O crime do coronel
Depois
de longos e dilatados anos, conseguiu, afinal, o Amaro Moreira o seu nada
ambicionado diploma de bacharel em ciências jurídicas e sociais. Custara-lhe os
olhos da cara, o tal canudo!
Mas
qual seria a relutância que havia de vencer a vontade firme e inabalável de seu
pai? Lutara muito a princípio. Que não, que não queria ser doutor, que não
tinha cabeça para se meter em livralhada, que preferia a fazenda muito querida,
onde o seu guapo e desempenado corpo ficaria à vontade, e o seu espírito,
liberto das aperturas da meditação e do estudo, ganharia livremente os
descampados...
Não
houve, porém, pedido nem lamúria que demovessem o coronel da realização do seu
mais caro desejo: fazer o filho doutor, o seu único filho, a esperança fagueira
da família. Ele que era por assim dizer o dono de Fartura, o homem que não
temia rivais políticos num vasto círculo de dezenas de léguas, que até ali
jamais fora contrariado, nem encontrara calor que fundisse o aço de sua
vontade, não havia de ser em coisa tão simples que cederia. Pegou do filho,
engasgado de soluços, e levou-o para S. Paulo. Tivera nesse proceder o apoio de
toda a família, menos o do mano Justiniano, que lhe dissera um dia, ao saber da
terceira reprovação do sobrinho:
—
Anacleto, aceita o meu conselho: tira o Amaro do estudo, o menino não tem jeito
pra coisa. Entrega-lhe a fazenda "Floresta" que terás mais lucro e
satisfarás o rapaz, que tem chorado nos meus braços para salvá-lo da tal
Academia. Isto de doutores, mano, não é para quem quer, e sim para quem é. Bacoreja-me
que vais perder o menino... Olha, mano Anacleto: mais vale um bom peão do que
um mau doutor!
O
coronel ouviu tudo muito contrafeito, de testa enrugada. E parando de cofiar o
bigode, respondeu nervosamente, com a superioridade que lhe davam os seus
haveres e a qualidade de mais velho:
—
Deixa-me, Justiniano, deixa-me! Tenho muito que administre a
"Floresta" e peço ao mano que não se intrometa cá nesta questão. Ou
Amaro estuda ou largo-o de mão! Que vá tudo para os diabos, o que quero, quero!
Justiniano
recebeu na cara a malcriação, arrependeu-se de ter falado, e deixou, cabisbaixo
e enfiado, o palacete do irmão. Quando entrou em sua modesta casa, ainda com a
grosseria a arder-lhe no rosto, chegou-se-lhe a sua Juvência, indagando do que
acontecera. Justiniano, como se não notasse ninguém em torno, a modo de quem
fala consigo mesmo, perdido em funda meditação, resmungou," tragando uma
saborosa fumaça do seu cigarro de palha:
—
Pobre Amaro!
Juvência
fitou-o com acrimônia e despeito e falou, retomando os seus afazeres, como a
pensar em voz alta:
—
Ah! já sei! É zanga com o irmão por causa do Amaro!
E
dirigindo-se a ele:
—
Você afinal é um homem muito atrasado, meu marido! O que você deve estar é
muito satisfeito porque vai ter uma pessoa que enxergue na família, um doutor!
Na minha graças a Deus, eles não faltam í Ai! um doutor!. não há como um
doutor!... Se eu tivesse tido juízo...
Mas
se Justiniano desaprovava, Anacleto tinha para apoiá-lo a família inteira e
Fartura em peso. Muitos dos seus correligionários e amigos, quando queriam
lisonjeá-lo, era naquele ponto que batiam. Gabando-se-lhe o filho, os favores
caíam-lhe das mãos aos punhados.
Quando
Amaro se achava ainda no primeiro ano do curso, o pai já lhe havia traçado o
programa de vida, delineado bem a trajetória brilhante que ele tinha de
percorrer. Em primeiro lugar começaria advogando, para depois enveredar pelo
campo farto e promissor da política. Da câmara de Fartura chegaria facilmente à
estadual, passando-se em seguida para a federal, e, se as coisas corressem bem,
dessa última para a presidência do Estado. Aí, então, estaria de voo alçado...
Nada de magistratura! Que futuro podia ter um rapaz de talento metido na
magistratura do interior? Viver anos e anos numa pasmaceira estúpida e de
irritar! Não, nada de inércia nem de obscuridade! Olhar a vida frente a frente,
com o desassombro de quem está cônscio do próprio valor e crê na certeza da
vitória.
Os
que ouviam o coronel falar assim, de rosto aceso de alegria, o coração a pulsar
forte pelo filho único e extremado, desciam as cabeças numa aprovação 'unânime.
Merecia respeito aquela exaltação.
Amaro
custara muito chegar ao fim. Não tiveram número as reprovações, apesar dos
empenhos com deputados amigos e de decisiva influência no magistério da
capital. O pai, entretanto, que não fazia conta da demora, achando que todo
tempo era tempo, metia grandes somas nas mãos do filho, que se regalava em boas
rapaziadas. Um dia, estava certo, havia de tê-lo em casa, prontinho, sobraçando
o canudo.
Receios
de ruína não os tinha. Só o café que possuía em Santos daria para educar quatro
Amaros, afora as duas fazendas de criar, que prendiam mais de duas mil reses!
Desse jeito tentou, pertentou e venceu. Nada como a alçaprema do dinheiro!
***
Fartura
toda engalanada vibrava de entusiasmo. Acabava de chegar o senhor doutor Amaro
Moreira.
Houve,
como sempre, o encontro, discursos, música, mesas lautas, baile, etc...
Às
festas não deixou de comparecer o Justiniano, que, para logo, notou a mudança
que o uso do anel fizera no sobrinho. O moço simples, dado e bondoso, que tanto
gostava de amestrar os potros folhões da "Floresta", estava
transformado num janota cheio de galanices, de gestos estudados e ares
soberbos. Fora na ocasião do baile. Justiniano, no vão de uma das janelas, observava-o
a derramar gentilezas no regaço cândido de uma menina que sorria,
esperançosa... Fartando-se, afinal, de olhá-lo, virou-se para a rua deserta,
onde tremeluziam espaçados focos elétricos, e repetiu mentalmente o que
dissera, treze anos atrás:
—
Pobre Amaro!
***
Após
o acostumado tempo de repouso, utilizado por todos os cem doutores para o
refazimento das energias perdidas no estudo acurado de muitos anos, o coronel
fez ver ao filho que já era tempo de aparecer no campo da vida prática, para
honra e glória da família Moreira. Que se anunciasse e instalasse o seu
escritório de advogado.
Feriu-se
uma luta tremenda no íntimo de Amaro. E ele que, por um fenômeno intelectual
digno de registro, se conhecia a si mesmo, teve ímpetos de confessar ao pai que
nada entendia de direito, e que nos anos da capital só aprendera a fazer coisas
tortas. Mas nada disse, porque a vaidade apontou do outro lado da cachola,
protestando contra tal procedimento.
Amaro
deu-lhe ouvidos e anunciou que aceitava questões, não só no crime como no
cível.
Os
amigos do coronel incumbiram-se da propaganda, lançando aos quatro ventos de
Fartura e municípios vizinhos, o nome do novo advogado.
Não
tardou, pois, que lhe viesse ter às mãos questão importante, e da qual era uma
das partes pessoa de destaque da localidade, amigo do peito de seu pai.
Amaro
teve um estranho e doloroso estremecimento no ato de receber a procuração para
dar andamento à causa. Colocou-a na rica pasta, que trazia, em letras de ouro,
o seu monograma e pôs as mãos à cabeça, apalpando as têmporas para ver se
atinava com um meio qualquer de livrar-se, sem desdouro do seu anel, daquela
rascada. A situação era premente: ser ou não ser.
Depois
de matutar horas a fio, a arrepelar-se, numa aflição de arrancar lágrimas dos
livros que tinha defronte, resolveu devolver a procuração.
Em
caminho da casa do constituinte, porém, topou com um amigo, que, depois de
cumprimentá-lo sorridente e amável, disse-lhe jubiloso:
—
Estamos à espera do tombo do Guedes! Dá-lhe uma lição de mestre, meu caro
doutor! Descompõe-no nos autos, para de outra vez ele só se meter com gente de
sua laia!
Guedes
era um rábula temido, inimigo político do coronel e advogado da parte
contrária.
As
palavras daquele homem detiveram o filho de Anacleto no gesto desairoso para os
Moreiras, cujo apelido ele tinha obrigação de lustrar.
Meteu
mãos à obra, num supremo esforço de ousadia e coragem.
Foi
um desastre! O prejuízo do seu cliente, que já se julgava garantido mesmo por
aqueles que nada entendiam de leis, pois a razão estava claramente vista, foi
total. Vencera o Guedes, o mulato.
Diante
de fracasso tão notório e escandaloso, Amaro caminhou para o pai e disse-lhe,
com um azedume que o responsabilizava, que não mais trataria de questões.
O
coronel, encandeado ainda com as luzes do saber do filho, relutou e quis
convencê-lo de que o começo era mesmo assim, todos principiavam daquele jeito,
depois, sim, viria a prática, o traquejo. Aquilo eram asperezas que o tempo
acepilhava.
Amaro
não se demoveu.
Estavam
as coisas nesse pé, quando vagou o cargo de promotor público da comarca.
Anacleto, apesar de sua repulsa à magistratura, obteve do juiz a nomeação
interina do filho.
Foi
Amaro forçado a aceitar, sem deixar de pensar, contudo, na sessão do júri que
se aproximava. Aí foi que rolaram na areia das ruas os créditos do doutor. Logo
no início, na primeira acusação, excitado e trêmulo, atrapalhou-se na citação
dos artigos do código, e depois da leitura do libelo, feito pelo seu
antecessor, regougou algumas palavras e sentou-se a suar frio. A defesa, na
pessoa mulata do Guedes, ficou à vontade, conseguindo uma absolvição unânime
para o réu, criminoso de morte sem justificativa.
O
doutor, desorientado e sem tino, queixou-se de doente, pediu demissão e viajou
para "Floresta".
Fartura
inteira comentou o caso, surdamente, para que os murmúrios não ferissem os
ouvidos do coronel. Os inimigos dos Moreiras rejubilaram. Que era muito bem
feito tudo aquilo, para diminuir um pouco o orgulho da família: que o coronel
andava cego e não via que o filho não dava pra coisa, etc...
Cabia,
porém, aos íntimos açular o fogo sagrado do entusiasmo paterno. O próprio juiz
confessou ao coronel que não pudera tomar pé no poço fundo do saber do Amaro,
que o batia em qualquer matéria. Com o tempo havia de ver... O moço só
precisava de mais anos...
Anacleto,
não desesperançou. Deixou que os dias passassem, e trazendo, afinal, o filho da
fazenda, quis obrigá-lo a aceitar novas acusações. Amaro desta vez, sentindo no
rosto o calor das duas vergonhas que sofrera, rebelou-se, dizendo ao pai que
agora só tinha na vida um desejo: era ser delegado.
Essa
ideia nascera-lhe na fazenda. Nela vira não só uma profissão compatível com os
seus méritos, mas também o único meio de deixar Fartura e libertar-se do
predomínio do pai. O coronel, se não desaprovou nem se opôs, foi por causa do
tom decidido e firme, em que lhe falara o filho. Contudo aquela resolução de
Amaro não lhe mataria os planos e intentos. Qualquer caminho chegaria ao mesmo
fim. Antes de tudo, porém, era preciso satisfazer o rapaz.
***
Chegou
Amaro a Rio Bonito como um Roldão furioso. Atrabiliário e insensato, deu logo
de criar medidas absurdas, interpretando mais as leis, e as executando debaixo
de violências. Implantou o regime da perseguição e aboliu o respeito e a
deferência aos cidadãos, transformando-se em temido opressor. Rompeu com
elementos diretores da política local, porfiando em demonstrar independência e
autoridade. No entretanto, todos os papéis que lhe caíam nas mãos, passavam
logo para as de seu escrivão, que era, na realidade, um serventuário muito
prático e entendido do ofício.
O
que mais aprazia, ao filho do coronel Anacleto, que estudara filosofia e várias
espécies de Direito, era apalpar os quadris alheios, em cata da arma proibida.
Ele
próprio executava esse serviço, fazendo deste modo uma rigorosa profilaxia do
crime, que, não houve dúvida, deu de diminuir com tão grande carência de
instrumentos.
Os
políticos, temendo aquele moço desabrido e sem juízo, começaram logo a
trabalhar para removê-lo. Mas o que faziam por um lado, o coronel desmanchava
pelo outro.
Quando
Amaro viu mesmo que o pai triunfara na luta surda e intensa, redobrou de fúria,
entrando a praticar atos de se ficar pasmado. Surrava pobres diabos com uma
impiedade de louco ou de selvagem; prendia, injustificadamente, por dias e
dias, cidadãos pacatos e ordeiros; realizava terríveis diligências pelos
distritos vizinhos, donde regressava com braçadas de armas apreendidas, e o
punho cansado de açoitar borrachos e rameiras reles.
Rio
Bonito, espumante de ódio, estrebuchava sob o tacão da bota do jovem zelador da
ordem pública.
***
Certa
manhã estava o coronel Anacleto no alpendre da casa de fazenda a sorver o seu
café sossegadamente, em companhia do mano Justiniano, quando lhe foi entregue
um telegrama. Leu-o apressadamente e caiu para frente, nos braços do irmão,
acometido de um vagado. O despacho telegráfico chamava-o a Rio Bonito, onde o
filho, vítima de uma agressão, agonizava.
Horas
depois o coronel, como que alucinado, atirava-se no trem especial. Justiniano
acompanhou-o.
Na
noite deste mesmo dia entrava, entalado de soluços, na câmara mortuária do seu
desventurado Amaro. Velavam o corpo cinco ou seis pessoas, quase todas
fardadas.
Os
pecados do coronel foram todos purgados naquela noite de vigília. Na manhã do
dia seguinte estava trôpego e alquebrado, parecendo ter noventa anos. Sentia
ria boca um sabor estranho. Era o coração que sangrava.
Não
teve forças de acompanhar o filho até o cemitério.
Momentos
depois do enterro regressou a Fartura, de cabeça caída sobre o peito, numa
postura dolorosa de demente.
No
silêncio da sua casa, com os olhos intumescidos de chorar, foi que compreendeu,
então, o erro que cometera. Caiu-lhe sobre os ombros o peso descomunal de uma
grande dor, estranhamente torturante; invadiu-lhe a alma lanhada um grande
desespero. Parecia ensandecer. A imagem do filho morto cercado de soldados não
lhe saía dos olhos, raiados de betas sanguinolentas. Quando apareceu o
Justiniano, ele lançou-se-lhe nos braços, bradando alto e em pranto aflitivo:
—
Matei meu filho, Justiniano, matei o meu Amaro!
E
Justiniano, sem respeitar a angústia do alanceado pai, sentou-se-lhe ao lado e
calmamente falou, fitando-o com dó e lástima:
—
Eu não te disse, Anacleto! Olha: mais vale um bom peão do que um mau doutor!
---
Digitalização, pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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