O hipogrifo
No tempo em que havia
imaginação, era este mundo um esplendoroso jardim zoológico. Nas águas folgavam
ondinas, nereidas, sereias — umbigo acima mulher, umbigo abaixo peixe; nos
bosques, ninfas que Corot ainda alcançou ver; nos ares, silfos encantadores,
como o Ariel biografado por Shakespeare na Tempestade.
Além desta fauna
amabilíssima, regalo de vates bucólicos ou românticos, outra havia,
terrificante, composta de dragões flamívomos, hidras de sete cabeças, medusas
vipericapiladas, polifemos de um olho só, e que tais.
No Penedo da Lamúria
morava uma orca horrenda. Para que não assolasse as paragens circunvizinhas, os
solícitos piratas da ilha d’Ebuda todos os dias lhe serviam, à guisa de tributo
propiciatório, uma linda virgem nua. E viveria a orca a vida inteira sempre a
almoçar esses régios pedaços, se não se engasgasse certa vez com a formosíssima
Angélica, amada de Rolando.
Ariosto fez-se o fiel
cronista dessa era de maravilhas, no poema em que estudou a alienação mental do
conde Rolando, par de França e dono de uma espada cuja têmpera se perdeu, para
alívio do crânio dos mouros.
Narra-nos Ariosto
maravilhas sobre maravilhas — e era cidadão de muito conceito em Reggio para
que lhe duvidemos das afirmativas. A agapesada gente de hoje não entende
assim. Metida a cética, ignora ou ri-se de Ariosto como os incréus sorriem da
aparição de Jeová a Moisés numa touceira de sarça em fogo, ou da parada do sol
ao gesto do general israelita.
Em paz os homens de
má-fé, e vejamos como Ariosto nos conta do hipogrifo que Bradamante, a formosa
donzela guerreira, com os seus lindos olhos viu.
Essa belicosa dama,
revestida de cintilante armadura e montada em fogoso corcel, andava
peregrinando por montes e vales à procura de Rogério, seu amado, quando houve
por bem repousar os membros lassos numa estalagem das proximidades de Bordéus.
Albergou-se e, a recato, pôs-se a cismar no seu fadário estranho. Súbito lhe
chega aos ouvidos um inusitado rumor. Assusta-se, e exclama a correr para donde
vinha o estrépito:
— Que será isto, virgem
santíssima?
O estalajadeiro e toda a
família, uns à janela, outros fora de portas, lá estavam de olhos no céu,
pasmados, como se nele rabeasse um cometa.
O prodígio, entretanto
era outro — e incrível! Um grande corcel de asas fendia os céus, montado por um
cavaleiro de brilhante e luminosa armadura. Voava na direção do poente, onde
por fim desapareceu atrás das montanhas.
Contou então o
estalajadeiro que já vira aquele corcel voar muitas vezes, sempre encavalgado
pelo nigromante do castelo vizinho, o qual nele se elevava até às estrelas, ou
voava resvés do chão, raptando as mulheres bonitas da zona; disso vinha que as
míseras donzelas do país, quando formosas, cuidavam de ficar bem escondidas
enquanto fazia sol.
Era o hipogrifo,
impetuoso cavalo com cabeça e asas d’águia, que representou papel de vulto na
aviação da época e permitiu a Orlando salvar Angélica das garras da orca.
Os céticos negam tudo
isto — mas ninguém nega a vivacidade da cena descrita por Ariosto, e muito
menos eu, que vi reproduzir-se fielmente o quadro, na roça onde andei.
Certo dia, um vozear
estranho chamou-me à janela do casarão da fazenda. Homens e mulheres esparsos
pelo terreiro olhavam para cima como quem olha cometa. Olhei também e vi... o hipogrifo!
Era Edu que passava, a
mil metros de altura, na sua primeira viagem de São Paulo ao Rio, — feito de
alta monta na época.
O espetáculo constituía
novidade absoluta para os roceiros ingênuos. Aquele avejão, zumbidor qual
besouro, desnorteava-lhes a imaginativa.
Um mais fantasioso
sugeriu logo:
— Gavião-pato!...
— Daquele tamanho?
contraveio outro, que além de caçador de gaviões criava patos.
O je-sais-tout emendou:
— Gavião-rei, urubu-rei.
É assim qualquer coisa como o minhocão do Paraíba.
Edu riscava o espaço,
tal qual o hipogrifo de Ariosto, e breve escondeu-se atrás das montanhas,
deixando os pobres matutos a olharem-se uns para os outros com as mais assombradas
caras que ainda vi em vida minha.
Hoje está vulgarizado o hipogrifo
de hélice em vez de bico d’águia, e planos de tafetá em vez das asas de penas.
Seu zumbido já ergue para o ar somente metade dos narizes que lhe passeiam sob
o raio de ação, e um dia não erguerá nenhum. Voarão como os urubus, sem que os
pedestres lhes liguem maior nota que aos automóveis da rua.
Mas não é para dizer
isto que tantas linhas se traçaram. Quero frisar que os monstros de Ariosto
começam a voltar, embora mecânicos e despidos da velha poesia.
A orca têmo-la nos
submarinos. Não se alimenta de virgens, mas vem custando à humanidade um pesado
tributo de vidas masculinas.
O hipogrifo aí está,
pondo o Rio a algumas horas de Recife.
Os silfos do ar,
invisíveis, tão amigos de cantar e tanger o alaúde, a radiotelefonia os restaurou; e se não cantam
maviosos como os da ilha de Prospero, lá chegarão — no dia em que o último ressaibo
a gramofone for extirpado das radiolas.
Só os bosques permanecem
ermos de ninfas; ou tão amáveis criaturas se fizeram anofelinas ou as
anofelinas as expulsaram de lá.
Ninfas hoje só nas
avenidas, disfarçadas em mulheres modernas pelos costureiros inventivos. Dado,
porém, o progresso do nu, vitorioso já nos trololós do Glória, e quiçá um dia
também nas ruas, ninguém perca a esperança de ver restaurada na terra a fauna
inteira de Ariosto — para regalo de todos nós e reabilitação da memória de tão
insigne fantasista.
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In: Na Antevéspera
Atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)
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