O Drama do Brio
Estava de guarda no
quartel da Luz um soldado pernambucano de nome José Rodrigues Melo.
Era um homem. Embora
rude, ninguém no regimento o vencia em firmeza de caráter. Melo personificava o
brio militar — mais que isso, Melo personificava a dignidade humana.
Estava de guarda, embora
tivesse a mão direita enferma. Os pernambucanos são rijos, e um simples
ferimento não bastava para arredar aquele do serviço.
Começa aqui a tragédia
do Brio. O Brio o impediu de ir vadiar à enfermaria. O Brio iria inutilizá-lo
para sempre.
Passou por Melo um
oficial francês.
Nesse tempo São Paulo
vivia cheio de oficiais franceses, contratados para amestrar nossa gente na
arte de matar pela escola de Saint-Cyr. E como para bem ensinar a arte de bem
matar o primeiro passo é domesticar o aluno, os professores de França não
largavam o instrumento clássico da domesticação: o chicote. E ninguém lhes
fosse lembrar uma tal lei de 13 de Maio, etc., etc.; rir-se-iam com
superioridade metropolitana, silvando: Fí, donc!
Ao passar o francês,
nosso soldadinho pernambucano perfilou-se na continência do estilo. Acontece,
todavia, que isto de continência é a colocação do pronome dos militares — coisa
seríssima. Melo errou num pronome. Em vez de fazer a continência com a mão
direita, impedida pela enfermidade, fê-la com a esquerda sã.
Ai! O lambe-feras avança
para Melo e chicoteia-o impiedosamente na cara.
— Sale négre!
E a tragédia explode.
Tudo quanto havia em Melo de dignidade humana faz-se maremoto incoercível. Não
era mais um homem quem recebia a afronta, era a raça. Era essa coisa enorme e
brutal que se chama pátria e borbulha dentro do peito de certas criaturas sob
forma de sentimentos explosivos como a nitroglicerina.
As mãos de Melo
crisparam-se na Mauser... e lá partiu
a bala certeira que iria privar Damasco de mais um perito bombardeador.
Negrel morreu ao lado do
chicote infamante — e parece que o chicote em São Paulo morreu com Negrel.
Foi esse o drama.
Positivamente drama da raça. Drama da honra. Drama do brio. Drama da dignidade
humana.
Ia começar a comédia da
covardia.
Não houve em São Paulo
um nacional que não fremisse de entusiasmo diante do revide de Melo.
Minto. Houve doze homens
que destoaram do coro unânime. Eram homens que, chicoteados na cara, em vez de
reagir meteriam a cauda entre as pernas e iriam, ganindo, beijar as mãos do
lambe-feras. Nenhum deles tinha dentro de si a raça. Nenhum deles chegava a
homem; meros sub-homens à tout faire.
Pois a coincidência quis
que tal dúzia fosse constituir o conselho julgador do honroso crime.
Condenaram-no. E nada
mais lógico, nada mais canino do que essa condenação a trinta anos de prisão
celular infligida ao Brio. Condenaram-no só a trinta porque a lei não admitia
penas de cinquenta; nem permitia a aplicação das engenhosas torturas com que
Luiz XV, o rei Bien Aimé, durante um dia inteiro
divertiu Paris com o espantoso suplício de Damiens.
O crime de Melo era
gravíssimo. Era crime de lesa-galicidade. E como o medo à França fez calar a
imprensa, sofreando no nascedouro a onda de simpatia nacional, Melo foi
apodrecer em vida num cubículo penitenciário.
E lá vegeta há quinze
anos.
Nesse intervalo, quantos
criminosos repugnantes não obtiveram perdão? Quanto cangaceiro que mata pelo
prazer de matar não se gozou duma sólida impunidade? E também, quantos
marroquinos e quantos sírios não foram trucidados cientificamente pelos
franceses, por terem no peito o sentimento de raça que perdeu Melo?
Nossos “dúzias” perdoam
tudo menos a dignidade, e o ensino inoculado pela missão do chicote calou
fundo. Se lá na Síria os mestres bombardeiam os criminosos desse crime, aqui os
alunos os fazem apodrecer nos ergástulos.
Há dias um repórter
carioca, em visita à penitenciária de São Paulo, teve ocasião de falar com
Rodrigues Melo.
— Está arrependido do
que fez? perguntou-lhe.
— Não! retrucou
firmemente aquele brio de aço. E diga-me o senhor: se fosse iniquamente
chicoteado na cara por um estrangeiro só porque lhe fez continência com a mão
esquerda, visto ter a direita enferma, não faria a mesma coisa? Confesso que pratiquei
o crime fora de mim; mas a privação de sentidos não foi inventada para nós...
E suspirou com os olhos
brilhantes de lágrimas.
— Por que chora?
— Saudades de minha mãe,
uma pobre velhinha que vive a esperar por mim, lá no fundo de Pernambuco.
Oitenta e seis anos!... Vê-la-ei ainda?
Melo não se arrepende, e
é diante de firmeza assim que nos renasce a fé na raça.
O desfibramento atual
tem que ser passageiro. Eclipse momentâneo. Nem todos os Melos estão
encarcerados; há de havê-los soltos, e por escassa que seja a semente, a
espécie há de proliferar um dia.
O “não” de Melo ao
jornalista é sublime. Diz “não!” após quinze anos de cárcere. Dirá “não!” ao
cabo dos trinta anos da pena. E se no dia seguinte à soltura um francês o
chicotear de novo, a raça incoercível, transfeita em diamante dentro desse
homem, fá-lo-á matar de novo.
Os anos e as torturas
são impotentes para quebrar a dignidade em quem a recebeu do berço — como coisa
nenhuma a dará a quem dele saiu eunuco.
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In: Na Antevéspera
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)
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