Forças novas
Vem de São Paulo um
livro que vale pela mais pura revelação artística destes últimos tempos. O Estrangeiro, de Plínio Salgado. É
menos que um romance. Dá a impressão duma grande obra cíclica, ao molde da Comédia Humana, de Balzac; qualquer
coisa como notas estenografadas com mão febril para ulterior desenvolvimento. E
talvez por isso seja tão forte, tão nova a impressão que causa. A mesma que
causaria a Comédia Humana se do estado de diluição analítica passasse ao de
concentração sintética num só volume.
Plínio Salgado consegue
o milagre de abarcar todo o fenômeno paulista, o mais complexo do Brasil,
talvez um dos mais curiosos do mundo inteiro, metendo-o num quadro panorâmico
de pintor impressionista.
Que formidável steeple-chase é São Paulo! Confluem para ele não só
as incoercíveis energias do homem que arregaça as mangas na Itália, na Siria,
na Alemanha, na Rússia, no inferno e vem para a América vencer, como os
elementos mais eugênicos de todos os Estados do Brasil. E referve a curée da terra roxa, em torno do Café,
ouro-fênix de eterno rebrotar. O atropelado rush ao Klondike repete-se. Faca nos dentes,
músculos retesados e um grito só: Dinheiro!
Essa onda ádvena,
arreitada de ambição, choca-se com os primeiros ocupantes, os desbravadores já
vitoriosos, e deflagra o drama do struggle que Plínio Salgado traceja a espatuladas fulgurantes, com
nababesco desperdício de tintas raras. E, como sempre, vence o mais forte.
Nos Mondolfis descreve
Salgado o ciclo ascendente dos colonos de boa cabeça e rijos no trabalho. Com
rapidez passam da Hospedaria dos Imigrantes à riqueza e à direção política.
Formam o amanhã de São Paulo.
Ao lado deles, ciclo
descendente, os Pantojos, família antiga mas já dessorada das boas energias
vitais, morrem na curva da parábola. Pantojo vende aos Mondolfis suas terras e
vai para São Paulo esbanjar em farras o dinheiro. Morre na penúria, com os
filhos já a se diluírem na massa anônima dos vencidos.
Zé Candinho, caboclo
rijo de cerne, simboliza a velha guarda que se retira para o sertão mas não se
rende. Vai continuar a obra dos seus maiores, neobandeirante que é, violador
nato de terras virgens.
O professor Juvêncio
resiste crispado no seu nacionalismo de raciocínio, mas vai sendo posto de
banda pelo terrível parigato, como voz de eco impossível na algazarra da
refrega.
O major Feliciano
representa a política vitoriosa, safadíssima, toda em resumo no “vencer para
gozar”.
Eugênio Fortes, o poeta,
figura o intelectualismo doentio, sem forças para a violência da ação.
Contempla e comenta, mas de palanque.
Ivan, um russo,
constitui a figura central do livro. “Síntese de todos os personagens (diz o
autor no prefácio onde esquematiza a obra), consciência de todos os males. Ação
norteada por um realismo a priori, anulado por ceticismos cruéis em face do utilitarismo ambiente e do
preconceito esmagador. Pletora de personalidades contrastantes e incapazes”.
Mas de nada valeria o
belo esquema prefacial se o autor não introvertesse na realização da obra uma
onda revolta de talento, e não a fizesse exatamente como fez, numa desordem
procurada e sem preocupação de forma. De tontura em tontura segue o leitor pelo
livro a dentro, empolgado pela força do estilo, que é única e sem rival entre
nós. Quadros há pintados como os pintaria Júpiter — a coriscos. A outros esboça
o autor com tintas novas, inéditas na palheta acadêmica, audaciosíssimas.
Um chá dançante: “Na
nuvem dourada do jazz, corpos brancos e
macios enroscavam-se na empernada delícia das mornas chamadas jeitosas e
discretas. Os róseos lábios entreabertos e os olhos de ternura molhada
adivinhavam premidas puberdades.
Mas os chás-dançantes,
em geral, eram em benefício de Santa Terezinha de Jesus”...
Mais uma transcrição que
dê medida do seu impressionismo. Juvêncio, o exasperado nacionalista, vai com
seus alunos em excursão ao salto do Avanhandava e leva consigo os três
papagaios que dera de presente a Carmine Mondolfi e que tomara de novo. Que
tomara porque tinham as aves aprendido o hino fascista e outras italianidades.
Queria, dentro da natureza selvagem, restaurar a brasilidade dos papagaios.
— “Vou curá-los no
sertão”.
Mas foi inútil...
Uns caboclos de Santa
Bárbara acercaram-se, curiosos.
Os fords pinoteavam como cabritos na estrada pedrenta que furava a
mata-virgem.
O Tietê tombou, de
chofre, com ribombo e estilhas. Catadupa de ouro líquido. Piscina larga de
muros a pique. E os papagaios de Carmine gritavam, roucos:
— Giovinezza, giovinezza, primavera di belezza!
Uma grande arara
gargalhou gostosa no alto de um ipê. Juvêncio, de pé sobre a rocha, exclamou:
— Quem ri desta
cachoeira? E voltando-se para os discípulos e caipiras amontoados:
— Vamos! É algum de
vocês capaz de rir-se desta cachoeira?
E explicou:
— Esta queda d’água
poderia fornecer força a muitas cidades, mover usinas, iluminar. Assim é o
homem da nossa terra. No litoral desmancha-se em arroio, mas aqui é bruto e
forte.
Agarrou então os
papagaios — giovinezza!
giovinezza! — e um por um os foi estrangulando e lançando à onda brava da
catadupa. — Indignos todos os seres que falam como papagaios, sem pôr nas
palavras a força e o calor da Terra! Indignos os homens que falam com os lábios
e acabam transformando-se na insensibilidade dos fonógrafos!”
Todo o livro de Plínio
Salgado é uma inaudita riqueza de novidades bárbaras, sem metro, sem verniz,
sem lixa acadêmica — só força, a força pura inda não enfiada em fios de cobre
das grandes cataratas brutas.
Não cabe nesta página o
muito que há a dizer de livro tão forte e novo.
Nela fique, pois, apenas
um brado de entusiasmo pelo “algo nuevo” que vem de revelar-se ao país. Já
tardava que São Paulo, terra de prodígios, desse da sua uberdade mental tão
saboroso fruto. Plínio Salgado é uma força nova com a qual o país tem que
contar.
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In: Na Antevéspera
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)
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