Catulo — voz da terra
O Brasil existe e
insiste. Tem uma alma caótica, isto é, em formação, caos não significa apenas
desordem. Tem a carne sensível, apesar dum sistema nervoso rudimentar, como o
das baleias. O Brasil é imenso. Desdobra-se por 8.525.000 quilômetros
perfeitamente quadrados, e até já passa disso, em virtude do aplastamento do
morro do Castelo. Possui terras feracíssimas, como as roxas de São Paulo, e
carrascais piores que os desertos da Líbia. Zonas onde tudo são águas,
pirarucus e jacarés truculentos, ao lado de zonas onde a seca periódica só
poupa às cactáceas.
“Nesta terra se dá
tudo”, disse Vaz Caminha; “mas a formiga come tudo que se planta”, acrescenta o
Jeca, de cócoras na filosofia da sua velha experiência. Talvez seja por isso
que na terra que dá tudo quem quer uma fruta adquire, a peso de ouro, nas
joalherias, pêssegos da Califórnia, maçãs da Argentina, uvas de Alicante.
Mas que dá tudo, dá. Dá
café, cacau, coco babaçu, mandioca, besouros enormes, coronéis ainda maiores;
dá papo, maleita, revoltosos, legalistas, doutores, anofelinas, casebres de
sopapo e arranha-céus, academias de letras e reformas de ensino; dá impostos e
carrapatos devoradores de impostos; dá o algodão com o curuquerê ao lado; dá
sempre o pró rente ao contra, um pró magro e um gordo contra que o inutiliza.
Só não dá justiça.
Desse, e o grande poeta
nacional, esse Catulo que ninguém ouve sem sentir dentro de si o arrepio da
raça não estaria de barbas postiças, num teatro, a trocar o arrepio de seus
versos pela magra subsistência.
Rosalina Coelho Lisboa,
voz harmoniosa desse algo superior que paira sobre os homens, denunciou a
profanação e apontou para o Trianon:
— É na Academia de
Letras que ele deve estar.
Não sei. As academias
têm morgue e Catulo é o que
há de mais livre e boêmio. Só mesmo onde deve estar estará bem: no coração dum
povo.
Catulo é o grande poeta
nacional.
O Brasil possui poetas
em barda e alguns magníficos; mas são poetas universais, que jogam com imagens
vindas de Anacreonte a Verlaine. Poetas que tanto seriam brasileiros como
mexicanos, franceses ou russos,
Catulo, porém, é o poeta
da terra, a harpa eólia que ressoa ao menor arfar da terra. Amores, anseios,
sofrimentos humildes, cismas vagas, o verdadeiro sentir da nossa gente só nele
encontra voz. E que voz! Com que vigor se exprime! Com que inaudita riqueza de
imagens novas, sem eiva de reflexo europeu!
Catulo é bem a voz da
terra brasílica. Voz das coisas e voz das gentes. Tanto fala nele o amor do
vaqueiro como a angústia bracejante da peroba que a queima da floresta deixou
semicarbonizada no viso do espigão.
Aos demais poetas ouvimo-los
com o cérebro. São filhos da cultura geral, são traduzíveis.
A Catulo ouvimos com o
coração, e ouvimo-lo tomados dum estranho transtorno interno. Uma coisa grande,
uma coisa vaga, informe, monstruosa cresce dentro de nós, expulsa o moderno de
importação que está ali e nos deixa sozinhos com a raça. Nosso peito se enche
de avós, como um albergue tomado de assalto por sombras ambientes.
Acodem tupinambás de
pedras verdes nos lábios, dos que comiam portugueses com tripas e tudo; acodem
velhos lusos de barba em colar; acodem iracemas que se cruzaram com esses
barbadões iniciais; acodem avós fazendeiros de açúcar, bandeirantes tropeiros
que acabaram barões do império, acodem homens de garimpo, caçadores de onça,
senhores de escravos, sinhás-moças e sinhás-velhas — toda essa gente passada
que viveu, amou, chorou e com as armas que pôde foi tirando da floresta imensa
um país.
Acodem em tumulto para
ouvir a língua que foi a deles e ouvir as imagens, únicas que lhes sugerem
coisas vistas e vividas. E enquanto o poeta geme seu descante ao violão
permanecemos assim, obstruídos de raça, no êxtase de íncubos atravancados de
veneráveis súcubos avós.
O Brasil dá tudo, menos
justiça. O Brasil recompensa tudo, menos o mérito. Que há de esperar Catulo da
sua pátria senão umas barbas postiças?
Há dele um poema lindo
onde se narra o amor dum papagaio de estimação pela cachorrinha Sauna. “Mártir,
velha, escorraçada, quase no extremo da vida, andava sempre escondida e não
morria esfomeada porque às vezes lhe tocava um frangalho de comida que a outro
cão sobejava”. Seus olhos, salva a heresia, lembrava os olhos da Virgem Maria.
A sua melancolia era saudosa e macia como a sombra do luar. Quanta dor, quanta
poesia, quanta filosofia chorava naquele olhar!”
Desprezada por todos, só
o papagaio a estimava. “Quando lhe faltava um osso para o jantar era belo, era
sublime ver aquele papagaio, como quem comete um crime, às ocultas lhe ofertar
alguns bocados gostosos do seu gostoso manjar.” E repetia vinte vezes o nome de
Sauna, só porque ela, debaixo do seu poleiro, se quedava extática a ouvi-lo.
Um dia Sauna morreu.
Encontraram-na com a barriga inchada à porta do curral, rígida e fria, mas nos
seus olhos inda “se lia aquela filosofia da dor irracional. E só porque já
fedia foi que o vaqueiro Zé Marco enterrou a pobrezinha ao pé dum velho pau
d’arco”.
Quando o papagaio soube
da morte da triste sarnenta, emudeceu e nunca mais repetiu o nome de Sauna.
Catulo conclui o poema
com um grito d’alma verdadeiramente sublime.
Meu Deus!... Por que não fizeste os homens irracionais?
Quem grita assim, quem
atinge tais alturas, merece castigo. Merece como ganha-pão no fim da vida, não
uma, mas duas barbas postiças.
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In: Na Antevéspera
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)
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