Herói Nacional
É uma grande lição para
os escritores o fato de só sobreviverem os livros vividos. E são raros, porque
os homens que vivem não têm tempo de escrever e os que escrevem
profissionalmente não vivem. Poderá chamar-se vida ao marasmo do escritor
sempre metido entre quatro paredes, a ler o que os outros escreveram e sem
ânimo, ou sem jeito, ou sem oportunidade, ou sem temperamento de viver a crueza
e a violência da vida? Eles apenas imaginam a vida, e na pintura duma floresta
ou dum tipo não conseguem esconder a imitação inconsciente que em sua arte
substitui a criação.
Daniel Defoe escreveu
centenas de livros. Um só nasceu vivo, e vive ainda hoje, e viverá sempre,
Robinson Crusoé, porque foi tomado da boca de um marujo que realmente
naufragara e vivera sozinho numa ilha deserta.
Prevost também os
escreveu às dúzias, mas só a história de Manon Lescaut vive e viverá
eternamente, porque só nela a vida estua e palpita como um coração ofegante.
O valor de Kipling, de
Conrad, de Jack London está na intensidade e na variedade de vida que esses
homens viveram.
Não há em seus livros
cena ou paisagem descrita que não ressalte como coisa vista e vivida.
E no caso dos livros
vividos pouco importa que os autores tenham sido escritores; a vida interessa
tanto à humanidade que ela tudo perdoa a uma obra vivida. Venha sem forma,
venha bárbara, grosseira, incompleta, ao avesso de todos os cânones da arte. Se
é obra de vida, viverá.
Isto sucedeu ao livro de
Hans Staden, publicado há 369 anos em Marpurgo, livro onde relata aos povos
atônitos o seu cativeiro entre os canibais de um país recém descoberto à
curiosidade europeia, o Brasil. As façanhas dos truculentos Tupinambás, sua
avidez pela carne humana, seus usos e costumes, tudo interessava grandemente
pela novidade — e como a narrativa era feita ao vivo a obra teve grande público
e veio pelo tempo a fora, a propagar-se em traduções e edições sucessivas.
Hoje, quase quatro
séculos depois, o livro interessa da mesma maneira, não já ao curioso de
novidades, mas ao curioso do passado. Os tupinambás passaram; o invasor luso,
que começava a chegar no tempo de Staden, ganhou a partida e destruiu esse ramo
da raça vermelha. Já não existem nem as ossadas dos heroicos aborígenes que
defenderam palmo a palmo a terra natal, como hoje os rifenhos defendem a sua. Tudo
passou. Só não passa o livro de Staden, que fixou um momento da vida daqueles
heroicos selvícolas que morreram, mas não se dobraram ao jugo dos roubadores da
sua terra. E é nesse livro, o primeiro publicado sobre nosso país, que hoje
vamos buscar a emoção preciosa do contato inicial com a terra virgem.
O curioso é que tal
livro não interessa a nós apenas. Se aqui as edições se sucedem e a obra dia a
dia mais se vulgariza, começando já a penetrar nas escolas, no velho mundo se
dá outro tanto. A estudiosa Alemanha, que mesmo ferida a fundo pelo maior dos
desastres não abandona o pendor pela cultura que há de fazê-la vitoriosa
amanhã, não perde de vista o compatriota rude que há quase quatro séculos veio
naufragar em nossas plagas, e entre nossos índios nus nu viveu oito meses de
mortal agonia.
Dirigida pelo Dr.
Richard N. Wagner, de Frankfurt, acaba de sair uma nova e primorosa edição da
obra de Staden, reproduzida fotograficamente da primeira edição de Marpurgo,
dada em 1556.
Se para a Alemanha
Staden inda é reeditável quase quatrocentos anos depois da sua tragédia, que
não é ele para nós, cuja terra e gente em seus primórdios só em suas palavras
se retratam com “a vivacidade da vida?”
Em Staden desenha-se o
tipo de Cunhambebe, terrível antropófago e implacável inimigo do invasor, dos
quais comia com avidez quantos encontrasse, apesar da má qualidade da carne.
Comia-os por vingança,
com o prazer com que um rifenho ou um sírio deveria comer um francês. Há de ser
uma delícia trincar o coração dum roubador que nos vem tirar tudo, a terra e a
vida.
Cunhambebe foi um
guerreiro notável. Suas arremetidas contra os lusos jamais falharam e, embora o
regime de cacicado não permitisse entre nossos índios o surto de um chefe
supremo, correspondente ao rei europeu, ele caminhava para isso em virtude do
sucesso crescente das suas armas.
Já era obedecido pelos
morubixabas seus iguais e acabaria impondo-se a todos e dirigindo-os, se não
tombasse em plena mocidade, vítima duma razia da varíola.
Os nossos poetas não
souberam ver nele o que ele realmente é: o herói nacional, o Vercingetorix brasílio,
o Cid vermelho, o Armínio que de dentro das florestas investia contra os lusos
e os desbaratava.
Faltou a Cunhambebe um
pouco mais de vida; aliara-se aos franceses de Villegaignon, receberia deles
conhecimentos táticos indispensáveis para contrabater a tática do invasor, e
como possuía a seu mando gente guerreira da mais decidida é provável que, se
não o vencesse a varíola, vencesse ele aos conquistadores, mudando assim os
destinos da nossa terra e raça.
O melhor retrato de
Cunhambebe quem no-lo dá é Staden, na anotação da entrevista que com ele teve.
O grande cacique perguntou-lhe que ideia faziam os “peros” da sua atividade.
— Falam muito de ti e
das guerras que lhes moves, e por isso erguem um forte na Bertioga.
— Hei de caçá-los a
todos, como caçamos a ti no mato, disse com arrogância o índio.
Não pôde realizar a
façanha, vencido que foi pelas bexigas; mas deixou um nome que infundia terror
e que vive e viverá sempre graças ao livro de Staden.
A Armínio, o destroçador
das legiões de Varo, venceu a traição dos seus pares.
A Cunhambebe venceu a
fatalidade. Mas não vemos em que não mereça Cunhambebe ir para a plana dos Armínios.
Ambos consagraram-se a um ideal supremo: a defesa da terra natal.
E acresce que ao nosso
herói cabe mais uma credencial a favor: comia e digeria os inimigos para que
nem a terra se contaminasse com os seus cadáveres...
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In: Na Antevéspera
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)
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