O pátio dos milagres
Há no mundo nações tão
bem ordenadas, tão limpas de vida que se tornam insulsas e intelegrafáveis. Suécia, Noruega, Dinamarca; Holanda e Suíça
(a lista não vai além) chegam à perfeição de impedir a permanência em seu
território dos solícitos correspondentes da Havas, da United, da Associated
Press. Proíbem-lhes o ingresso? Absolutamente não. Apenas lhes negam fatos
telegrafáveis. Não há desastres, não há crimes, não há revoluções, não há
guerras, não há sítios, não há golpes de estado, não há nada dessa pitoresca
desordem da França, Itália, Portugal, Brasil e outros, eterna fonte dos
telegramas que enriquecem as agências à custa da universal curiosidade.
A Suécia chegou à
perfeição das colmeias. Nos bondes os passageiros depositam o níquel da
passagem numa caixinha adequada. Nem cobradores, nem fiscais — e nunca um sueco
lesou nenhuma empresa de tramway. Se
porventura esquece em casa os níqueis, viaja de graça, mas no dia seguinte, ao
tomar de novo o bonde, não esquece de pagar em dobro. A venda de jornais às
esquinas é feita pelo mesmo processo. O freguês toma a folha que quer e
deposita o preço. Se está sem miúdos, ele mesmo faz o troco. As moedas
permanecem numa caixa aberta, à vista do público, sem que passe pela cabeça de
ninguém a ideia absurda e antissueca de furtá-las.
Na Suíça deu-se há três
anos um crime. Um russo, em trânsito por Lausanne, matou a outro russo por
motivo de vingança política. O abalo foi medonho. Do Jungfrau à última vaca
bernesa, a Suíça inteira fremiu de horror, e durante meses foi esse crime o
tema de todas as conversas e de todos os espantos. Até hoje, quando quer um
suíço referir-se a fatos do ano 1923, diz, ainda arrepiado: Foi no ano daquele
crime...
Países assim têm o
defeito gravíssimo da insipidez. Lembram a ilha da Perfeição, onde a deusa
Calipso abrigou Ulisses e de tantas delícias o cercou que o mal acostumado
grego deu de bocejar, saudoso da bela desordem de Ítaca.
Esta insulsez da ordem
perene foi-me há dias confirmada por um turista sueco, que desceu do Arlanza para uma rápida inspeção à nossa cidade
e acabou fixando residência aqui.
— Estou maravilhado!
disse-me ele. Nunca supus que no mundo houvesse uma coisa (ele chama ao nosso
país coisa) tão interessante e pitoresca! Começa pela mistura das raças. Nós lá
somos vítimas da perfeição étnica. Todos os homens se parecem uns com os
outros, todos regulam no porte, na cor dos olhos, no louro dos cabelos, no bem
proporcionado dos membros. Ora isso, afinal, cansa, porque ver um é ver todos.
Mas aqui, que maravilha! Os homens apresentam a gama inteira da somática
humana. Há-os grandes, médios, pequenos e minúsculos. Há-os retos como cabos de
vassoura, gordos como abóboras, magros como palitos, tortos como latas velhas,
capengas, cambaios, corcundas, coxos, manetas. E de todas as cores, pretos,
castanhos, achocolatados, aços, amarelos, ruivos, vermelhos, verdes e até
brancos. Costumo ficar na rua Larga vendo o desfile do povo suburbano. Não há
dois seres iguais e ainda não vi um com a forma humana clássica dos Apolos
esculpidos na Grécia, ou dos jovens que passam pelas ruas de Estocolmo.
Isto, meu caro senhor, é
uma pura maravilha para um viajante como eu, que corre mundo em procura do
pitoresco ausente da terra natal. Somos na Suécia vítimas da ordem perfeita,
ordem em todos os sentidos, inclusive a econômica. Esta chegou a tal ponto que
até esse velho elemento estético, tão caro aos artistas, que é o clássico
mendigo de rua, desapareceu dentre nós. Pintor sueco que se proponha pintar um
quadro como O Piolhoso de Murilo, ou vai
pintá-lo fora da Suécia, ou tem de camuflar de mendigo a um sadio mecânico
aposentado de Trollhatan.
Aqui, entretanto, que
riqueza de motivos pitorescos só no que diz respeito a admiráveis mendigo
autênticos! Em plena Avenida, num esplêndido contraste com as montras cintilantes
de joias e as damas que passam vestidas de todas as cores do íris e de todas as
missangas de Paris, tenho visto exemplares que fariam fremir de entusiasmo o
pincel do nosso grande André Zorn. Mendigos primorosos, com belíssimas chagas,
vermelhas como cactus, ótimas para o estudo da gama inteira dos carmins e dos
lilases gangrenosos. Outros dotados de soberbas inchações lustrosas, nas quais
Zorn descobriria tons de ocres inéditos para a sua palheta. Além dos efeitos de
cor desses maravilhosos mendigos, os efeitos de expressão! Que riqueza!
Resignados uns, como felás do Cairo, exibindo elefantíases de entusiasmar;
outros em tal grau de penúria orgânica que o passante artista se detém, na esperança
do espetáculo raro de um estrebuchamento final, rico de convulsões, em pleno
sol.
Esta riqueza inaudita de
temas pictóricos constitui a grande riqueza de vosso país, e no dia em que for
conhecida lá fora, pela inteligente propaganda dos vossos cônsules, atrairá
para cá toda uma legião de pintores e escultores europeus.
E tudo isto vós o
conseguis com um insignificante dispêndio de níqueis sabiamente largados nas
mãos que se estendem!
O processo da
assistência ao inválido, que em má hora a Suécia adotou, deu cabo do mendigo
por lá, com grave dano do pitoresco das nossas ruas. O vosso processo do níquel
é inteligentíssimo. Mantém, conserva a enorme classe dos inválidos, não em
asilos, fora dos olhos do público, o que é contrário à estética, mas bem à mostra
do passante, estorvando-lhe a passagem, forçando-o a deleitar-se com o
pitoresco da miséria humana.
Sois grandemente sábios,
sem o saberdes. Sois uns inconscientes criadores de beleza, numa era em que a
organização social vai dando cabo da beleza do mundo. A desordem é condição da
beleza, e a bela desordem que noto em todas as vossas coisas, denuncia os dons
estéticos com que a natureza vos fadou. O regime de seleção às avessas adotado
pela vossa política, o empirismo dos vossos governos, a fabricação de leis
anuais sem o mínimo estudo das realidades, tudo isto é profundamente estético.
Vossos governos e vossas leis com muita sabedoria impedem que o Brasil vire uma
Suécia, uma Suíça, — ilhas de Calipso onde a perfeição orgânica cria o tédio e
mata o pitoresco.
Prevejo que o critério
da vossa elite dirigente vai conduzir-vos à hegemonia do pitoresco. Háveis de
derrotar Espanha, Portugal e Itália.
Haveis ainda de ser
a great attraction do turismo
universal, quando em consequência lógica da vossa orientação o Brasil se
transformar no Pátio dos Milagres da América, irmão daquele maravilhoso Pátio
dos Milagres que Victor Hugo descreve na Notre Dame de Paris. Esta perspectiva de tal modo me encanta que deliberei fixar
residência aqui e talvez até me naturalize. Porque, meu caro senhor, devo
dizer-lhe que sou um temperamento visceralmente artístico, desses que...
Neste ponto o meu sueco
interrompeu-se e, num enlevo d’alma, caiu em êxtase diante dum cul-de-jatte de terceira ordem que aos arrastos se
nos defrontara e me estendera a mão faminta de níqueis.
Um orgulho imenso
encheu-me a alma. Senti-me enfunado de radiantes ufanias patrióticas e tive um
dó imenso daquele desgraçado sueco, que para deleitar-se com um mau exemplar
de cul-de-jatte tinha de deixar a
sua terra e atravessar os mares.
— Isto não é nada,
disse-lhe eu com paternal superioridade. Temos coisa muito melhor. Temos
cinquenta mil morféticos admiráveis!
— Cinquenta mil?
exclamou o sueco num assombro, mordendo os lábios de inveja. Nós lá tínhamos
um, mas morreu...
Ri-me da pobreza da
Suécia e, num gesto a Cirano de Bergerac, dei ao cul-de-jatte um níquel novinho — o precioso níquel
com que, tão inteligentemente, fazemos as Suécias se curvarem ante a nossa
formidanda superioridade estética...
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In: Na Antevéspera
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)
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