passeava de um lado para outro, entourido. Jorge, em um dos
bancos, fumava, d’olhos no céu. Miss deixara-se ficar na sala, embalando-se em
uma cadeira, divertindo-se com as travessuras de Diana que saltava com uma bola
de papel, abocanhando-a, correndo assanhada e trêfega, a rosnar. Bá, arrastando
os passos, fechava os armários, discutindo com os criados e, no silêncio
diáfano do luar, vibravam silvos de locomotivas.
— Ora aí tens a vida disse
Cesário. O dia de hoje, se houvesse ponto na eternidade, devia ser marcado com
a nota de falta para nós ambos, porque afinal não aproveitamos um só minuto em
obra de espírito. Um dia que o pio Antonino consideraria perdido. Primeiro a
beleza radiante da manhã, que inutilizou todas as minhas forças cerebrais,
porque eu sou incapaz de conceber diante do maravilhoso extasio-me e o meu
êxtase é assim como uma beatitude besta. Linda manhã! E, por uma reminiscência
estranha, caminhando de mãos nos bolsos, recitou baixinho: The moon shines bright... Logo, porém, abandonando o poeta, repetiu
enlevado: Linda manhã! Depois a estrondosa invasão das mulheres. E,
escarafunchado nervosamente a orelha, perguntou frenético: Ó Jorge, não te
parece que o mundo seria um paraíso se Deus, inspirado pelo diabo, não houvesse
feito a mulher? Já sei que vens com a eterna cantiga da geração. Mas, que
diabo! as árvores são todas de um sexo e, para feminino, aí está a terra
venerável, perenemente fecunda. Nós faríamos como as árvores. À medida que
fôssemos envelhecendo, em vez dessa hera ignóbil dos cabelos brancos, as nossas
cabeças cobrir-se-iam de sementes, que o sol fecundaria como fecunda as outras
do honesto mundo vegetal. No outono sacudiríamos a guedelha e a Terra
encarregar-se-ia de criar os epígonos que, na primavera, sairiam das moitas
dizendo “Papai! Mamãe!” e beijando a poeira maternal, como fez o romano.
Seríamos senhores absolutos do
planeta, habitaríamos ainda o Éden, sem preocupações de senhorio e venda,
alfaiate e botica, cercados de flores sem espinhos e de animais sem ferocidade
e o chão sagrado não se teria tingido clamorosamente com o sangue do
fratricídio. Não haveria Vaidade e a Discórdia, mãe das guerras, não acharia
onde pousar. Seria a delícia, a bem-aventurança. Todo o mal da Vida é de origem
feminina. Está aí o testemunho da História. A tal criação de Eva foi uma espiga
e tanto...! Que diabo! houve uma ilha só de mulheres: Lemos, e resistiu; por
que não há de ser o mundo só dos homens? Se o Criador não fosse tão orgulhoso
emendaria a sua obra eliminando Eva, não te parece?
Jorge falou baixinho como se
não quisesse interromper o silêncio da noite:
— Sim... mas não haveria a
bondade. O homem é egoísta, essencialmente egoísta, sufoca todos os sentimentos
em favor do seu “eu”. É a mulher quem o faz amoroso, meigo, resignado,
emprestando-lhe ternura, piedade e crença.
— Egoísta! Egoísta, o homem!
bradou Cesário. Em que é que somos egoístas, nós que desistimos de tudo em favor
da mulher? Em que é que somos egoístas?
— Em tudo, Cesário afirmou
Jorge pachorrentamente.
— Pelo amor de Deus!... E que
é o ciúme na mulher senão a explosão do egoísmo da carne? E o amor materno, que
é senão um egoísmo avaro, a manutenção eterna da posse da criatura que a mulher
prende, a princípio, ao colo, depois nos braços, mais tarde retém com afagos
quando percebe o despontar do instinto de independência e, finalmente e é a
sogra! roncou soturno, a fúria trágica quando descobre que uma força superior
lhe arrebata o escravo do coração? Que é a bênção senão uma prova de eterna
submissão do filho? Egoísta, o homem? em quê? História!
Jorge ergueu-se com lentidão
e, debruçando-se à balaustrada, concluiu:
— O teu caso já foi descrito
por La Fontaine. E recitou baixinho:
Certain renard gascon, d’autres disent
normand,
Mourant presque de faim, vit au haut d’un
treile
Des raisins...
Mas o filósofo atalhou-o
esbravejando:
— Estás enganado! Eu é que não
tenho querido. Conheço o perigo e evito-o. Estás enganado. Apesar de toda a
minha austeridade, já achei uma dama que solicitou a minha presença em certo
sítio misterioso, lá para as bandas da Tijuca, perdida por mim, por me ter
ouvido, uma noite, em casa não sei de quem, discutir a Revolução Francesa com
um bacharel analfabeto.
— E então?!
— Então? Eu não frequento
caramanchéis, à noite. Prefiro a robustez dos meus pulmões a todos os beijos
das Circes que por aí andam. Demais, achei desaforada a proposta. A mulher não
queria o homem, não se apaixonara pelo homem, senão pelas palavras do homem.
Assim, pois, em vez de levar para lá o meu corpo, mandei-lhe de presente uma
história de França, onde ela podia achar, e com a fulguração do estilo, tudo
quando eu repetira combatendo o jurista que cortejava uma dama à custa dos
heróis da campanha santa.
Não fui e a senhora, para os
que têm olhos libidinosos, passa por ser uma das maravilhas do grande mundo.
Não sou um despeitado, como pensas sou um homem de programa. E também não
aborreço a mulher como criatura, não! Um corpo de mulher bem feito e esbelto
encanta, não há dúvida, mas deixem-na ficar como ornato, levem toda essa graça
divina para um pedestal e eu serei o primeiro entre os seus admiradores. Como
esposa é que não, isso não, porque com o seu espírito fútil vai, pouco a pouco,
eliminando a energia do homem, conseguindo, as mais das vezes, torná-lo escravo
dos seus nervos e dos seus sorrisos. Esposa é que não! Olha para a história,
meu amigo, e verás a mulher à frente de todas as calamidades. Acordes vieram
interromper a facúndia do filósofo: Que é isso, Jorge?
— Chopin.
— É a Cegonha. Mulher
horrenda! mas grande artista. Grande artista! Fossem todas como ela: só
espírito. Porque afinal essa pobre Miss não tem outra coisa senão espírito, não
te parece? Essa, garanto eu, não pecará jamais pela carne por falta de
matéria-prima. Horrenda, mas grande espírito, não há dúvida. E o noturno
sentimental soava docemente no silêncio do luar. Súbito Cesário levantou-se:
— Ficas aí? Eu desço, vou
traçar o plano do livro. Estou em veia de trabalho. Vens?
— Não, fico ainda. Está fresco
aqui.
— Então até logo. E recitando:
The moon shines bright... foi-se
lentamente pela escada.
Belo conto! Obrigado pela postagem.
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