Plágio post-mortem
A 11 de outubro de 1916,
pela tarde, entra a esvoaçar em São Paulo um corvo sinistro: o boato da morte
de Ricardo Gonçalves.
— Será possível!...
Era. O boato
confirma-se. La buffera infernal que mai
non resta tragara-o para sempre.
Ricardo, a tiros de
revólver no coração, fechara o epílogo da sua tragédia de amor. E a Pauliceia
tão fria, tão sem gestos, tão fechada consigo mesmo chorou-o com as suas
melhores lágrimas — irmãs das que teria mais tarde para Moacir Piza.
Criatura de eleição, era
Ricardo o feitiço dos seus amigos: nenhum possuiu que o não chore ainda hoje.
Poeta dos que falam à alma, seus versos, dos mais ricos de poesia de quantos se
fizeram no Brasil, viviam na boca dos amadores, passavam de álbum a álbum,
perpetuavam-se nas folhas à força de transcrições. Esperança do povo, sua ação
social relevada em discursos de perturbadora eloquência, fazia os humildes
enxergarem nele a aurora de um Graco. Paixão das mulheres, sua beleza física,
de fundo romântico, culminava nos olhos divinos de expressão e nostalgia do
além, tornando-o o homem fatal dos amores que fulminam.
Em suma: caso raríssimo
de requinte racial, de confluência harmônica das três grandes forças: gênio,
beleza, coração. Dessa amálgama feliz vinha o dom supremo — a bondade filha da
suprema compreensão.
Uma bala de revólver
roubou a São Paulo a flor peregrina ainda mal desabrochada.
Mas o perfume ficou:
seus versos.
Ricardo os fazia de raro
em raro, sem mira noutra coisa senão fazê-los. Linguagem natural do coração,
exteriorizava-os despreocupado, como a violeta que recende à tardinha.
Não os publicava; a sede
da perfeição inatingível não lho permitia. Seus amigos, porém, os foram levando
a jornais e revistas, receosos de que se perdessem tão finos lavores.
Seis anos após sua morte
esses versos foram reunidos em volume — Ipês. A coleção trazia além das suas
produções originais algumas traduções de Leconte e Rostand. E Ricardo Gonçalves
passou a viver a doce vida da sombra, em seus versos e na saudade dos amigos.
Conquistara a paz. Dera a vida terrena em troca dessa mansa quietude.
Os anos passam. De
súbito, uma revista carioca explode uma acusação hienal contra a memória do
morto. Xavier Pinheiro impiedosamente o acusa de plagiário; mais, de gatuno de
versos alheios. Acusa-o de haver furtado a Porto Carrero uma tradução de
Rostand.
E o articulista esmaga a
nobre sombra cotejando as duas produções — na realidade uma só porque
absolutamente idênticas.
Mais que brutal, mais
que grosseira, a conclusão do acusador era inepta. Se o livro de Carrero
apareceu depois da morte de Ricardo como poderia este plagiar post-mortem?
Se plágio havia, plagiou
quem apareceu por último. A cronologia, portanto, investia, virava pelo avesso
o libelo e punha em má situação Porto-Carrero.
Era, entretanto, absurda
qualquer das duas hipóteses. Nenhum dos dois poetas merecia que nem por sombras
pairasse sobre eles tão infantil suspeita.
O caso devia ser bem
outro, e era.
Havia acontecido o
seguinte.
Como o livro dos “Ipês”
só foi organizado muitos anos depois da morte do poeta o organizador do
trabalho teve que lutar com muitas dificuldades. Teve que catar as produções
esparsas aqui e ali, escabichando coleções de revistas e jornais, álbuns,
memória de amigos.
E no afã da colheita...
apanhou a tradução de Carrero e a incluiu na coletânea como sendo a de Ricardo.
Só agora, com o alarme
de Xavier Pinheiro, se verificou o engano, e graças a uma busca rigorosa foi
possível desenterrar de uma revistazinha antiga a tradução de Ricardo, que traz
a data de 1904.
A Manhã, órgão de desagravos,
vai desagravar a sombra caluniada publicando as duas traduções. E seus
leitores, comparando-as, hão de forçosamente exclamar:
— Que criatura feliz
este Rostand, cujos versos encontram tradutores de tal quilate!
A de Ricardo é esta:
MANEIRA DE
FAZER PASTÉIS DE AMÊNDOA
Com três ovos — cada clara
Bem batida, uma por uma,
Se prepara
Uma xícara de espuma
Branca e leve qual se fosse
Neve pura; põe-se então,
Com leite de amêndoa doce,
Quinze gotas de limão.
Depois se bate e adelgaça,
Visando-se obra perfeita,
Fina massa
Que se deita
Numas formas especiais.
E em cada pastel, brocado
Lado a lado,
Põe-se a espuma e nada mais.
Os pastéis assim obtidos
São no forno muito quente,
Docemente,
Com cautela introduzidos.
Espera-se um pouco e, após,
Na bandejinha que os trouxe,
Enfileiram-se ante nós
Os pastéis de amêndoa doce.
Bem batida, uma por uma,
Se prepara
Uma xícara de espuma
Branca e leve qual se fosse
Neve pura; põe-se então,
Com leite de amêndoa doce,
Quinze gotas de limão.
Depois se bate e adelgaça,
Visando-se obra perfeita,
Fina massa
Que se deita
Numas formas especiais.
E em cada pastel, brocado
Lado a lado,
Põe-se a espuma e nada mais.
Os pastéis assim obtidos
São no forno muito quente,
Docemente,
Com cautela introduzidos.
Espera-se um pouco e, após,
Na bandejinha que os trouxe,
Enfileiram-se ante nós
Os pastéis de amêndoa doce.
(1904)
A de Porto-Carrero é a
seguinte:
TORTAZINHAS
DE AMÊNDOAS E MODO DE AS FORMAR
Batam-se bem alguns ovos
Inda novos;
Nas ondas que a espuma trouxe
De cidra o sumo se deite,
Grosso leite,
Bom leite de amêndoa doce.
Passe-se dentro da lata
Fresca nata
Em formas de bom-bocado:
De damasco a borda peje-se;
E despeje-se
Gota a gota com cuidado
Tudo na forma, de forma
Que essa forma
Vá para o forno; e, rendendo-a,
Sigam-se as outras; saindo
Venham vindo
As tortazinhas de amêndoa.
Inda novos;
Nas ondas que a espuma trouxe
De cidra o sumo se deite,
Grosso leite,
Bom leite de amêndoa doce.
Passe-se dentro da lata
Fresca nata
Em formas de bom-bocado:
De damasco a borda peje-se;
E despeje-se
Gota a gota com cuidado
Tudo na forma, de forma
Que essa forma
Vá para o forno; e, rendendo-a,
Sigam-se as outras; saindo
Venham vindo
As tortazinhas de amêndoa.
Imagino (gratuitamente)
que os próprios tradutores torceriam o nariz aos pastéis feitos pelas suas
receitas — mas poeticamente as duas estão, ou devem estar certas.
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In: Na Antevéspera
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)
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