Fala Jove
Só ele tinha forças para
propelir o homem ousado que, em pequenas gamelas flutuantes, com um pedaço de
lona espetado em espeques, se atirava à aventura sobre o dorso histérico dos
oceanos.
E nasceu a assombrosa
epopeia da navegação — coisa linda dita assim com galanice de retórica, mas de
inenarrável travor para os que lhe padeciam as torturas.
Depois veio Fulton. As
gamelas de pau viraram marmitas de ferro, dotadas da astuciosa máquina que
reduz a água a vapor e fá-lo voltear a hélice imensa no “undoso elemento”, como
casacalmente se dizia nos saudosos tempos da épica.
A epopeia mudou de tom.
Passou de berceuse trágica a marcha mecânica. O que vencia não mais era a
dureza do homem, sua paciência, sua resistência às privações. Vencia a
inteligência do engenheiro que na paz do gabinete calculava com precisão a resistência
dos materiais e o jogo das peças, ao conceber leviatãs não previstos pela
natureza.
E o oceano, atônito,
assistiu à completa devassa dos seus domínios — com grande escândalo do verde
Netuno.
Pobre deus! Quando o
“Deutschland” operou o maravilhoso mergulho transatlântico que o trouxe de Kiel
a New York, Netuno lançou aos sargaços o tridente, exclamando num sincero grito
d’alma:
— Não mais sou deus de
coisa nenhuma. Deus é esse piolho da terra que inventa máquinas e se ri dos
meus vagalhões, zomba dos meus ventos, fulmina minhas baleias e põe-me assim,
no fim da vida, um miserável rei de opereta... Já destronou Cibele, a deusa da
terra, já destronou Urano, o deus do céu. Até Júpiter, o deus dos deuses, onde
lá vai! Resta Vênus...
Também Urano a princípio
sorrira, quando viu Gusmão lançar para os seus domínios a frágil passarola,
vítima dum beiral de telhado. Sorriu ainda, desta feita amarelamente, quando
Mont-golfier ascendeu bem alto suas esferas de ar aquecido.
— Vence a altura,
murmurou consigo o deus, mas obedece aos meus ventos. Voará como a palha,
jamais como as aves.
Mas quando Urano viu
Dumont singrar o espaço num charuto, não paina que o vento leva mas ave firme
na diretriz escolhida, o sorriso gelou-se-lhe nos lábios, e pela espinha
veneranda lhe correu o arrepio de Bonaparte em Waterloo, ao dar com Blucher no
ponto em que devia aparecer Grouchy.
E o deus dos céus fez o
testamento, e as malas, e se foi para o Asilo dos Deuses Inválidos, jogar o
gamão da aposentadoria com Netuno, Jove e os demais que já lá se achavam.
De passagem pelo Cáucaso
objurgou o encadeado Prometeu:
— Vê tua obra,
miserável! Com o fogo que nos roubaste e lhe deste, a miserável vermina da
terra nos destronou um a um.
Desse refúgio merencório
os velhos deuses assistem hoje ao voo de Ramon Franco e trocam impressões.
— Vem ele de Paris ao
Prata em horas, comenta Urano, e neste andar os homens acabarão vencendo essa
distância em minutos...” Riem-se dos nossos éolos tão temidos, ganham das
nossas águias no elance, varam a sorrir nossos nevoeiros, escravizam e
transformam em moços de recados os invisíveis fluidos que tu, Jove, usavas
tonitroantemente... Como isto dói, irmãos!
Também Netuno falou,
cofiando as imensas barbas de algas verdes.
— Rumo ao Prata... Saiu
ontem de Palos, chegará amanhã a destino... Esse trajeto só era possível outrora
por mar, e nos bons tempos consumia meses, seis, oito, dez — e eram deliciosos
meses para mim. Divertia-me despejando contra as caravelas audaciosas a
cornucópia inteira dos meus ventos, ora de feição, ora contrários, ora
remoinhantes em trombas furiosas. Mas o meu supremo regalo era pô-los sem vento
de espécie nenhuma, ali nas proximidades da cinta equinocial. Chamavam eles a
isso calmarias e nada os aterrorizava tanto. Ficavam a boiar ao embalo do mar
morto dois, três meses. Devoravam todas as bolachas de bordo. Consumiam as
últimas reservas de água pútrida. E era de vê-los estorcerem-se nos horrores da
fome e da sede, atirando-se à caça dos ratos e roendo como cães tudo quanto era
de couro.
Em roda dos veleiros,
meus esqualos, de dentuça arreganhada, riam-se de tanta miséria. E meus
peixes-voadores alavam-se em cardumes aperitivos, bem à vista, mas fora do
alcance dos famintos. E meu mar ondulava-lhes sob as embarcações, tantalizando
os sedentos com a sua imensidão impotável.
Mesmo assim me iludiam
muitas vezes; transpunham a zona maldita do equador — forno sem brisa à volta
do mundo estirado — e prosseguiam na rota às terras do ouro. Por mais que
açulasse e baralhasse meus ventos não consegui vencer a todos, e se a
incontáveis fiz tragar pelos meus escarcéus espumejantes, e a outros
esborrachei contra os penedos, inúmeros se salvaram e vieram plantar no mundo
novo as sementes dessas metrópoles gigantescas, onde hoje lhes pulula a
descendência vitoriosa...
Aqui Netuno parou. Uma
zoada no ar atraiu-lhe a atenção sonolenta. Ergueu os olhos envidrados e viu de
asas espalmas o avejão de Ramon Franco em pleno voo.
Apesar dos preconceitos
de casta e do ódio divino contra a vermina da terra, o deus de barba verde
sentiu n’alma um frêmito incoercível.
Olhou para Urano. Essa outra
múmia a cair de séculos também arregalava os olhos e fremia.
Era o entusiasmo,
sentimento que pela vez primeira alcançava vibratibilizar o duro basalto que
deve ser o peito de deuses caídos em caquexia senil.
Estavam assim, de nariz
para o ar, quando atrás deles soou a voz de Jove, que se aproximara.
— Amigos, tratemos de
nos naturalizar homens. É o meio único que nos resta de voltarmos a ser
deuses...
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In: Na Antevéspera
Atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)
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