Krishnamurti
As religiões
nascem, crescem, esclerosam-se e morrem. É ridículo dizer isto, porque o
próprio dos truísmos é se tornarem ridículos à força de evidência.
No entanto, ao nascerem,
tais truísmos provocam espanto e suscitam a mais cruel repulsa por parte das
verdades de cabelos brancos, bem instaladas no oficialismo.
Os exemplos clássicos
destas verdades que viram axiomas — ontem tímidas revoltosas, amanhã ferozes
legalistas, são também ridículos. Tornaram-se ridículos à força de repetição,
como acontece com as árias célebres, a “La donna é mobile”, por exemplo, que
não perdeu a beleza, mas cansou. Por isso deixo de citar o caso de Galileu às
voltas com a polícia censora da época, firmíssima na verdade oficial do sol em
rodopios à volta da terra.
Ora, pois, as religiões
nascem e como nascem, crescem, salvo quando nascem mortas. E, como crescem,
atingem a maturidade, encruam na arteriosclerose do oficialismo e acabam
agonizando às mãos de débeis religiões meninas.
Erro pensar que é a
ciência que mata uma religião. Só pode com ela, outra religião.
Um período da História
sobremodo interessante ao estudioso ocidental é o do choque entre o
cristianismo revoltoso e a legalidade pagã. Como abundam documentos que
refletem a mentalidade greco-romana durante o longo período do choque, fácil se
nos torna a apreensão do quadro.
Luciano de Samosata, por
exemplo, denuncia em inúmeros diálogos como estava combalida a crença nos
deuses olímpicos, um século antes de Cristo.
No “Júpiter-Trágico”
esse Voltaire sírio tem lanços de humor que lembram Mark-Twain ou Bernardo
Shaw.
Travara-se na terra, em
presença de numerosa assembleia, uma disputa entre o estoico Tímocles e o
epicurista Damis. O estoico defendia os deuses e Damis os negava.
A disputa correu
animadíssima e acabou interrompendo-se no meio para ser decidida no dia
seguinte. Como, entretanto, a assistência se retirasse inclinada para Damis, o
Olimpo assustou-se e Jove amarrou o burro. Vem Juno e indaga da causa da divina
zanga. Teria acaso a Terra partejado novos gigantes que, à imitação dos Titãs,
pretendessem escalar o céu?
— Nada disso, coisa
muito pior! diz Júpiter. Estão lá embaixo, os homens, travados numa disputa de
cujo desfecho depende a estabilidade do Olimpo. Se sai vencedor Damis, ai de
nós!...
O caso foi tido como dos
mais sérios, e Jove resolveu convocar todos os deuses para que, “debruçados na
amplidão”, acompanhassem os debates e “torcessem” pelo paladino da boa causa.
Assim se fez. Quando, porém,
os dois disputantes novamente se enfrentaram, um arrepio de pressentimento
perpassou, gélido, pela espinha de Júpiter.
— Tímocles parece-me
trêmulo e perturbado. Vai estragar tudo. Já vi pela cara que não pode medir-se
com Damis.
E os deuses, em desespero
de causa, põem-se a rezar pela vitória do campeão...
Começa a disputa.
Júpiter manda que as Horas arredem umas nuvens que lhe estão tapando a vista.
Trava-se o duelo de
argumentos. Damis leva o outro à parede, “dá-lhe na cabeça”, como se diria
hoje, e a assistência percebe que em poucos “rounds” estará Tímocles nocaute.
Em certo ponto o estoico
puxa um argumento espadagão: o fato de serem deístas todos os povos. Damis
responde com o antropomorfismo e toda a bicharia ou natureza deificada: no
Egito o boi, na Assíria a pomba, na Etiópia o dia, na Pérsia a água, na Pelúsia
a cebola, em outros países o gato, o íbis, o cinocéfalo, o crocodilo, etc.
O deus Momus dá um
aparte inquieto:
— Eu não disse, Júpiter,
que os homens ainda acabavam descobrindo isso?
Júpiter, jeitoso,
sossega-o:
— Tens razão, mas
havemos de dar um jeito no caso.
A causa dos deuses era
positivamente insustentável depois do rapto de Ganimedes e outros escândalos
olímpicos, e Tímocles, falto de argumentos, resolve fazer como os Tímocles de
todas as épocas: insultar o contendor e apedrejá-lo. E atira-lhe em rosto um
vocabulário muito nosso conhecido: infame, desenterrador de cadáveres, esterco
imundo, filho das ervas, adúltero, “cocu”, monstro de impudicícia, etc.
Os deuses regozijam-se
com a “derrota” de Damis; Júpiter, entretanto, cisma:
— É, mas eu preferia ter
do meu lado um Damis a dez mil apedrejadores...
Em toda a obra de
Luciano o que se vê é a inquietação dos deuses em face dos progressos do
epicurismo, isto é, do livre exame.
Estavam as coisas da
legalidade religiosa nesse pé quando irrompe a revolta de Cristo.
O choque foi tremendo e
a repressão feroz. Mas se a repressão esmaga o que resiste, nada pode contra o
que não resiste. É o caso da bala que espedaça a pedra, mas morre de encontro
ao saco cheio de paina.
A religião revoltosa
venceu, entronizou-se, fez-se legalidade, assumiu o cetro de única verdadeira e
passou com o tempo de ingênua menina a moça belicosa, e de moça a matrona
inimiga de novidades. Por estas alturas é que costuma sobrevir a arteriosclerose.
Os músculos emperram, as articulações endurecem, as veias calcificam-se. Em
matéria de religião isto equivale a dizer que a religião se “igrejifica”, e ao
invés de convencer acha mais cômodo impor uma rígida disciplina partidária. É a
fase do Crê imperativo e absoluto, prenúncio de que o terreno está apto para o
advento de uma religião nova.
Assistimos hoje ao belo
fenômeno do choque de uma religião velha com uma religião nascente, em estado
de nebulosa ainda, muito vaga e tateante, mas perfeitamente perceptível em suas
linhas gerais. É o espiritismo.
Ninguém mais de boa fé,
nem sequer a ciência positiva, nega as manifestações do que Crooks chama “força
psíquica”. E como tudo leva a crer que essa força cresce na humanidade e cada
dia que se passa mais amplia as suas manifestações, o homem volta-se para ela e
inconscientemente a vai ordenando em religião.
Surgem “verdades”,
cristalizam-se dogmas, uma moral viva e praticante vai-se codificando enquanto
cresce prodigiosamente o número dos adeptos. Inutilmente a religião velha
guerreia a nova, e de todos os seus baluartes lhe despeja em cima obuses
anatematizantes. Inutilmente a ciência positiva, cansada de negar os fenômenos,
resolve-se a estudá-los declarando de antemão que nada há sobrenatural nesse
psiquismo.
A religião nova, em
estado cósmico, segue o seu curso, indiferente à negação ou à análise. Já tem
fanáticos, e terá mártires se a antagonista conseguir reacender suas fogueiras
depuradoras.
Depois do espantoso
abalo mental que sofreu o mundo com a guerra, e por influxo da formidável
injeção de espíritos frescos com que a hecatombe enriqueceu o intermúndio
astral, o espiritismo ganhou um avanço enorme.
Reflexo disso temos na
imprensa. Todos os jornais abrem seções permanente às coisas do espiritismo, ao
lado das seções consagradas à religião velha.
E os que o não fizeram
ainda fá-lo-ão amanhã, por injunções da clientela. Editores surgem,
especializados em livros espíritas — e prosperam grandemente, num país de
editores ou falidos ou queixosos. Grandes nomes nas letras e nas ciências
passam-se com estrondo para os novos arraiais. O espiritismo já não é um
riacho. Tem tudo da onda que rola.
Para os sectários da
religião anciã é isso um mal horrível. Para o filósofo não é bem nem mal. É
apenas um fato. E um fato muito lógico do espírito humano.
Que é que determina o
surto de uma religião? A aflição humana. A pobre humanidade sofredora — e sofre
99% da humanidade — para alívio dos seus males, apela para o céu. As formas
desse apelo chamam-se religiões, e perduram enquanto funcionam como bálsamo
minorador da humana angústia.
Quando deixam de o
fazer, os sofredores, cheios de inquietação, agitam-se em procura de uma forma
nova. E esta mata aquela.
Estamos em pleno período
de entrechoque de duas formas de apelo ao incognoscível. Quanto tempo durará
ele? Cem, duzentos anos? O futuro o dirá. O presente só diz que a luta está
travada.
E que diz o passado, por
meio de suas férreas lições? Diz que sempre vence a forma que “promete mais”.
Ora, uma nos deu a imortalidade da alma, com o paraíso para a alma dos bons
legalistas e o inferno para a oposição. A outra dá-nos o paraíso perto de nós;
deixa-nos as almas dos entes queridos ao alcance do nosso espírito; podemos
ouvi-las, receber seus conselhos, vê-las em certos casos. Não é isso o “mais”
que vai decidir da vitória? Foi muito sabermos que as almas dos mortos não
acabavam com o corpo; mas é muitíssimo tê-las à mão, consultáveis e manejáveis.
O homem não se conforma
com a morte. Teima em não morrer. Aferra-se a todos os meios de sobrevivência,
inclusive a imortalidade acadêmica. Mas já se não contenta com a imortalidade
dogmática, sem prova provada. O espiritismo será a religião de amanhã porque
“prova” a sobrevivência.
E tudo se precipita, no
choque entre as duas religiões, para uma batalha de Waterloo, das decisivas.
No fundo da Índia,
eterno ninho de religiões, um messias vem sendo criado a preceito para o grande
embate. Iniciou-o Annie Besant, essa mulher-força, talvez a que mais tem influenciado
cérebros de quantas mulheres apareceram no mundo a partir de Eva.
Chama-se Krishnamurti, o
eleito da luz nova, e seu campo de ação vai ser imenso; abrangerá desta vez
todo o mundo budista e todo o mundo cristão.
A moral da religião
nova, provisoriamente denominada espírita, participará das duas mais belas
morais existentes, a de Buda e a de Jesus, ecletismo que a fará superior a
ambas.
Quem viver verá... e
verá um dia o Krishnamurtismo vitorioso esclerosar-se em igreja, e por sua vez
morrer contrabatido por uma religião que ainda prometa mais — e só poderá ser a
que prometa a supressão da morte.
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In: Na Antevéspera
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)
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