O Asa Negra
Quando, em 185... poucos momentos antes de
nascer Raimundo, sua mãe curtia as dores do parto e curvava-se instintivamente,
agarrando-se aos móveis e às paredes, mandaram chamar a toda pressa a única
parteira que naquele tempo havia na pequena cidade de Alcântara.
A comadre prodigalizava, naquele momento, os cuidados
da sua arte hipotética à mãe de Aureliano, que era mais rica.
Só algumas horas mais tarde pôde acudir ao chamado;
mas já não era tempo: a mãe sucumbira à eclampsia; o filho salvara-se por um
milagre, que ficou até hoje gravado na tradição obstétrica de Alcântara.
O pobre órfão devia sofrer, enquanto vivesse, as
terríveis consequências, não só da inépcia das mulheres que assistiram a sua
mãe, como do falecimento desta. Era aleijado, entanguecido, e tinha a cabeça
singularmente achatada, nas cavidades frontais, pela pressão grosseira de dedos
imperitos. Um menino feio, muito feio.
***
Quando Raimundo entrou para a escola, já lá encontrou
Aureliano, rapazito lindo, vigoroso e rubicundo; mas uma antipatia invencível
afastou-o logo desse causador involuntário dos infortúnios que lhe cercaram o
berço.
Aureliano, que era de um natural orgulhoso, não perdia
ensejo de vingar-se da antipatia do outro. Não houve diabrura de que o não
acusasse falsamente, e, como Raimundo não era estimado, por ser feio, não
encontrava defesa, e estendia resignado a mão pequenina às palmatoadas
estúpidas do mestre escola. Isto acontecia diariamente.
O mestre, afinal, cansado de castigá-lo em pura perda,
pois que as acusações continuavam da parte de Aureliano, expulsou-o da escola;
e, como não houvesse outra em Alcântara, o bode expiatório cresceu à bruta, sem
instrução, não tendo achado no mundo espírito compadecido que lhe levasse um
raio de luz à treva da inteligência medíocre.
Mais tarde meteram-no a bordo de um barco, e
mandaram-no para a capital, consignado a uma casa de comércio.
Aí encontrou Raimundo um protetor desinteressado, que
lhe mandou ensinar primeiras letras e rudimentos de escrituração mercantil. A
prática faria o resto.
Dentro de algum tempo o menino, que já contava dezesseis
anos, deveria entrar, como ajudante de guarda-livros, para certo escritório de
comissões; mas oito dias antes daquele em que devia tomar conta do emprego,
morreu inesperadamente o seu protetor.
Entretanto, Raimundo apresentou-se, no dia aprazado,
em casa do futuro patrão.
— Cá estou eu.
— Quem é você?
— O ajudante de guarda-livros de quem lhe falou o
defunto Sr. F.
— Ah! sim... lembra-me... mas o meu amiguinho chore na
cama que é lugar quente; o serviço não podia esperar, e eu tive que admitir
outra pessoa.
E apontou para um rapaz que, sentado, em mangas de
camisa, a uma carteira elevada, parecia absorvido pelo trabalho de escrita.
— Ah! murmurou despeitado o infeliz alcantarense.
O outro levantou os olhos, e Raimundo reconheceu-o:
era Aureliano, que tinha os lábios arqueados por um sorriso verdadeiramente
satânico.
***
Passaram-se alguns meses, durante os quais Raimundo
passeou a sua penúria pelas ruas de São Luís. Andava maltrapilho e quase
descalço.
Arranjou, afinal, um modesto emprego braçal, numa
agência de leilões. Só quatro anos mais tarde julgou prudente trocá-lo por um
lugar de condutor de bonde.
Durante todo esse tempo, Aureliano, o seu asa-negra,
moveu-lhe toda a guerra possível. Diariamente lhe chegavam aos ouvidos os
impropérios gratuitos e as pequeninas intrigas do seu patrício.
Raimundo convenceu-se de que Aureliano, rapaz
simpático e geralmente estimado na sociedade em que ambos viviam, nascera no
mesmo momento em que ele, como um estorvo ao mecanismo da sua existência. Era o
seu asa-negra.
***
Foi no bonde que Raimundo viu pela primeira vez os
olhos negros e inquietos de Leopoldina.
Não se descreve a paixão que lhe inspirou essa morena
bonita, cujos contornos opulentos causariam inveja às louras napeias de Rúbens.
A rapariga tinha nos olhos a altivez selvagem e nos lábios a volúpia ingênita
das mamelucas. O seu cabelo grosso, abundante e negro, prendia-se, enrolado no
descuido artístico das velhas estátuas gregas, deixando ver um cachaço que
estava a pedir, não os beijos de um Raimundo anêmico e doentio, porém as rijas
dentadas de um gigante.
Pois Raimundo, que não era nenhum Polifemo, um belo
dia conduziu ao altar a mameluca bonita, e até o instante da cerimônia esteve,
coitado, vê não vê o momento em que Aureliano surgia inopinadamente de trás do
altar-mor, para arrebatar-lhe a noiva.
Infelizmente assim não sucedeu.
Nos primeiros tempos de casado, tudo lhe correu às mil
maravilhas; mas pouco a pouco a sua insuficiência foi se tornando flagrante. O
seu organismo fazia prodígios para corresponder às exigências da esposa, cuja
natureza não lhe indagava das forças.
As mulheres ardentes e mal-educadas, como Leopoldina,
quando lhe faltam os maridos com a dosimetria do amor, confundem a miséria do
sangue com a pobreza da casa. Questão de disfarçar sentimentos, e de aplicar o
abstrato ao concreto. Leopoldina, que até então se contentara com a aurea mediocritas relativa do
condutor de bonde, começou um dia a manifestar apetites de luxo, a sonhar
frandulagens e modas.
De então em diante tornou-se um inferno a existência
doméstica de Raimundo. Ano e meio depois de casado, ele evitava a convivência
da esposa, jantava com os amigos, e só aparecia em casa para pedir ao sono
forças para o trabalho do dia seguinte.
***
Mas, de uma feita em que se viu forçado a ir à casa em
hora desacostumada, surpreendeu Leopoldina nos braços hercúleos de Aureliano.
Excitado pelo desespero, cresceu para eles frenético,
espumante; mas os quatro braços infames desentrelaçaram-se das criminosas delícias,
e repeliram-no vigorosamente.
O pobre marido rolou sobre os calcanhares, e caiu de
chapa, estatelado, sem sentidos.
Quando voltou a si, os dois amantes haviam
desaparecido.
Raimundo não derramou uma lágrima, e voltou cabisbaixo
para o trabalho.
Ao chegar à estação dos bondes, o chefe de serviço
repreendeu-o, fazendo-lhe ver que a sua falta se tornara sensível.
Despedi-lo-ia, se não fosse empregado antigo, que tão boas provas dera até
então de si.
O alcantarense ergueu a cabeça. Os olhos desvairados
saltavam-lhe das órbitas com lampejos estranhos. E respondeu coisas
incoerentes. Estava doido.
Dali a uma semana, foi para Alcântara, requisitado por
um tio, derradeiro destroço de toda a família.
Pouco tempo durou, iludindo a vigilância do parente,
saiu de casa uma noite, e atirou-se ao mar, afogando consigo as suas desgraças
nas águas da Baía de São Marcos.
***
Dois dias depois deste suicídio, a Ilha do Livramento,
árido promontório situado perto de Alcântara, em frente àquela Baia de São
Nilarcos, regurgitava alegremente de povo. Realizava-se a festa de Nossa
Senhora, e os fiéis afluíam, tanto da capital como de Alcântara, à velha ermida
solitária.
Aureliano, alcantarense da gema e figura obrigada de
todas as festas e romarias, compareceu também ao arraial, exibindo publicamente
a sua personalidade, que se tornara escandalosa depois do adultério de
Leopoldina.
No Maranhão as paredes não têm somente ouvidos, como
diz o adágio: têm também olhos.
***
Conquanto o céu anunciasse próxima borrasca, Aureliano
resolveu deixar a Ilha do Livramento e embarcar, ao escurecer, numa delgada
canoa, em demanda de Alcântara, onde tencionava pernoitar. A empresa era sem
dúvida arriscada; mas lá, na colina escura que se refletia vagamente nas águas
negras da baía, esperam-no os braços roliços da viúva do doido.
Embarcou.
Acompanhava-o apenas um remador, que desde pela manhã
tomara a seu serviço.
***
Em meio da viagem, soprou de súbito rijo nordeste, e o
mar, que até então se conservara plácido e próspero, encapelou-se raivoso. Em
três minutos as ondas esbravejavam já terrivelmente, e a canoa, erguida a
grande altura, e de novo arremessada ao pélago, num estardalhaço de vagas,
recebia no bojo quantidade de água suficiente para metê-la a pique.
— Cada um cuide de si! bradou o remador, atirando-se
ao mar, e oferecendo combate heroico à impetuosidade das ondas. Nadava que nem
Leandro.
Aureliano viu-se perdido. A canoa mergulhava. Ele não
sabia nadar, o desgraçado! Preparou-se para morrer...
A embarcação submergiu-se.
O náufrago agitava instintivamente os braços e as
pernas, esperando talvez que o desespero lhe ensinasse milagrosamente uma
prenda que nunca aprendera.
Debalde!
Foi ao fundo, vertiginosamente. Voltou de novo à tona
d'água, chamado à vida pelo seu sangue de moço. Bracejou... tentou bracejar... A
sua mão encontrou alguma coisa fria, muito fria... que flutuava. Agarrou-se a
esse objeto salvador... boiou muito tempo com ele... e com ele finalmente foi
arremessado à praia...
O cadáver de Raimundo salvara Aureliano
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