5/23/2019

Monteiro Lobato: O pátio dos milagres (Ensaio)



O pátio dos milagres 

Há no mundo nações tão bem ordenadas, tão limpas de vida que se tornam insulsas e intelegrafáveis. Suécia, Noruega, Dinamarca; Holanda e Suíça (a lista não vai além) chegam à perfeição de impedir a permanência em seu território dos solícitos correspondentes da Havas, da United, da Associated Press. Proíbem-lhes o ingresso? Absolutamente não. Apenas lhes negam fatos telegrafáveis. Não há desastres, não há crimes, não há revoluções, não há guerras, não há sítios, não há golpes de estado, não há nada dessa pitoresca desordem da França, Itália, Portugal, Brasil e outros, eterna fonte dos telegramas que enriquecem as agências à custa da universal curiosidade.

A Suécia chegou à perfeição das colmeias. Nos bondes os passageiros depositam o níquel da passagem numa caixinha adequada. Nem cobradores, nem fiscais — e nunca um sueco lesou nenhuma empresa de tramway. Se porventura esquece em casa os níqueis, viaja de graça, mas no dia seguinte, ao tomar de novo o bonde, não esquece de pagar em dobro. A venda de jornais às esquinas é feita pelo mesmo processo. O freguês toma a folha que quer e deposita o preço. Se está sem miúdos, ele mesmo faz o troco. As moedas permanecem numa caixa aberta, à vista do público, sem que passe pela cabeça de ninguém a ideia absurda e antissueca de furtá-las.

Na Suíça deu-se há três anos um crime. Um russo, em trânsito por Lausanne, matou a outro russo por motivo de vingança política. O abalo foi medonho. Do Jungfrau à última vaca bernesa, a Suíça inteira fremiu de horror, e durante meses foi esse crime o tema de todas as conversas e de todos os espantos. Até hoje, quando quer um suíço referir-se a fatos do ano 1923, diz, ainda arrepiado: Foi no ano daquele crime...

Países assim têm o defeito gravíssimo da insipidez. Lembram a ilha da Perfeição, onde a deusa Calipso abrigou Ulisses e de tantas delícias o cercou que o mal acostumado grego deu de bocejar, saudoso da bela desordem de Ítaca.

Esta insulsez da ordem perene foi-me há dias confirmada por um turista sueco, que desceu do Arlanza para uma rápida inspeção à nossa cidade e acabou fixando residência aqui.

— Estou maravilhado! disse-me ele. Nunca supus que no mundo houvesse uma coisa (ele chama ao nosso país coisa) tão interessante e pitoresca! Começa pela mistura das raças. Nós lá somos vítimas da perfeição étnica. Todos os homens se parecem uns com os outros, todos regulam no porte, na cor dos olhos, no louro dos cabelos, no bem proporcionado dos membros. Ora isso, afinal, cansa, porque ver um é ver todos. Mas aqui, que maravilha! Os homens apresentam a gama inteira da somática humana. Há-os grandes, médios, pequenos e minúsculos. Há-os retos como cabos de vassoura, gordos como abóboras, magros como palitos, tortos como latas velhas, capengas, cambaios, corcundas, coxos, manetas. E de todas as cores, pretos, castanhos, achocolatados, aços, amarelos, ruivos, vermelhos, verdes e até brancos. Costumo ficar na rua Larga vendo o desfile do povo suburbano. Não há dois seres iguais e ainda não vi um com a forma humana clássica dos Apolos esculpidos na Grécia, ou dos jovens que passam pelas ruas de Estocolmo.

Isto, meu caro senhor, é uma pura maravilha para um viajante como eu, que corre mundo em procura do pitoresco ausente da terra natal. Somos na Suécia vítimas da ordem perfeita, ordem em todos os sentidos, inclusive a econômica. Esta chegou a tal ponto que até esse velho elemento estético, tão caro aos artistas, que é o clássico mendigo de rua, desapareceu dentre nós. Pintor sueco que se proponha pintar um quadro como O Piolhoso de Murilo, ou vai pintá-lo fora da Suécia, ou tem de camuflar de mendigo a um sadio mecânico aposentado de Trollhatan.

Aqui, entretanto, que riqueza de motivos pitorescos só no que diz respeito a admiráveis mendigo autênticos! Em plena Avenida, num esplêndido contraste com as montras cintilantes de joias e as damas que passam vestidas de todas as cores do íris e de todas as missangas de Paris, tenho visto exemplares que fariam fremir de entusiasmo o pincel do nosso grande André Zorn. Mendigos primorosos, com belíssimas chagas, vermelhas como cactus, ótimas para o estudo da gama inteira dos carmins e dos lilases gangrenosos. Outros dotados de soberbas inchações lustrosas, nas quais Zorn descobriria tons de ocres inéditos para a sua palheta. Além dos efeitos de cor desses maravilhosos mendigos, os efeitos de expressão! Que riqueza! Resignados uns, como felás do Cairo, exibindo elefantíases de entusiasmar; outros em tal grau de penúria orgânica que o passante artista se detém, na esperança do espetáculo raro de um estrebuchamento final, rico de convulsões, em pleno sol.

Esta riqueza inaudita de temas pictóricos constitui a grande riqueza de vosso país, e no dia em que for conhecida lá fora, pela inteligente propaganda dos vossos cônsules, atrairá para cá toda uma legião de pintores e escultores europeus.

E tudo isto vós o conseguis com um insignificante dispêndio de níqueis sabiamente largados nas mãos que se estendem!

O processo da assistência ao inválido, que em má hora a Suécia adotou, deu cabo do mendigo por lá, com grave dano do pitoresco das nossas ruas. O vosso processo do níquel é inteligentíssimo. Mantém, conserva a enorme classe dos inválidos, não em asilos, fora dos olhos do público, o que é contrário à estética, mas bem à mostra do passante, estorvando-lhe a passagem, forçando-o a deleitar-se com o pitoresco da miséria humana.

Sois grandemente sábios, sem o saberdes. Sois uns inconscientes criadores de beleza, numa era em que a organização social vai dando cabo da beleza do mundo. A desordem é condição da beleza, e a bela desordem que noto em todas as vossas coisas, denuncia os dons estéticos com que a natureza vos fadou. O regime de seleção às avessas adotado pela vossa política, o empirismo dos vossos governos, a fabricação de leis anuais sem o mínimo estudo das realidades, tudo isto é profundamente estético. Vossos governos e vossas leis com muita sabedoria impedem que o Brasil vire uma Suécia, uma Suíça, — ilhas de Calipso onde a perfeição orgânica cria o tédio e mata o pitoresco.

Prevejo que o critério da vossa elite dirigente vai conduzir-vos à hegemonia do pitoresco. Háveis de derrotar Espanha, Portugal e Itália.

Haveis ainda de ser a great attraction do turismo universal, quando em consequência lógica da vossa orientação o Brasil se transformar no Pátio dos Milagres da América, irmão daquele maravilhoso Pátio dos Milagres que Victor Hugo descreve na Notre Dame de Paris. Esta perspectiva de tal modo me encanta que deliberei fixar residência aqui e talvez até me naturalize. Porque, meu caro senhor, devo dizer-lhe que sou um temperamento visceralmente artístico, desses que...

Neste ponto o meu sueco interrompeu-se e, num enlevo d’alma, caiu em êxtase diante dum cul-de-jatte de terceira ordem que aos arrastos se nos defrontara e me estendera a mão faminta de níqueis.

Um orgulho imenso encheu-me a alma. Senti-me enfunado de radiantes ufanias patrióticas e tive um dó imenso daquele desgraçado sueco, que para deleitar-se com um mau exemplar de cul-de-jatte tinha de deixar a sua terra e atravessar os mares.

— Isto não é nada, disse-lhe eu com paternal superioridade. Temos coisa muito melhor. Temos cinquenta mil morféticos admiráveis!

— Cinquenta mil? exclamou o sueco num assombro, mordendo os lábios de inveja. Nós lá tínhamos um, mas morreu...

Ri-me da pobreza da Suécia e, num gesto a Cirano de Bergerac, dei ao cul-de-jatte um níquel novinho — o precioso níquel com que, tão inteligentemente, fazemos as Suécias se curvarem ante a nossa formidanda superioridade estética...


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In: Na Antevéspera
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)

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