5/24/2019

Monteiro Lobato: Herói Nacional (Ensaio)


Herói Nacional

É uma grande lição para os escritores o fato de só sobreviverem os livros vividos. E são raros, porque os homens que vivem não têm tempo de escrever e os que escrevem profissionalmente não vivem. Poderá chamar-se vida ao marasmo do escritor sempre metido entre quatro paredes, a ler o que os outros escreveram e sem ânimo, ou sem jeito, ou sem oportunidade, ou sem temperamento de viver a crueza e a violência da vida? Eles apenas imaginam a vida, e na pintura duma floresta ou dum tipo não conseguem esconder a imitação inconsciente que em sua arte substitui a criação.

Daniel Defoe escreveu centenas de livros. Um só nasceu vivo, e vive ainda hoje, e viverá sempre, Robinson Crusoé, porque foi tomado da boca de um marujo que realmente naufragara e vivera sozinho numa ilha deserta.

Prevost também os escreveu às dúzias, mas só a história de Manon Lescaut vive e viverá eternamente, porque só nela a vida estua e palpita como um coração ofegante.

O valor de Kipling, de Conrad, de Jack London está na intensidade e na variedade de vida que esses homens viveram.

Não há em seus livros cena ou paisagem descrita que não ressalte como coisa vista e vivida.

E no caso dos livros vividos pouco importa que os autores tenham sido escritores; a vida interessa tanto à humanidade que ela tudo perdoa a uma obra vivida. Venha sem forma, venha bárbara, grosseira, incompleta, ao avesso de todos os cânones da arte. Se é obra de vida, viverá.

Isto sucedeu ao livro de Hans Staden, publicado há 369 anos em Marpurgo, livro onde relata aos povos atônitos o seu cativeiro entre os canibais de um país recém descoberto à curiosidade europeia, o Brasil. As façanhas dos truculentos Tupinambás, sua avidez pela carne humana, seus usos e costumes, tudo interessava grandemente pela novidade — e como a narrativa era feita ao vivo a obra teve grande público e veio pelo tempo a fora, a propagar-se em traduções e edições sucessivas.

Hoje, quase quatro séculos depois, o livro interessa da mesma maneira, não já ao curioso de novidades, mas ao curioso do passado. Os tupinambás passaram; o invasor luso, que começava a chegar no tempo de Staden, ganhou a partida e destruiu esse ramo da raça vermelha. Já não existem nem as ossadas dos heroicos aborígenes que defenderam palmo a palmo a terra natal, como hoje os rifenhos defendem a sua. Tudo passou. Só não passa o livro de Staden, que fixou um momento da vida daqueles heroicos selvícolas que morreram, mas não se dobraram ao jugo dos roubadores da sua terra. E é nesse livro, o primeiro publicado sobre nosso país, que hoje vamos buscar a emoção preciosa do contato inicial com a terra virgem.

O curioso é que tal livro não interessa a nós apenas. Se aqui as edições se sucedem e a obra dia a dia mais se vulgariza, começando já a penetrar nas escolas, no velho mundo se dá outro tanto. A estudiosa Alemanha, que mesmo ferida a fundo pelo maior dos desastres não abandona o pendor pela cultura que há de fazê-la vitoriosa amanhã, não perde de vista o compatriota rude que há quase quatro séculos veio naufragar em nossas plagas, e entre nossos índios nus nu viveu oito meses de mortal agonia.

Dirigida pelo Dr. Richard N. Wagner, de Frankfurt, acaba de sair uma nova e primorosa edição da obra de Staden, reproduzida fotograficamente da primeira edição de Marpurgo, dada em 1556.

Se para a Alemanha Staden inda é reeditável quase quatrocentos anos depois da sua tragédia, que não é ele para nós, cuja terra e gente em seus primórdios só em suas palavras se retratam com “a vivacidade da vida?”

Em Staden desenha-se o tipo de Cunhambebe, terrível antropófago e implacável inimigo do invasor, dos quais comia com avidez quantos encontrasse, apesar da má qualidade da carne.

Comia-os por vingança, com o prazer com que um rifenho ou um sírio deveria comer um francês. Há de ser uma delícia trincar o coração dum roubador que nos vem tirar tudo, a terra e a vida.

Cunhambebe foi um guerreiro notável. Suas arremetidas contra os lusos jamais falharam e, embora o regime de cacicado não permitisse entre nossos índios o surto de um chefe supremo, correspondente ao rei europeu, ele caminhava para isso em virtude do sucesso crescente das suas armas.

Já era obedecido pelos morubixabas seus iguais e acabaria impondo-se a todos e dirigindo-os, se não tombasse em plena mocidade, vítima duma razia da varíola.

Os nossos poetas não souberam ver nele o que ele realmente é: o herói nacional, o Vercingetorix brasílio, o Cid vermelho, o Armínio que de dentro das florestas investia contra os lusos e os desbaratava.

Faltou a Cunhambebe um pouco mais de vida; aliara-se aos franceses de Villegaignon, receberia deles conhecimentos táticos indispensáveis para contrabater a tática do invasor, e como possuía a seu mando gente guerreira da mais decidida é provável que, se não o vencesse a varíola, vencesse ele aos conquistadores, mudando assim os destinos da nossa terra e raça.

O melhor retrato de Cunhambebe quem no-lo dá é Staden, na anotação da entrevista que com ele teve. O grande cacique perguntou-lhe que ideia faziam os “peros” da sua atividade.

— Falam muito de ti e das guerras que lhes moves, e por isso erguem um forte na Bertioga.

— Hei de caçá-los a todos, como caçamos a ti no mato, disse com arrogância o índio.

Não pôde realizar a façanha, vencido que foi pelas bexigas; mas deixou um nome que infundia terror e que vive e viverá sempre graças ao livro de Staden.

A Armínio, o destroçador das legiões de Varo, venceu a traição dos seus pares.

A Cunhambebe venceu a fatalidade. Mas não vemos em que não mereça Cunhambebe ir para a plana dos Armínios. Ambos consagraram-se a um ideal supremo: a defesa da terra natal.

E acresce que ao nosso herói cabe mais uma credencial a favor: comia e digeria os inimigos para que nem a terra se contaminasse com os seus cadáveres...

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In: Na Antevéspera
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)

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