Vatel
O excentrismo
topográfico da cidade obriga seus moradores talvez ao maior movimento de
locomoção ainda observado em centro urbano. O carioca devia chamar-se naveta, já que a ir e vir passa a vida, como a
lançadeira das máquinas de costura. Carioca que morre sessentão, três anos pelo
menos morou no bonde. Outros chegam a morar vinte ou trinta; mas estes não
contam, motorneiros e condutores de profissão que foram.
Ora, se este tempo de
bonde, em regra perdido a olhar com displicência o desfile das casas
margeantes, fosse empregado na leitura, que grandes ledores não seriam os
cariocas e que ótimo negócio o dos livreiros!
O bem far-se-ia duplo:
desencrostar o espírito do cascão que Manuel, Cunhambebe e pai João nos legaram
e encurtar as distâncias. Do centro à Tijuca, a ler, dura a viagem cinco
minutos, se o livro é bom, ou quinze, se medíocre. A olhar as casas,
parvoamente, como se foram palácios, dura horas.
Porque nada mais
elástico que isto de hora. A marcação mecânica dos relógios difere da única
marcação verdadeira, que é a psicológica. As horas de amor têm cinco minutos,
as de seca literária, cento e vinte e às vezes mais.
Muito esmói o cérebro
dos nossos prefeitos, que o têm, o problema do encurtamento das distâncias — e
nada de vir solução que preste. É que procuram solução mecânica num caso em que
só é possível a solução psicológica.
Ensine-se a ler ao povo
e forneçam-se-lhe livros interessantes, portáteis, em brochura para o bolso do
revólver. E que cada condutor de bonde nos dê em troca da passagem, em vez do
papelucho colorido que nos destacam à vista e o vento leva, um livrinho
acomodado à extensão da viagem.
A Linda Mentira, de Ahelmar, a quem vai à Lapa; o Rocambole, a quem vai ao Leblon. E ninguém murmurará
jamais contra as distâncias, psicologicamente suprimidas.
As boas soluções são
essas, as indiretas.
Isto o digo por
experiência própria. Meu bonde me consome vinte inexoráveis minutos de relógio
em levar-me de casa ao centro. Se vai comigo um livro, não percebo o desfalque
do meu capital-vida; se vou a olhar casas, sinto-me roubadíssimo.
Além de que é uma
delícia o refugir pela imaginação ao ambiente de asfixia em dobro, que nos dá
estado de sítio em cima de calor. Leituras tópicas: Guilherme Tell, de Schiller e Viagem ao Pólo, de Amundsen.
Somem-se as barreiras do
espaço e do tempo. Com a mesma facilidade com que pulamos do Rio à Grécia e lá
assistimos à greve das mulheres contra o ardor dos maridos, contada por
Aristófanes, saltamos do dia de hoje ao século dezoito e ouvimos de Mme. de
Sevigné a história da morte de Vatel, caso único de morte por hipertrofia de
ponto de honra culinário.
Meu bonde ontem foi de
palestra com Madame. Esta senhora imortalizou-se de verdade com um punhado de
cartas escritas à filha e a outros figurões, todas elas modelos de graça,
leveza e feminilidade.
Os franceses têm a
palavra pimbêche para designar a
mulher de ânimo belicoso que vive em guerra aberta com todos da família. A
criar-se lá o antônimo de pimbêche seria fatal o sevignêche, tal a adoração que Madame indicia nas cartas pela filha e pelos seus.
Adoração que acaba enjoando o leitor, como os doces doces de mais. Já não é
mais sentimento porque é sensiblérie pura, da só possível naquela antissocialíssima vida de corte em
que um enxame de cortesãos zumbia em torno do décimo quarto Deus-Luiz.
Quando, porém, um fato
de nota ocorria, a correspondência da Sevigné escapava à bombonização rósea do
pensamento e narrava com muita naturalidade e graça.
Numa de suas cartas
ocupa-se da morte de Vatel, chefe supremo da cozinha da casa de Condé. O rei
fora visitá-lo, a Condé, e houve caçada, passeios, colação ao luar num sítio
poético tapetado de junquilhos. À noite, ceia.
Mas a comitiva apareceu
maior do que a esperada e o assado faltou a algumas das mesas.
Isto foi para Vatel um
golpe de morte.
— Estou desonrado; não
poderei suportar este desastre... murmurou ele.
Mais tarde disse a um
Gourville:
— A cabeça me vira; há
doze noites que não durmo; ajude-me a dar ordens.
Gourville o consolou
como pôde.
O assado não faltara à
mesa do rei, e sim a mesas subalternas. Mesmo assim Vatel definhava de dor.
O príncipe de Condé foi
até seu quarto consolá-lo.
— Tudo vai bem, Vatel; a
ceia do rei esteve maravilhosa!
— Monsenhor, vossa
bondade me confunde; mas eu sei que o assado faltou a duas mesas.
— Tolices, não te
aborreças, tudo vai bem, concluiu o príncipe.
A noite chega. Há um
fogo de artifício que falha por causa do mau tempo. (O fogueteiro, que era parente
de Vatel, nem por isso perdeu o sono).
Às quatro da madrugada
Vatel, já em movimento de cá para lá, encontra um fornecedor de peixe que lhe
traz algum.
— É tudo? pergunta
Vatel. E ao saber que era acha pouco e superexcita-se inda mais. Impacienta-se.
Não espera que os outros pourvoyeurs, mandados a todos os portos de mar, cheguem a tempo. Cruza-se com
Gourville e diz:
— Não sobreviverei a
esta nova afronta, tenho honra e reputação a perder...
Gourville caçoa dos seus
escrúpulos e segue caminho.
Vatel sobe ao seu
quarto, encosta a espada à parede e traspassa o coração. Três enfincadas deu,
conseguindo a morte na última, como diria Mr. de La Palisse.
Mal expira o intendente,
eis que começam a chegar de todos os lados os pourvoyeurs — e é peixe a dar com pau. Correm à procura
de Vatel; esbarram na porta do seu quarto fechada; arrombam-na e lá o encontram
morto, num lago de sangue. Compusera o seu último prato: Vatel em molho
pardo...
A tristeza foi imensa.
Condé adorava-o e via nele a coluna mestra do seu prestígio de príncipe. A
deserção do Shakespeare da cozinha viria certamente diminui-lo na consideração
do estômago real e dos estômagos azuis da corte. Não se suicidou entretanto.
Apesar de príncipe não sofria de hipertrofia do ponto de honra, como o seu
cozinheiro.
---
In: Na Antevéspera
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...