Literatura de cárcere
De século em século
opera-se uma revisão nas ideias humanas e vai para o refugo muita coisa tida
antes como verdade absoluta. Hoje, por exemplo, temos como líquido que é
justiça pegar num homem, fazê-lo julgar por juízes e metê-lo por dez, vinte,
trinta anos num calabouço. A verdade de um século atrás era que isso se fazia
como castigo. Essa verdade foi para o refugo, substituída pela verdade de hoje:
não castigo, mas defesa social. A verdade futura será bem outra, visto como se
patenteiam dia a dia o inócuo desta defesa, o seu resquício de crueldade
medieval e a sua falta de correspondência com o grande ideal moderno que é
produzir.
Inócuo da defesa,
porque, cumprida a pena, o condenado se torna muito mais perigoso, graças à
maré de ódio que lhe encheu o peito. Cruel porque não há distinguir entre um
apodrecimento em vida e uma tortura da inquisição. Antieconômica porque retira
da produção uma unidade e fá-la peso morto, a cargo dos que produzem.
Para julgar o nosso
sistema de defesa social basta uma pergunta: a quem aproveita a reclusão dum
ser humano? À sociedade? Não, porque vai pesar sobre ela na sua categoria de
não-produtivo à força. À vítima, ou à família da vítima do ato delituoso? De
forma alguma. A si próprio? Não é matando o coração de um homem que o tornamos melhor
homem.
Não aproveita a ninguém;
no entanto, o peso tremendo da nossa infinita estupidez perpetua esse regime —
e agrava-o, hoje que de vasto hospital passou o Brasil a vasta masmorra.
Só em São Paulo há
qualquer coisa que denuncia inteligência e nobre compreensão do problema.
A penitenciária como
existe lá, amplíssima oficina de ótimo aparelhamento técnico, capaz de atenuar
o horror da reclusão pelo trabalho remunerativo, deixa-nos entrever quão
diferente será no futuro o regime penal. São Paulo já é século vinte; o Rio e o
resto do Brasil inda é Pina Manique puro.
Há dias, nesta coluna,
falei de Amador Santelmo, uma das vítimas da incompreensão reinante em matéria
penal. Referi-me a um seu livrinho que não terá nunca prêmio da Academia — mas
que comove estranhamente como expressão ingênua da dor dos triturados.
A reclusão é uma
singular reveladora da alma humana! Revela-a, sobretudo, a si própria. E
Santelmo, que, cá fora, livre, jamais teve olhos para uma mariposa, na prisão
enterneceu-se com uma, viu nela uma companheira, compreendeu um pouco do universo. Esta página sua
merece ser transcrita.
“Um companheiro de
infortúnio teve a delicada lembrança de mandar-me uma gentil mariposa dentro de
uma caixinha. Tirei-a da caixa e coloquei-a sobre uma toalha felpuda, na minha
cama, esperando que ela se fosse para sua casa, mas não foi.
Pareceu-me que não
gostava muito da toalha, porque passeava com dificuldade, embaraçando-se nos fios
crespos e arrastando sobre eles o seu vestido de noiva.
Abri então uma folha de
papel almaço, onde a botei a passear. Gostou, pois mostrou-se mais contente,
andando mais desembaraçada, sempre a arrastar o vestido branco, mas sem sair do
papel.
Horas passei assim,
vendo-a passear, esperando que ela fosse para sua casa, mas não ia.
Eu por um lado não
queria que ela se fosse; por outro queria, porque havia de ter alguém à sua
espera.
Vendo que Nívea (eu já a tinha batizado e foi sua
madrinha o retrato de uma pessoa que tinha comigo), vendo que Nívea não se ia
embora, julguei que tivesse fome e dei-lhe pão, porém ela não comeu. Dei-lhe
fruta, e também não provou. Não sei que é que comem estes bichinhos de Deus!
E assim passamos o dia.
Eu estava contente por ter uma companheira com quem conversar. E tão gentil!
Tinha o corpo bem feito e o vestido branco enfeitado de arminho.
Por que não se ia ela
embora, ver seus parentes ou filhos que a esperavam? Estaria zangadinha com o
marido?
Entretanto a noite
chegou sem eu dar por isso. A lâmpada do cubículo acendeu-se e a mariposa, a
gentil Nívea, agitou-se satisfeita, abriu as asas, sacudiu o vestido branco,
mostrando a graça do seu lindo corpo, e ergueu voo em direção à lâmpada. E
ficou num doido corrupio em redor da luz.
Que mistério terá a luz
que tanto atrai as mariposas? É como o sol, que atrai os mundos, os olhos, o
coração...”
Há alguma coisa neste
analfabeto que aprendeu a ler consigo no cárcere e saiu escritor.
Outra página
interessante é a que fala dum vigarista.
— “Estou preso por
passar o “conto” em quem o queria passar a terceiros.
Imagine que o otário comprou-me dez contos de notas falsas
por dois bons. Ora, eu que não quero “trabalhar” com “mixas”, e antes quero ser
pirotécnico ou fabricante de dinamite do que pegar em notas falsas, vendi-lhe,
em vez de notas, papel branco em pacos. Ele é que devia estar aqui, porque
queria notas falsas para passar. Quem é então o vigarista?
Mas nem por isso lhe
quero mal. Todos no mundo passamos o conto do vigário. Passa o conto o
negociante que vende um gênero por outro, o padre que reza sua missa, o doutor
que mata o doente, o marido que engana a mulher, a moça que engana os homens
com seios postiços, o jornal que mente, o cinema que faz reclame, o governo que
desgoverna.
E até Deus passa o conto
mostrando um céu azul, que não é azul, um mar verde, que não é verde, estrelas
que não são estrelas, a luz da lua que não tem luz, e até a vida, que é um
conto do vigário, pois não passa de um sonho, um pesadelo neste planeta de misérias.
Mas o caso típico do
conto é o conto do casamento. O Sr. vê uma mulher, gosta dela, namora, casa. Na
noite de núpcias já veem os dois o conto em que caíram, porque a mulher também
caiu no conto do homem. E quando isto não acontece, vem depois o conto do filho
adulterino.
Ouvi enervado o aranzel
filosófico do vigarista e depois perguntei:
— É também vigarista o
juiz que pune os vigaristas?
— E dos bons! O juiz é
um vigarista ilustre que a sociedade elegeu para passar o conto nos vigaristas
pequenos, que passam o conto nos vigaristas grandes...
Pouco a pouco foi-me ele
convencendo de que a vida é uma interminável cadeia de contos do vigário. Por
fim disse-lhe:
— Contudo o senhor vai
sofrer aqui as consequências do conto do juiz.
— Está enganado! respondeu-me.
O meu advogado, que é um vigarista insigne, vai passar o conto no juiz e eu
tenho que ser posto em liberdade pelo conto do habeas-corpus, que é o conto do vigário que a Lei passa na
Justiça...”
Para nós não é assim.
Mas para uma inteligência divina, bem pode ser que seja assim...
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In: Na Antevéspera
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)
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