5/31/2019

O crime do coronel (Conto), de Ranulfo Prata


O crime do coronel
Depois de longos e dilatados anos, conseguiu, afinal, o Amaro Moreira o seu nada ambicionado diploma de bacharel em ciências jurídicas e sociais. Custara-lhe os olhos da cara, o tal canudo!
Mas qual seria a relutância que havia de vencer a vontade firme e inabalável de seu pai? Lutara muito a princípio. Que não, que não queria ser doutor, que não tinha cabeça para se meter em livralhada, que preferia a fazenda muito querida, onde o seu guapo e desempenado corpo ficaria à vontade, e o seu espírito, liberto das aperturas da meditação e do estudo, ganharia livremente os descampados...
Não houve, porém, pedido nem lamúria que demovessem o coronel da realização do seu mais caro desejo: fazer o filho doutor, o seu único filho, a esperança fagueira da família. Ele que era por assim dizer o dono de Fartura, o homem que não temia rivais políticos num vasto círculo de dezenas de léguas, que até ali jamais fora contrariado, nem encontrara calor que fundisse o aço de sua vontade, não havia de ser em coisa tão simples que cederia. Pegou do filho, engasgado de soluços, e levou-o para S. Paulo. Tivera nesse proceder o apoio de toda a família, menos o do mano Justiniano, que lhe dissera um dia, ao saber da terceira reprovação do sobrinho:
— Anacleto, aceita o meu conselho: tira o Amaro do estudo, o menino não tem jeito pra coisa. Entrega-lhe a fazenda "Floresta" que terás mais lucro e satisfarás o rapaz, que tem chorado nos meus braços para salvá-lo da tal Academia. Isto de doutores, mano, não é para quem quer, e sim para quem é. Bacoreja-me que vais perder o menino... Olha, mano Anacleto: mais vale um bom peão do que um mau doutor!
O coronel ouviu tudo muito contrafeito, de testa enrugada. E parando de cofiar o bigode, respondeu nervosamente, com a superioridade que lhe davam os seus haveres e a qualidade de mais velho:
— Deixa-me, Justiniano, deixa-me! Tenho muito que administre a "Floresta" e peço ao mano que não se intrometa cá nesta questão. Ou Amaro estuda ou largo-o de mão! Que vá tudo para os diabos, o que quero, quero!
Justiniano recebeu na cara a malcriação, arrependeu-se de ter falado, e deixou, cabisbaixo e enfiado, o palacete do irmão. Quando entrou em sua modesta casa, ainda com a grosseria a arder-lhe no rosto, chegou-se-lhe a sua Juvência, indagando do que acontecera. Justiniano, como se não notasse ninguém em torno, a modo de quem fala consigo mesmo, perdido em funda meditação, resmungou," tragando uma saborosa fumaça do seu cigarro de palha:
— Pobre Amaro!
Juvência fitou-o com acrimônia e despeito e falou, retomando os seus afazeres, como a pensar em voz alta:
— Ah! já sei! É zanga com o irmão por causa do Amaro!
E dirigindo-se a ele:
— Você afinal é um homem muito atrasado, meu marido! O que você deve estar é muito satisfeito porque vai ter uma pessoa que enxergue na família, um doutor! Na minha graças a Deus, eles não faltam í Ai! um doutor!. não há como um doutor!... Se eu tivesse tido juízo...
Mas se Justiniano desaprovava, Anacleto tinha para apoiá-lo a família inteira e Fartura em peso. Muitos dos seus correligionários e amigos, quando queriam lisonjeá-lo, era naquele ponto que batiam. Gabando-se-lhe o filho, os favores caíam-lhe das mãos aos punhados.
Quando Amaro se achava ainda no primeiro ano do curso, o pai já lhe havia traçado o programa de vida, delineado bem a trajetória brilhante que ele tinha de percorrer. Em primeiro lugar começaria advogando, para depois enveredar pelo campo farto e promissor da política. Da câmara de Fartura chegaria facilmente à estadual, passando-se em seguida para a federal, e, se as coisas corressem bem, dessa última para a presidência do Estado. Aí, então, estaria de voo alçado... Nada de magistratura! Que futuro podia ter um rapaz de talento metido na magistratura do interior? Viver anos e anos numa pasmaceira estúpida e de irritar! Não, nada de inércia nem de obscuridade! Olhar a vida frente a frente, com o desassombro de quem está cônscio do próprio valor e crê na certeza da vitória.
Os que ouviam o coronel falar assim, de rosto aceso de alegria, o coração a pulsar forte pelo filho único e extremado, desciam as cabeças numa aprovação 'unânime. Merecia respeito aquela exaltação.
Amaro custara muito chegar ao fim. Não tiveram número as reprovações, apesar dos empenhos com deputados amigos e de decisiva influência no magistério da capital. O pai, entretanto, que não fazia conta da demora, achando que todo tempo era tempo, metia grandes somas nas mãos do filho, que se regalava em boas rapaziadas. Um dia, estava certo, havia de tê-lo em casa, prontinho, sobraçando o canudo.
Receios de ruína não os tinha. Só o café que possuía em Santos daria para educar quatro Amaros, afora as duas fazendas de criar, que prendiam mais de duas mil reses! Desse jeito tentou, pertentou e venceu. Nada como a alçaprema do dinheiro!
***
Fartura toda engalanada vibrava de entusiasmo. Acabava de chegar o senhor doutor Amaro Moreira.
Houve, como sempre, o encontro, discursos, música, mesas lautas, baile, etc...
Às festas não deixou de comparecer o Justiniano, que, para logo, notou a mudança que o uso do anel fizera no sobrinho. O moço simples, dado e bondoso, que tanto gostava de amestrar os potros folhões da "Floresta", estava transformado num janota cheio de galanices, de gestos estudados e ares soberbos. Fora na ocasião do baile. Justiniano, no vão de uma das janelas, observava-o a derramar gentilezas no regaço cândido de uma menina que sorria, esperançosa... Fartando-se, afinal, de olhá-lo, virou-se para a rua deserta, onde tremeluziam espaçados focos elétricos, e repetiu mentalmente o que dissera, treze anos atrás:
— Pobre Amaro!
***
Após o acostumado tempo de repouso, utilizado por todos os cem doutores para o refazimento das energias perdidas no estudo acurado de muitos anos, o coronel fez ver ao filho que já era tempo de aparecer no campo da vida prática, para honra e glória da família Moreira. Que se anunciasse e instalasse o seu escritório de advogado.
Feriu-se uma luta tremenda no íntimo de Amaro. E ele que, por um fenômeno intelectual digno de registro, se conhecia a si mesmo, teve ímpetos de confessar ao pai que nada entendia de direito, e que nos anos da capital só aprendera a fazer coisas tortas. Mas nada disse, porque a vaidade apontou do outro lado da cachola, protestando contra tal procedimento.
Amaro deu-lhe ouvidos e anunciou que aceitava questões, não só no crime como no cível.
Os amigos do coronel incumbiram-se da propaganda, lançando aos quatro ventos de Fartura e municípios vizinhos, o nome do novo advogado.
Não tardou, pois, que lhe viesse ter às mãos questão importante, e da qual era uma das partes pessoa de destaque da localidade, amigo do peito de seu pai.
Amaro teve um estranho e doloroso estremecimento no ato de receber a procuração para dar andamento à causa. Colocou-a na rica pasta, que trazia, em letras de ouro, o seu monograma e pôs as mãos à cabeça, apalpando as têmporas para ver se atinava com um meio qualquer de livrar-se, sem desdouro do seu anel, daquela rascada. A situação era premente: ser ou não ser.
Depois de matutar horas a fio, a arrepelar-se, numa aflição de arrancar lágrimas dos livros que tinha defronte, resolveu devolver a procuração.
Em caminho da casa do constituinte, porém, topou com um amigo, que, depois de cumprimentá-lo sorridente e amável, disse-lhe jubiloso:
— Estamos à espera do tombo do Guedes! Dá-lhe uma lição de mestre, meu caro doutor! Descompõe-no nos autos, para de outra vez ele só se meter com gente de sua laia!
Guedes era um rábula temido, inimigo político do coronel e advogado da parte contrária.
As palavras daquele homem detiveram o filho de Anacleto no gesto desairoso para os Moreiras, cujo apelido ele tinha obrigação de lustrar.
Meteu mãos à obra, num supremo esforço de ousadia e coragem.
Foi um desastre! O prejuízo do seu cliente, que já se julgava garantido mesmo por aqueles que nada entendiam de leis, pois a razão estava claramente vista, foi total. Vencera o Guedes, o mulato.
Diante de fracasso tão notório e escandaloso, Amaro caminhou para o pai e disse-lhe, com um azedume que o responsabilizava, que não mais trataria de questões.
O coronel, encandeado ainda com as luzes do saber do filho, relutou e quis convencê-lo de que o começo era mesmo assim, todos principiavam daquele jeito, depois, sim, viria a prática, o traquejo. Aquilo eram asperezas que o tempo acepilhava.
Amaro não se demoveu.
Estavam as coisas nesse pé, quando vagou o cargo de promotor público da comarca. Anacleto, apesar de sua repulsa à magistratura, obteve do juiz a nomeação interina do filho.
Foi Amaro forçado a aceitar, sem deixar de pensar, contudo, na sessão do júri que se aproximava. Aí foi que rolaram na areia das ruas os créditos do doutor. Logo no início, na primeira acusação, excitado e trêmulo, atrapalhou-se na citação dos artigos do código, e depois da leitura do libelo, feito pelo seu antecessor, regougou algumas palavras e sentou-se a suar frio. A defesa, na pessoa mulata do Guedes, ficou à vontade, conseguindo uma absolvição unânime para o réu, criminoso de morte sem justificativa.
O doutor, desorientado e sem tino, queixou-se de doente, pediu demissão e viajou para "Floresta".
Fartura inteira comentou o caso, surdamente, para que os murmúrios não ferissem os ouvidos do coronel. Os inimigos dos Moreiras rejubilaram. Que era muito bem feito tudo aquilo, para diminuir um pouco o orgulho da família: que o coronel andava cego e não via que o filho não dava pra coisa, etc...
Cabia, porém, aos íntimos açular o fogo sagrado do entusiasmo paterno. O próprio juiz confessou ao coronel que não pudera tomar pé no poço fundo do saber do Amaro, que o batia em qualquer matéria. Com o tempo havia de ver... O moço só precisava de mais anos...
Anacleto, não desesperançou. Deixou que os dias passassem, e trazendo, afinal, o filho da fazenda, quis obrigá-lo a aceitar novas acusações. Amaro desta vez, sentindo no rosto o calor das duas vergonhas que sofrera, rebelou-se, dizendo ao pai que agora só tinha na vida um desejo: era ser delegado.
Essa ideia nascera-lhe na fazenda. Nela vira não só uma profissão compatível com os seus méritos, mas também o único meio de deixar Fartura e libertar-se do predomínio do pai. O coronel, se não desaprovou nem se opôs, foi por causa do tom decidido e firme, em que lhe falara o filho. Contudo aquela resolução de Amaro não lhe mataria os planos e intentos. Qualquer caminho chegaria ao mesmo fim. Antes de tudo, porém, era preciso satisfazer o rapaz.
***
Chegou Amaro a Rio Bonito como um Roldão furioso. Atrabiliário e insensato, deu logo de criar medidas absurdas, interpretando mais as leis, e as executando debaixo de violências. Implantou o regime da perseguição e aboliu o respeito e a deferência aos cidadãos, transformando-se em temido opressor. Rompeu com elementos diretores da política local, porfiando em demonstrar independência e autoridade. No entretanto, todos os papéis que lhe caíam nas mãos, passavam logo para as de seu escrivão, que era, na realidade, um serventuário muito prático e entendido do ofício.
O que mais aprazia, ao filho do coronel Anacleto, que estudara filosofia e várias espécies de Direito, era apalpar os quadris alheios, em cata da arma proibida.
Ele próprio executava esse serviço, fazendo deste modo uma rigorosa profilaxia do crime, que, não houve dúvida, deu de diminuir com tão grande carência de instrumentos.
Os políticos, temendo aquele moço desabrido e sem juízo, começaram logo a trabalhar para removê-lo. Mas o que faziam por um lado, o coronel desmanchava pelo outro.
Quando Amaro viu mesmo que o pai triunfara na luta surda e intensa, redobrou de fúria, entrando a praticar atos de se ficar pasmado. Surrava pobres diabos com uma impiedade de louco ou de selvagem; prendia, injustificadamente, por dias e dias, cidadãos pacatos e ordeiros; realizava terríveis diligências pelos distritos vizinhos, donde regressava com braçadas de armas apreendidas, e o punho cansado de açoitar borrachos e rameiras reles.
Rio Bonito, espumante de ódio, estrebuchava sob o tacão da bota do jovem zelador da ordem pública.
***
Certa manhã estava o coronel Anacleto no alpendre da casa de fazenda a sorver o seu café sossegadamente, em companhia do mano Justiniano, quando lhe foi entregue um telegrama. Leu-o apressadamente e caiu para frente, nos braços do irmão, acometido de um vagado. O despacho telegráfico chamava-o a Rio Bonito, onde o filho, vítima de uma agressão, agonizava.
Horas depois o coronel, como que alucinado, atirava-se no trem especial. Justiniano acompanhou-o.
Na noite deste mesmo dia entrava, entalado de soluços, na câmara mortuária do seu desventurado Amaro. Velavam o corpo cinco ou seis pessoas, quase todas fardadas.
Os pecados do coronel foram todos purgados naquela noite de vigília. Na manhã do dia seguinte estava trôpego e alquebrado, parecendo ter noventa anos. Sentia ria boca um sabor estranho. Era o coração que sangrava.
Não teve forças de acompanhar o filho até o cemitério.
Momentos depois do enterro regressou a Fartura, de cabeça caída sobre o peito, numa postura dolorosa de demente.
No silêncio da sua casa, com os olhos intumescidos de chorar, foi que compreendeu, então, o erro que cometera. Caiu-lhe sobre os ombros o peso descomunal de uma grande dor, estranhamente torturante; invadiu-lhe a alma lanhada um grande desespero. Parecia ensandecer. A imagem do filho morto cercado de soldados não lhe saía dos olhos, raiados de betas sanguinolentas. Quando apareceu o Justiniano, ele lançou-se-lhe nos braços, bradando alto e em pranto aflitivo:
— Matei meu filho, Justiniano, matei o meu Amaro!
E Justiniano, sem respeitar a angústia do alanceado pai, sentou-se-lhe ao lado e calmamente falou, fitando-o com dó e lástima:
— Eu não te disse, Anacleto! Olha: mais vale um bom peão do que um mau doutor!


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Digitalização, pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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