A feminina
Não pode ser mais feliz,
com este calor, a ideia da fundação duma academia feminina de letras. Já que a
masculina, contrariando a opinião unânime dos fisiologistas, embirra no erro de
dar sexo à inteligência não admitindo em seu seio mulheres, lógico se torna o
revide da saia, o qual, para ser completo, devia ainda expressar-se à porta numa
tabuleta de moer: homem aqui não entra.
Resta agora que o novo
grêmio se organize por moldes autônomos, libérrimos, que deem boa medida da
invenção guanabarina.
Para isto faz-se mister
que as fundadoras antes de mais nada se esclareçam no relativo ao que é, foi e
poderá vir a ser uma academia, coisa na aparência fácil, mas na realidade
dificílima. Tão difícil, que um mesmo homem as define pela tabela A, enquanto
as namora, e pela tabela Z, depois que as possui.
Ao caso não servem
definições masculinas; as fundadoras hão de consultar as femininas, entre as
quais ressalta a de Mme. de Linange.
Disse esta aguda Madame:
Academia é uma sociedade cômica onde se guarda o sério.
Pergunta-se:
conformar-se-ão nossas damas de letras com a rigidez de tal programa? Terão a
linda coragem, não digo de ser cômicas, o que seria lamentável, mas de guardar
o sério?
Parece-nos difícil. Na
fotografia do grupo das fundadoras, publicada pelos jornais, uma há que ri — e
ri lindamente.
Vemos nisso um vício de
constituição. Riso intestino, assim de começo, lembra cavalo de Troia dentro da
Praça — e a sombra de Príamo poderá dizer como são perigosos tais presentes de
grego!
Tudo muda, porém, se o
riso fica de fora. É neste caso inócuo, pois não consta que riso algum, amarelo
ou rabelesiano, jamais haja morto nenhum acadêmico.
Se existissem entre nós
editoras, fora lógica a esperança de uma Mecenas, que à vara mágica dum legado
resolvesse para sempre a questão.
Não consta que as haja,
e fora daí não parece possível que venha herança.
É verdade que em França
já houve um precedente.
Clemência Isaura,
formosa dama de Toulouse, tomou-se de singular paixão pela Academia dos Jogos
Florais, e vendo que por escassez de fundos a olorosa instituição definhava,
teve a ideia feliz de legar-lhe sua fortuna.
Tudo mudou, como aqui.
Foi um derrame de primavera no esfaimado inverno da academia moribunda.
Restaurou-se incontinenti o brilho da festa anual em que, como prêmios às
melhores flores poéticas apresentadas, o vencedor recebia uma violeta de ouro.
Que mimo! Em vez de
prosaicos prêmios em vil papel moeda, uma violetinha de ouro!
A renda proporcionada
pela interessante Clemência possibilizou a criação de novos prêmios: uma
sempre-viva, para as odes; uma eglantina, para as charadas; um amor-perfeito, para
os acrósticos; um lírio, para os poemas — tudo de ouro, com exceção do lírio,
que seria de prata dourada. Larousse não o diz, mas está no caráter francês. O
lírio é flor muito grande para ser reproduzida em ouro...
Essa Clemência teve
estátua no salão nobre do Trianon de Toulouse, estátua que os “maitres és” jogos florais, no 3 de maio de cada ano,
revestiam de flores e diante da qual um deles, emergindo de enorme corbelha de
rosas, fazia o panegírico da padroeira.
Há que notar aqui a
gratidão dessa gente. Gozavam-se do dinheiro de Clemência, mas não deixavam
passar ano sem festa ditirâmbica em sua honra.
E como apesar de tudo
inda sobrasse dinheiro, a academia floral agregou às festas simbólicas
banquetes lautíssimos. Banquetes que degeneraram em orgia e fizeram intervir,
com denúncia ao rei, um marquês de Maricá da época (não ganhara violetinha, com
certeza...).
O qual rei, abespinhado,
restabeleceu policialmente o sério próprio de academias inda que florais.
Nutrirá esperanças duma
Clemência Isaura a nova Academia Feminina? Não estará acaso convicta de que sem
fundos não é possível viver decente nesta era mais que nunca idólatra do Boi de
Ouro, que ingenuamente Moisés abateu no deserto?
Outro ponto a estudar é
o sistema eletivo, ou, melhor, o critério da escolha. Dada a notória
implacabilidade da morte para com os imortais, terão nossas acadêmicas de
reunir-se várias vezes ao ano a fim de completar a equipe desfalcada. E surge o
problema tremendo: qual o critério da escolha?
Ponto melindroso, tanto
varia o critério humano na apreciação dos valores exorbitantes ao quadro
métrico decimal.
Entre os inúmeros
existentes há um, o de Guizot, que se revela profundamente sábio (da boa
sabedoria, a pragmática!).
Perguntaram-lhe se
votava em N. N.
— Sim, respondeu o
acadêmico que apesar de ex-ministro tinha sal; dar-lhe-ei meu voto porque N. N.
possui todas as qualidades dum perfeito acadêmico. Veste-se bem, escova os
dentes, é polido, condecorado e não consta que tenha nenhuma opinião. É verdade
que publicou umas obras... Mas, que querem vocês? Não há ninguém perfeito...
Sob forma de blague há no critério de Guizot uma altíssima
sabedoria. O fim último dum grêmio, de parte as belas palavras do programa, é
um viver amável em boa sociedade. Erra, pois, quem atende mais à obra do
candidato do que ao seu feitio social. Obra vale para o uso externo;
internamente a amenidade do convívio só exige os formosos dotes do N. N. de
Guizot.
Arquitetada nestas
bases, a nova academia terá vida longa e amena. Nossas damas se reunirão todas
as semanas para conversar sobre modas, fatos sociais, casamentos, divórcios,
etc., isto antes da sessão. Durante a sessão uma lerá versos de poetisas
esquecidas, como a Nísia Floresta; outra dissertará sobre o absurdo do sapato
das chinesas; outra deitará apóstrofes fulminantes contra o tráfico das
brancas; outra provará que a inteligência humana não tem sexo.
Finda a assembleia irão
todas para casa, muito contentes da vida, ansiosas por lerem o compte-rendu da festa nos jornais do dia seguinte.
E a harmonia do universo
em nada se perturbará. Nísia Floresta continuará esquecida; os proxenetas
continuarão a escravizar as brancas; as chinesas continuarão a torturar os
horrendos pedúnculos e a inteligência humana continuará dividida em dois sexos,
o masculino que leva Newton a descobrir a lei da gravitação e o feminino, que
nos leva a fazer asneiras.
— Ou a escrevê-las...
dirá mordendo os lábios dona Mercedes Dantas.
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In: Na Antevéspera
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)
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