Doloi stid
Diz Agorio em sua
reportagem sobre a Rússia, que a nova organização da família permite o ressurgir
legal do hetairismo grego, mas livre. A hetaira grega, erroneamente por aí
confundida com a cortesã, não era livre, era uma escrava de grau superior.
Glicéria foi parar às mãos de Filemon em troca de dez mil medidas de trigo,
depois de ter coabitado com o poeta Menandro e, antes, com o pintor Pausias.
A hetaira russa não é
uma escrava. Elege, escolhe, dispõe de si, é livre.
O hetairismo sempre
existiu. No Japão é constituído pelo geishismo. A geisha, educada desde a
infância para o amor em sua tríplice expressão, física, espiritual e
sentimental, torna-se uma harpa erótica, ressoante, como a eólia, às menores
brisas — mas é de aluguel. Alugam-na a prazos fixos, como se fora um móvel de
luxo.
Na França, que têm sido
as Ninon de Lenclos, as Theroigne, as Maintenon, as Dubarry? Hetairas livres,
negadas pela lei mas aceitas pelos costumes e, graças aos seus dons de
espírito, tão famosas como essas gregas que enchem de encanto a antiguidade
clássica, Aspásia, Laís, Frineia, Safo, para só citar as maiores. Agorio também
cita as menores, como Timandra, amiga de Alcebíades; a escultural Arqueanasa,
boa musa de Platão; Corina, que descobriu aos olhos maravilhados de Píndaro o
mistério da poesia; Hérpilis, colaboradora de Aristóteles; Taís, a amada de
Alexandre e de Ptolomeu.
A hetaira há de reunir à
beleza física a graça da cultura e a sutileza do espírito; só assim, completa,
possui todos os requisitos para enliçar os homens superiores, os aedos, os
artistas, os filósofos, tornando-se-lhes a companheira ideal.
Sempre existiu, já
disse, aceita pelos costumes dos países de alta cultura, como a França, mas
negada pela lei. Quer Agorio que na Rússia ressurja essa forma de companhismo,
desta vez legalmente.
É curiosa esta volta à
Grécia depois de cada revolução social. Na revolução francesa, arrasado que foi
o terreno, os novos esboços de construção iam à Grécia pedir modelos. Agora se
dá o mesmo na Rússia. Esta reincidência prova como a Grécia era logicamente
animal e natural.
O culto do nu, em
vigorosa ressurreição na terra de Lenin, mostra a tendência de retorno à
harmonia clássica. Diz o escritor argentino que por toda a parte se pode
admirar a beleza ondulante do corpo humano. O gosto pelas emoções plásticas
ganhou com rapidez a alma dos russos. Nas procissões públicas da juventude
comunista, belas raparigas semidesnudas se mesclam a efebos adolescentes, em
encantadora promiscuidade. Confessa ele que é inolvidável o espetáculo. A linha
flexível do corpo, envolto às vezes num torvelinho de véus rubros, dá à forma
humana o mistério resplandecente das estátuas — vivificados no ritmo, na
serenidade e na harmonia. Tais procissões, ao toque de músicas belicosas,
provocavam-lhe a sensação de frisos gregos em movimento.
O exagero sobreveio. O
gosto discreto do nu foi exagerado pelos doloi
stid, sectários de fundo místico, que aliás têm proliferado menos na Rússia
do que na Alemanha e nos países escandinavos.
Os primeiros membros
desta seita, que se atreveram a arrostar os preconceitos do povo russo, foram
um homem e uma mulher. Tomaram o bonde em Moscou sem outros trajes fora a
estreita faixa vermelha onde se lia a inscrição — Doloi stid! (Abaixo a vergonha!) que deu nome à seita. Foi um
escândalo a princípio; depois vieram os sorrisos irônicos; por fim, a
indiferença.
Este fato foi
comentadíssimo em toda a Europa de maneira desfavorável à confederação dos
sovietes, não se levando em conta a origem alemã do doloistidismo. A seita
destes fanáticos do nu tem seu ninho na Alemanha do norte, onde se constitui em
colônias ao ar livre, nos bosques e margens dos rios. Sustentam que a roupa não
só é antiestética, como ainda representa um constante atentado contra as leis
da natureza. Homem e mulher nascem nus e nus devem viver.
A doutrina, diz Agorio,
cifra-se nisso, e qualquer estrangeiro que a aceite está em condições de
filiar-se ao grupo. Só lhe exigem que varra do cérebro qualquer ideia
pecaminosa, e jure conservar a pureza e inocência dum recém-nascido.
Feito isso está apto a
ser recebido num lar doloi stid.
Entra. Surge um criado
vestido de pele natural, que o ajuda a desnudar-se num vestiário e em seguida o
introduz. Vão-se-lhe deparando quadros comezinhos de vida caseira, já seus
conhecidos uns, outros inéditos graças à ausência de véus. Vê, por exemplo,
brincarem as crianças como um bando de róseos Eros sem asas; e vê a clássica
octogenária em sua poltrona tecendo peúgas. Peúgas, na casa do nu? Sim. Os
velhos estão isentos do adamismo, já que o aspecto do corpo humano em
decadência não sugere ideias agradáveis.
Mas vêm agora ao seu
encontro os donos da casa. Decepção. Em regra, embora não velhos, os donos da
casa pecam pelo bambo das carnes ou pelo excesso de ventre. E já pensa o
neófito em abjurar o doloistidismo, quando lhe aparecem os convidados. Tudo
muda. São moças de formas estatuárias, que servem o chá com uma impassibilidade
que espanta. Totalmente nuas, não; trazem no corpo alguma coisa — nem podia
deixar de ser assim: trazem nos lábios um pouco de carmim e nas unhas um róseo
brilho artificial. Só...
Enfrentam os homens com
absoluta serenidade. Dir-se-ia que trazem sobre os instintos aquela túnica de
gelo que defende a castidade das banhistas públicas de Estocolmo.
A festa de recepção aos
profanos em regra termina por um baile — que é um desastre para o neófito em
cujas veias corre o caprino sangue meridional. O comum é fugirem da sala por
incapacidade de sustentar o juramento de inocência feito ao entrar. Fogem, com
imenso escândalo da paradisíaca assistência.
Nada é novidade no
mundo. Aqui onde estamos, neste Rio cujas moças incidem em tantas censuras por
mostrarem dois palmos de magros cambitos, os nossos avós tupinambás, donos da
terra, viviam, ledos e cegos, em doce doloi
stid, sem escândalo de ninguém.
Escândalo, e imenso,
causou a chegada das cinco francesas vindas em 1558 com os navios de Bois le
Comte. Desembarcaram no forte de Coligny e dias depois se apresentaram na praia
aos selvagens reunidos.
Ao vê-las, nossas vovós
tupinambás, puras Evas antes da vinha, levaram a mão aos olhos,
arqui-escandalizadas:
— Mulheres vestidas! O
mundo está perdido...
E benzeram-se com o
maracá.
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In: Na Antevéspera
Atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)
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