Memórias são como balas
“Confesso que
vivi”
(Editora Bertrand Brasil - 2010)
(Editora Bertrand Brasil - 2010)
Pablo Neruda aproveitou bem esse seu contar de
memórias, que começa com as andanças de um jovem buscando a vida nas florestas
chilenas, até chegar ao senhor barrigudo exilado que retorna para morrer na
“pátria doce e dura”.
Antes mesmo de ler esse ‘Confieso que he vivido’, escrevi algures um artigo no qual
redescobria o lado mais humano da poesia de Pablo Neruda. Na verdade o escrito
refletia ardorosa reação a uma referência de Floriano Martins, qualificando
Neruda como “um grande mal poeta”...
No artigo citado (Pablo Neruda ou a
Poética do coração) eu dizia:
“Como
se mede um poeta? Como se mede, a uma distância considerável o poeta e sua
obra? Retiram-no do espaço e tempo a que estava confinado, do qual fazia parte?
Exclui-se a geografia física, foco da paisagem em derredor? Elimina-se a
ideologia que entendeu, teve afinidade e abraçou? Apaga-se a utopia da
igualdade social que fere e machuca quando se torna consciente? Destrói-se a
construção política que assimilou, o sonho que erigiu a sangue e suor? Como se
mede o poeta sem misticismo, sem religiosidade, sem eternidade? A imortalidade
de Neruda vai durar porque, no momento em que lhe foi dada a bênção das musas,
soube interpretar como nenhum o anseio da terra e dos povos em derredor. No
momento certo trouxe à lembrança todo o mal que o invasor (especialmente o
espanhol), causou. Sem leviandade.
Essas
considerações vêem empiricamente após leitura do artigo de Floriano Martins
“Neruda”. Parece que para alguns o poeta chileno representa um ícone – mas
também um incômodo. O que se pretende é destotemizá-lo. Não se pode derrubar o
altar de qualquer um senão daquele que conseguiu abalar a estrutura da poesia
hispânica. Frívolo, inconsequente, desmesurado. Tudo que Floriano Martins
escreveu e citou de uma dezena de críticos importantes a respeito de Pablo
Neruda é absolutamente verdadeiro”.
Pablo Neruda ampliou as fronteiras da poesia
latino-americana. Ninguém reconhece oficialmente, mas existe um abismo entre a
poesia brasileira e a poesia hispano-americana – como de resto na política e
nas artes em geral. Com uma voz ao mesmo tempo índia e européia, o poeta
dedicou-se a cantar o continente – Canto General – sem esquecer as raízes
ibéricas. Por ocasião da impressão dramática do seu livro Espanha no coração – sobre o qual Neruda dedica nas memórias todo o
Caderno 5 – o poeta assiste à derrocada da república espanhola para as tropas
do general Franco. Na mesma ocasião que Federico Garcia Lorca é fuzilado em
Granada, todo o batalhão formado por artistas, poetas, escritores, pintores,
abandona a as trincheiras partindo para o exílio na França. Entre nós, o poeta
Manuel Bandeira reflete de imediato o sentimento universal de liberdade que
desponta naquela poesia:
NO VOSSO E
EM MEU CORAÇÃO
Manuel Bandeira
Espanha no
coração:
No coração de
Neruda,
No vosso e em
meu coração.
Espanha da
liberdade,
Não a Espanha
da opressão.
Espanha
republicana:
A Espanha de
Franco, não!
Velha Espanha
de Pelayo,
Do Cid, do
Grã-Capitão!
Espanha de
honra e verdade,
Não a Espanha
da traição!
Espanha de
Dom Rodrigo,
Não a do
Conde Julião!
Espanha
republicana:
A Espanha de
Franco, não!
Espanha dos
grandes místicos,
Dos santos
poetas, de João
Da Cruz, de
Teresa de Ávila
E de Frei
Luís de Leão!
Espanha da
livre crença,
Jamais a da
Inquisição!
Espanha de
Lope e Góngora,
De Goya e
Cervantes, não
A de Filipe
Segundo
Nem de Fernando,
o balandrão!
Espanha que
se batia
Contra o
corso Napoleão!
Espanha da
liberdade:
A Espanha de
Franco, não!
Espanha
republicana,
Noiva da
revolução!
Espanha atual
de Picasso,
Do Casals, de
Lorca, irmão
Assassinado
em Granada!
Espanha no
coração
De Pablo
Neruda, Espanha
No vosso e em
meu coração!
(Belo Belo)
E continuo, no meu artigo, tentando entender o porquê de comparar Neruda a Vicente Huidobro, um poeta que não tinha a mínima ligação emocional com as raízes índias do Chile – que são fundas. Pois neste Caderno 5 das Memórias o próprio Pablo Neruda elucida, sem mágoa, essa contradição, quando descobre as intrigas que Huidobro fazia, enchendo a cabeça de César Vallejo ‘de invenções contra mim’...
Além do mais, existe a necessária contradita temática,
tão necessária à poesia:
“O próprio
Floriano Martins o reconhece ao citá-lo, quando comparado com o classicismo
moderno de Vicente Huidobro. Mas, dá para imaginar a leitura de Gonçalves Dias
sem a ótica edênica e indígena que sempre o acompanhou? Como chegaria até nós a
leitura de Casimiro de Abreu sem a viagem feiticeira de uma só via? Como
seríamos capazes de ler Joaquim de Sousândrade sem a contingência
intercontinental a que foi submetido, impregnando-o de um futurismo paranormal?
E mais próximo a nós, como ouviríamos Mário de Andrade, se excluído do
urbanismo erótico desenfreado a que se escravizou como um sacrificado? E ler
Brecht sem o marxismo dialético? Eis um exercício que se pode fazer ad
infinitum, à exaustão, esgotando todas as fábulas possíveis. Finalmente, como
não se pode falar mal de un pequeño malo poeta, vamos crescer à custa de un
gran malo poeta – pois tudo tem princípio. Em frente!”
No entanto, essa digressão cai por terra quando se lê
o Caderno 11 das memórias “A poesia é um
ofício”. A criatura supera a criação? Não neste caso, porque Pablo Neruda,
em pleno exercício de sua profissão, refletiu muito sobre os poetas e a poesia
de seu tempo. Escolheu com a cabeça fria (se pode dizer-se isso de Pablo
Neruda) o caminho que, como poeta, tinha escolhido para trilhar. O mundo e o
homem estavam em sua agenda poética, a política e o humanismo, o espírito e a
vida, o sonho e a utopia. Como sempre a escolha recaiu sobre o tempo vivido.
Diz o poeta numa nota introdutória:
Estas
memórias ou lembranças são intermitentes e, por momentos, me escapam porque a
vida é exatamente assim. A intermitência do sonho nos permite suportar os dias
de trabalho. Muitas de minhas lembranças se toldaram ao evocá-las, viraram pó
como um cristal irremediavelmente ferido.
Eu:
Neruda traz
na poesia a tradição dos payadores, poetas populares cuja matéria prima é a
emoção.
Pablo Neruda:
As memórias
do memorialista não são as memórias do poeta. Aquele [o memorialista] viveu
talvez menos, porém fotografou muito mais e nos diverte com a perfeição dos
detalhes: este [o poeta] nos entrega
uma gaveta de fantasmas sacudidos pelo fogo e a sombra de sua época.
Talvez não
vivi em mim mesmo, talvez vivi a vida dos outros.
Eu:
Algo que se
pode dizer de Neruda – um tiquinho parecido com Mário de Andrade – é que poeta
como ele não existe mais. Ninguém mais adota a poesia do coração, que parece
com o evangelho: uma poética estranha e familiar, ao mesmo tempo ingênua e
amiga. Ninguém faz a poesia que significa “amor à beleza”, essa beleza que se
confunde com o bem. O que diremos da poética do coração? A poética do coração é
essencialmente a interpretação contemplativa da vida. Simplificando e fazendo
abstração das diferenças, pode-se dizer que a poética do coração opõe a
corrente ativa, à corrente intelectualista e monástica, sem deixar de colocar a
liberdade como fundamento. Preconiza fundamentalmente um caminho mais curto e
mais fácil de poética, de volta ao reino interior, para se impregnar de
expressões familiares. O método não se diz inédito, invoca toda uma tradição,
menos concernente à vida poética solitária, em favor da solidariedade. O poeta
“reconduz o espírito ao coração” e “une-o à alma”. Variante de fórmulas
clássicas atualizadas em nosso tempo, a poética do coração não é algo novo e
sim baseado em perspectivas anteriores. Trata-se de “guardar o coração pelo
espírito” e “reconduzir o espírito da razão para o coração”.
Pablo Neruda foi uma decepção para esses críticos, que
são tenazes e intransigentes na análise técnica e erudita, mas que se mostram
bem fracotes quando esbarram naqueles que escapam do academicismo tipo
cu-de-ferro e alcançam um nível de popularidade. Pablo Neruda – popular e ao
mesmo tempo erudito – ganhou o Prêmio Nobel como uma comenda de guerra. Em suas
memórias ele confessa ter preferido viver a vida de seu tempo, defender a sua
pátria e o seu povo, a submeter-se à tirania, tanto literária quanto política,
que lhes eram impostas de cima para baixo.
Do que deixei
escrito nestas páginas se desprenderão sempre – como nos arvoredos de outono e
como no tempo das vinhas – as folhas amarelas que vão morrer e as uvas que
reviverão no vinho sagrado.
Minha vida é
uma vida feita de todas as vidas: as vidas do poeta.
Não é preciso dizer mais nada, mas, sim, totalmente
necessário continuar lendo as poesias de Pablo Neruda, que já fazem parte do
poemário popular latino-americano e se completam com suas memórias.
Rio de
Janeiro, Cachambi, 23 de janeiro de 2012.
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