País de tavolagem: O grande mal — A pobreza
Quem olha d’alto para o
nosso país apreende logo a causa última de todos os seus males: pobreza. No
entanto vivemos a entoar loas às nossas fabulosas riquezas. Confundimos
infantilmente riquezas com possibilidades.
O café de São Paulo é
uma riqueza. As jazidas de ferro mineiras, uma possibilidade. Da confusão
desses termos nasce a vesguice indígena.
O Brasil é pobre, e
tirante as poucas regiões em que as possibilidades naturais foram realizadas é
paupérrimo. E por ser pobre não consegue resolver nenhum dos seus problemas
elementares.
Nada mais elementar que
a instrução e a higiene. Se o Brasil é analfabeto e doente, consequência é isso
exclusiva da sua pobreza. Nas zonas que se vão enriquecendo a instrução cresce
por si, automaticamente, e o índice da saúde avulta.
Tomai um analfabeto do
interior, doente de opilação. Instrui-o e curai-o. Depois largai dele,
deixando-o entregue a si mesmo. Esse homem, vítima da pobreza, recairá em
estado de doença; seus filhos, por falta de recursos, recairão no
analfabetismo. A solução do seu caso falhou porque foi uma solução direta — e
só as soluções indiretas resultam eficazes.
Aplicai a solução
indireta, enriquecei-o. Que acontece? Automaticamente esse homem tratará de
curar-se e, como tem meios, não se reinfectará jamais. Seus filhos ele os
educará, porque o primeiro pensamento de um pai, quando resolve o seu problema
econômico, é dar aos filhos uma instrução mais alta do que a que teve.
E de quantidade negativa
passa esse homem a quantidade positiva, na economia social.
Vejamos o inverso.
Lançai na miséria um homem culto. A primeira consequência será a perda da
saúde: a segunda será o regresso da sua prole a um nível de instrução inferior
ao seu. Em pouco tempo estará criado um valor negativo para o progresso social.
É evidente, pois, que só
uma solução existe para todos os problemas nacionais: a indireta, a solução
econômica. Só a riqueza traz instrução e saúde, como só ela traz ordem,
moralidade, boa política, justiça.
— Enriquecei-vos! deve
ser a senha dos nossos estadistas.
Mas para que um povo
possa enriquecer é preciso que o Estado crie um regime de estabilidade, visto
como a riqueza não passa do lento acúmulo dos bens filhos do trabalho. Este
acúmulo, sedimentação que é, só se opera quando há estabilidade. Em águas
agitadas não se formam depósitos. Estabilidade na ordem social pela paz, e na
ordem econômica pela ausência de oscilações dos valores. Um país eternamente
convulsionado pelas revoltas não pode enriquecer: a guerra desfaz. Também não
pode enriquecer-se um país eternamente convulsionado pelas bruscas oscilações
dos valores: a crise desfaz. Um país nessas condições passa a vida nesse
trabalho de Sísifo, a fazer e a desfazer — permanecendo na desordem e na
pobreza.
O dever primeiro dos
estadistas é pois criar condições adequadas ao enriquecimento do país, caminho
único que leva à ordem social, à cultura, à higidez.
Mas como pode o Estado
criar estas condições, se tudo depende da operosidade dos indivíduos? Da
maneira mais simples: não criando obstáculos a essa operosidade. Os grandes
homens de Estado não são os que reformam: são os que tiram do caminho os
embaraços com que a má-fé, o espírito de parasitismo e a estupidez embaraçam os
movimentos do povo.
Logo, está nas mãos dos
homens de governo promover ou retardar o progresso de uma nação.
Dentre os embaraços que
a estupidez cria há um que avulta sobre todos os demais: o que resulta da
incompreensão da vida econômica. Esse embaraço é mortal, porque deflete para
todos os rumos e vai afetar a vida do povo até no que aparentemente nada tem
que ver com a economia, como é a sua moral.
A vida do homem moderno
se resume num perpétuo jogo de compra e venda. Todos compram e todos vendem,
desde que o sol nasce até que a luz dos lampiões se acenda.
O operário vende seu
labor e compra mercadorias. O patrão compra trabalho e vende o produto dele. Se
vender e comprar é a ocupação permanente dos homens, quer isso dizer que a vida
gira em torno do valor.
O jogo dos valores,
pois, cria o ritmo da vida, e tanto menos oscilam eles, tanto mais em segurança
se sente o homem, tanto mais feliz, tanto mais animado de espírito criador. Vem
daí que a estabilidade dos valores é tão necessária para o bom funcionamento do
organismo social como a estabilidade do clima o é para o bom funcionamento do
organismo animal.
Se o trabalho se
desvaloriza, sofre o trabalhador. Se oscila o valor dos produtos, sofre o
industrial. O ideal seria uma estabilidade completa: como, porém, o valor está
em função de uma férrea lei econômica, qual seja a da oferta e da procura, não
é possível atingir esse ideal absoluto.
Temos que nos contentar
com o possível, isto é, com a oscilação reduzida ao mínimo. Este oscilar mínimo
é perfeitamente suportado pelo homem e dentro da sua órbita um povo pode
prosperar indefinidamente.
Para o jogo dos valores,
entretanto, há necessidade da adoção de uma medida. Ninguém pode comprar ou
vender sem medir o valor. Essa medida é a moeda. Mas, medida que é, a moeda não
pode variar. Moeda que varia é coisa tão absurda como um litro que mudasse, um
metro que ora tivesse 50 centímetros ora 100, um quilo sujeito a câmbio, hoje
valendo 700 gramas, amanhã 650.
Logo, a primeira coisa
que um estadista tem que criar é uma medida de valor que o seja, que não varie,
que não seja elástica. Porque assim fazendo removerá da vida do povo o embaraço
maior de todos, o obstáculo que jamais permitirá que esse povo acumule riqueza.
A experiência da
humanidade resolveu o problema da medida do valor com a adoção do ouro. As
coisas valem em relação ao ouro, ele não vale em relação a coisa nenhuma, visto
que é o padrão.
E todos os povos se
foram passando ao regime do padrão ouro, único que provou bem de quantos
experimentados. E sob o seu regime erigiu-se a economia moderna e
possibilizou-se o comércio internacional. O sonho da língua única para todos os
povos foi precedido pela unicidade do padrão monetário. E ficou axiomático: o
metro do valor é o ouro.
Para comodidade das
transações inventou-se a moeda papel; em vez de circular o ouro, que é pesado e
incômodo, circularia uma cédula do Tesouro, um vale contra a caixa. O portador,
no momento em que o desejasse, trocaria esse cheque por metal. Isto vinha
resolver com rara felicidade os problemas determinados pelos inconvenientes da
circulação manual metálica.
Mas há povos
trapaceiros, ou melhor, povos guiados por estadistas trapaceiros. Estes
piratões imaginaram uma falcatrua que fez época, deu resultados aparentes e por
fim arrastou os países à ruína.
Essa falcatrua era fazer
em ponto grande o que os moedeiros falsos fazem em pequeno. Era substituir a
moeda papel por papel moeda. Era mentir no cheque dizendo: “No Tesouro Nacional
se pagará ao portador desta a quantia de tanto”, e não pagar coisa nenhuma, ou
pagar menos que o valor especificado nos lindos algarismos de bela gravação em
aço.
O Brasil teve a desgraça
de enveredar por este caminho. Passou à categoria de povo trapaceiro e ingênuo.
Os povos sérios, de moeda honesta, olharam-no de soslaio, riram-se do pobre
bugre e começaram a fazer preço cada vez mais irrisório para as suas cédulas do
Tesouro. Para cada mil réis, para cada milhão de réis com que procurávamos
deslumbrar os povos sérios, eles nos ofereciam ora um shilling, ora um pedacinho de shilling,
ao sabor de um termômetro que o brasileiro não tira diante dos olhos, chamado
câmbio sem que o bugre saiba por que.
Os males que a camuflagem
da moeda causaram ao nosso povo não têm conta. O primeiro foi relegá-lo à
categoria dos desonestos e chamar para nós o desprezo universal. O segundo foi
impedir que nos enriquecêssemos. O terceiro foi impedir que, em virtude da
miséria crônica, pudéssemos resolver os nossos problemas internos, a principiar
pelo da instrução.
Nossa vida se
transformou em pura jogatina. Ninguém sabe quanto possui. O negociante que faz
um pedido para o exterior não tem base para calcular o quanto vai pagar pela
mercadoria quando a tiver na alfândega. Os governos, quer da União, quer dos
Estados, não têm base para organizar um orçamento de receita. O serviço das
dívidas pode absorver 50 mil contos, como pode absorver 100. E o Brasil se
transformou numa casa de tavolagem onde todos, queiram ou não, se veem forçados
a jogar.
Herbert Casson tem um
livro em que prova que o negócio é uma ciência, regida por axiomas e leis tão
duras como as leis naturais. Esses axiomas, entretanto, falham no Brasil. Para
deduzi-lo Casson estudou a vida comercial dos povos de moeda ouro. Está claro,
pois, que não valem para um país cuja moeda nunca foi moeda, e sim vergonhoso
conto do vigário. De modo que aqui em vez de ciência, o negócio é um jogo.
Além do estado de
pobreza que o uso do “paco” nos acarreta, não têm conta os seus funestos
reflexos no caráter nacional. A sífilis monetária não deixa célula do organismo
sem infecção — nem sequer as células da matéria cinzenta do cérebro.
No entanto vivemos nesta
lazeira sem dar por ela, com uma resignação de árabe na kabila. As crises se sucedem, e o brasileiro olha para o céu,
consulta cartomantes, faz promessas a Santo Antônio. E todos os dias corre ao
jornal para ver o câmbio — isto é, para ver quanto os outros povos entendem de
nos dar pelo nosso ridículo mil réis...
Crise significa ruptura
de um estado de equilíbrio econômico seguida de convulsões para o encontro dum
equilíbrio novo. As oscilações da nossa moeda determinam um rosário de crises
sem fim, funestíssimas. Se a temperatura do Rio oscilasse diariamente de 40
graus a 10, que organismo resistiria ao desequilíbrio resultante? Nenhum. No
entanto é num regime idêntico que o nosso país vive em matéria econômica.
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In: Na Antevéspera
Atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)
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