Manuel Bandeira: todas as estrelas
Deixando
de lado tudo que se possa dizer do poeta Manuel Bandeira – e com certeza tudo
de bom já foi dito – posso afirmar que a leitura de sua poesia continua tão
prazerosa como se estivéssemos contemporâneos de seu tempo. Então, usufruir de
uma obra como o que realizou a Livraria José Olympio Editora ao enfeixar num só
volume as poesias reunidas do poeta pernambucano é um privilégio de poucos.
Livro
de poesia é assim mesmo: nunca fica velho demais que não mereça uma releitura.
A gente compra, lê, guarda e de vez em quando volta a ele para matar a saudade.
Nesses reencontros tudo acontece: algum poema que na primeira leitura pareceu
desinteressante logo se disfarça de outra maneira e vira magia, outros
pequeninos, de circunstância, ganham brilho e crescem, outros mais vibram em
sonoridade e ritmo, eis aí tudo a se modificar – é um novo livro que temos nas
mãos.
Com
Manuel Bandeira, então, nem se fala! Como a releitura enriquece, mais que
nenhuma, a sua poesia! Mas a importância do volume que tenho em mãos não é
somente o manancial da poesia que jorra. Começa, desde logo, pela leitura da
orelha. Não é qualquer livro nem qualquer autor que possa se orgulhar de ser
“orelhado” por nada menos que Otto Maria Carpeaux, escritor austríaco que
abrasileirou, tão rápido, como a maioria daqueles que foram atirados até nós
pelo desatino da guerra.
Otto
Maria Carpeaux chegou aqui em 1939 e foi mandado para o Paraná, como...
agricultor! Claro que foi coisa de momento, porque logo se desviou para São
Paulo e tratou de sobreviver ao primeiro momento de dureza vendendo objetos
pessoais, um pouco do patrimônio que trouxe da terra natal. Depois de breve
correspondência com Álvaro Lins, Carpeaux foi convidado para escrever no
Correio da Manhã (jornal publicado no Rio de Janeiro, na pré-história da
imprensa, junto com o JB e O Globo – bem antes da família Marinho engolir
vorazmente TODA a imprensa da antiga Capital Federal).
Daí
em diante o leitor pôde saborear, como se fosse um produto popular, toda a
erudição desse notável brasileiro. Sim, no mesmo ano em que Stefan Zweig – em
depressão plena – desistia do Brasil dividindo um copo de cicuta com sua mulher
Lotte, no mesmo ano que este escriba era parido na Paraíba, o entusiasmado
emigrante Otto Maria Carpeaux se tornava brasileiro da gema...
Todo
o conhecimento adquirido por Otto Maria Carpeaux não foi obra do acaso. Ainda
estudante ele dominava vários idiomas (inglês, italiano, francês, alemão,
espanhol, etc.), mas não o português – o que demonstra que sua chegada aqui não
tinha sido planejada. Entretanto, o estudo de línguas facilitou para que se
tornasse fluente na nossa língua com pouco mais de um ano de dedicado estudo.
Sua
formação acadêmica em várias matérias – que abrangia física, matemática,
sociologia, filosofia, música e literatura – serviu de manancial para tudo que
aqui produziu, destacando-se os oito volumes consagrados à História da
Literatura Ocidental (1947), Uma Nova História da Música (1958) e os volumes de
Ensaios Reunidos (2005).
Agora
pasmem: nenhum sinal dessa vastidão de conhecimento perpassa pelo texto que
dedicou ao poeta Manuel Bandeira. É claro que aqui e ali Otto Maria Carpeaux
destaca as qualidades poéticas de Manuel Bandeira, principalmente como autor de
“versos felizes”, mas em quantidade e volume tão grandes que, para o ensaísta,
isso era tão natural ao poeta quanto à proximidade da morte...
Não,
nesse pequeno texto apertado na orelha de Estrela da Vida Inteira, Otto Maria
Carpeaux desvenda o olhar do leitor para a importância do lirismo na poesia de
Manuel Bandeira, lirismo esse que deságua como cachoeira no ritmo, na
sonoridade, na cadência verbal, transplantando os versos diretamente ao solo
musical. Essa musicalidade, pressentida desde logo pelos contemporâneos do
poeta, fez de Manuel Bandeira autor principal da canção brasileira, assim
entendida como os lieder alemães.
Para
não esticar mais a conversa, leia a seguir o texto de Otto Maria Carpeaux,
depois saiba de algumas informações sobre a obra musicada de Manuel Bandeira.
Na pescaria para compor este texto, para minha surpresa, topei com um velho
disco (Maria Lúcia Godoy canta poemas de Manuel Bandeira) e de contrapeso um
texto de Paulo Mendes Campos, feito especialmente para o lançamento do disco. É
mole? Pois o dito cujo texto também vai a seguir...
NOTA QUE SEGUE ESTE TEXTO
Outros poemas de Bandeira musicados esparsamente:
4 poemas (Bandeira-Almeida Prado)
Disco do Museu da Imagem e do Som - MIS
Maria Lúcia Godoy Canta poemas de Manuel Bandeira
Ao piano: Murilo Santos
Museu da Imagem e do Som – MIS
Fundação Vieira Fazenda
Rio de Janeiro 1966
Texto de Paulo Mendes Campos
***
POESIA INTEMPORAL
Orelha do livro
“Estrela da vida inteira”, por Otto Maria Carpeaux.
“Eis
aqui a Obra Poética total de Manuel Bandeira. É a edição definitiva, depois das
muitas outras que a precederam e cujo número é sinal do sucesso extraordinário
de um poeta cujos versos chegaram a gravar-se na memória da nação brasileira.
“São
muitos versos inesquecíveis. Antigamente costumava-se falar em “versos
felizes”; e felizes eles são em todos os sentidos: são felizes pela densidade
da carga emocional de palavras coordenadas por uma lógica secreta e
irrespondível; são felizes porque foram o resultado de sofrimentos graves, de
meditação profunda, e chegaram a tornar mais feliz a vida do poeta; e a vida de
todos nós.
“Mas
às vezes esses versos “felizes” são muito tristes, como aquele, talvez o mais
famoso de todos, sobre “a vida inteira que podia ter sido e que não foi”. Outra
vez, o verso é pungente, denunciando a vida como “agitação feroz e sem
finalidade”. Mas outra vez, respira a melancolia sem desespero de uma tarde
triste primaveril: “... passei a vida à toa, à toa”. Só um compositor de
lieder, um Schubert, um Hugo Wolf, seria capaz de interpretar bem a música de
um verso desses. É mesmo forma musical o rondó dos “cavalinhos correndo”, em
que o gerúndio é sabiamente aproveitado para simbolizar e musicar a ligeireza
da vida que passa.
“Ligeireza
do verso, mas não do seu sentido. Os melhores versos de Manuel Bandeira
parecem-se com nocturnes e nuages de Debussy, mas é inconfundível
neles o fundo de tragicidade beethoviana. Essa poesia cumpre a exigência do
severo Matthew Arnold de ser uma crítica da condição humana. Esse poeta não tem
“mensagem”, felizmente, porque as “mensagens” costumam tornar-se, depressa,
obsoletas e inaproveitáveis. Não precisa de eloquência para convencer-nos e
consolar-nos. Umas poucas palavras bem escolhidas, colocadas numa ordem que as
faz cantar, e tudo está dito, mesmo aquilo que em palavras ninguém poderia
dizer. É este o privilégio da poesia lírica.
“Ao
contrário do que pensam os mil e mais mil poetastros do mundo inteiro, a
inspiração da poesia lírica é a mais rara de todas e o número de poetas
realmente grandes é pequeno em qualquer época e em qualquer literatura.
Contudo, um ou outro verso feliz é capaz de ocorrer, até aos fazedores de
“chaves de ouro”. Os compositores de valsas e sambas são milionários em
melodias, mas só um Beethoven sabe enfrentar um tema simples e analisar-lhe
todas as possibilidades e realizá-las conforme as regras rigorosas do
desenvolvimento temático e criar uma sonata, um quarteto, uma sinfonia, enfim,
uma estrutura.
“Manuel
Bandeira é poeta que sabe estruturar seus temas. Seus temas são simples:
recordações da infância, um amor irrealizável, a sombra de uma doença grave, um
enterro que passa, uma linda tarde de despedidas, uma velha casa que vai abaixo
e na qual se sofreu e se amou muito. Mas eis o milagre realizado: cada um
desses temas simples é a célula-máter de um processo de desenvolvimento
temático, enriquecendo-se e revelando facetas novas, inesperadas, e
enquadrando-se na forma para a qual estava predestinada e enfim está formado o
cristal perfeito, o poema.
“Nosso
poeta foi o melhor amigo e o homem mais gentil do mundo. Mas em defesa da
poesia, contra a falsa poesia, era capaz de tornar-se agressivo. Seu passado
está cheio de polêmicas. Durante muitos anos foi considerado um dos
protagonistas do modernismo brasileiro. Na história da literatura nacional já
lhe pertence um capítulo substancioso. Sem Manuel Bandeira não haveria no
Brasil poesia moderna, ou então, ela não seria o que ela é. Mas tudo isso são
águas passadas. Manuel Bandeira, embora sempre aberto a tudo que é novo, não se
filiou a nenhuma “escola” nem moda nem estilo. Sua poesia é só dele e adquiriu
há muito tempo, a suprema qualidade: é intemporal.
“Quem
fez tanto, não passou a vida à toa, à toa. Depois de estruturar sua poesia
chegou a estruturar sua própria vida. Sua existência decerto não foi um
sorridente rondó de cavalinhos, mas tampouco uma agitação, feroz e inútil. Foi
a vida inteira que poderia ter sido – e que aqui está, realizada: a Obra
Poética de Manuel Bandeira”.
“Diletante
dos lugares-comuns, costumo colher um exemplar e remirá-lo até desbastar-lhe o
cansaço: então posso vê-lo na renovada surpresa de expressão original.
"Trama do destino", por exemplo, forjada por uma verdadeira apreensão
da existência, é um clichê fascinante, lâmina histológica a definir todo o
tecido humano, peça microscópica da experiência histórica e dos enredos
individuais. "A Trama do Destino" é o título cinematográfico da
biografia de tudo e de todos.
“Ainda
mal tramados, como a relva recém-plantada, um rapaz e um adolescente percorrem
as ruas de Belo Horizonte - no tempo em que Hitler já se escondera no bunker da
chancelaria. Encontram-se, por uma fatalidade de programas escassos, nas salas
de concerto, nas exposições de pinturas, nos auditórios literários. Vivem,
separados, o primeiro movimento, esse allegro das almas verdes, a buscar: na
expressão artística, um espelho; no convívio dos amigos, a solidão comum dos
poucos que reconhecem à primeira vista a perplexidade e a delicadeza de
viver.
“Ela,
abrindo como luz fluorescente olhos líquidos de espanhola, atende pelo nome, um
pouco desamparado, de Maria Lúcia. O moço tímido, mas despenteado, é um Paulo a
mais circulando neste mundo. Ela demite a doçura quando canta nas reuniões, e
sua beleza juvenil se mascara de uma contensão sem idade. Desde menina, Maria
Lúcia desaparece no canto, suprime a personalidade quando canta, transforma-se
no canto, como a ave que descola do ramo e vira o voo.
“Nossa
igrejinha, sofrendo de antipatia pelas cantoras que se exprimem, que cultivam
os miosótis da personalidade, ainda buscava uma voz para as canções: embora
nada existisse que lembrasse um contrato, decidimos, Maria Lúcia nos
representaria através do canto.
“Às
vezes, Maria Lúcia e Paulo encontravam-se em um salão de baile. Timidamente. Desconfiados
de que a festa é frívola e vai acabar. E de que a trama do destino prevalece
sobre o momento.
“É
quase impossível que, entre duas músicas dançadas, a um canto do salão, os dois
amigos não tenham falado, em voz baixa, sobre o poeta Manuel Bandeira. O
lirismo bandeiriano era mais pressuroso, mais triste, mais verdadeiro e mais
iluminado que o noturno festivo do Minas Tênis. Manuel ficava conosco. Só ele,
o poeta, dava sentido à incoerência de estarmos ali no baile sem acreditar no
baile, desajustados entre os pares, a não ser a própria mocidade.
“Jamais
os dois deploráveis dançarinos poderiam imaginar - e esse acanhamento da
imaginação é outro lugar-comum do destino - que a trama aqui reuniria o poema,
a voz e o despenteado.
“De
minha participação subalterna, Ricardo Cravo Albin é o culpado. Mas a culpa se
redime pelo resto da iniciativa. Juntar Maria Lúcia Godoy, Manuel Bandeira,
Villa-Lobos, Mignone, Jaime Ovalle, Edino Krieger, Lorenzo Fernández, Guarnieri
e Siqueira em um disco, que se pode guardar para sempre, é um ato simples e
deslumbrante como um passe de mágica. Se não o fizeram antes é porque os
mágicos são raros na civilização argentária.
“Este
é o disco mais completamente brasileiro que conheço: porque os temas, a
linguagem, o ritmo e a emoção do poeta doem de tanta verdade brasileira; porque
os compositores aqui reunidos são ainda os primeiros que romperam com a
dependência estrangeira e exprimiram os timbres, as cadências, as sugestões
instrumentais, as secretas combinações melódicas que nos falam e falam por nós;
e porque a extraordinária Maria Lúcia Godoy, pela qualidade da voz, pela
intuição interpretativa, é uma artista irreprimivelmente brasileira, graças a
Deus.
“Por
isso mesmo, por sua brasilidade inconsútil, pode-se dizer, sem antinomia, pelo
contrário, por um determinismo de criação artística: este disco pertence à
música do mundo.
Paulo Mendes Campos
NOTA QUE SEGUE ESTE TEXTO
“Os
agradecimentos do MIS a Murilo Miranda, que, quando Secretário Geral do
Conselho Nacional de Cultura do MEC, teve a iniciativa da gravação deste disco
para homenagear os 80 anos do poeta Manuel Bandeira. Também se estendem esses
agradecimentos a Nilo Sérgio, da Musidisc, que cedeu o tape ao MIS. O layout é
de Joselito. A gravação foi feita por Ary Perdigão nos estúdios da Musidisc em
setembro de 1966. A
coordenação geral é de Ricardo Cravo Albin, Diretor do Museu.”
Os poemas
musicados, por número da faixa:
01 - Dança do
martelo (Bandeira-Villa-Lobos)
02 - Modinha
(Bandeira-Villa-Lobos)
03 - O anjo da
guarda (Bandeira-Villa-Lobos)
04 - Azulão
(Bandeira-Jayme Ovalle)
05 - Modinha
(Bandeira-Jayme Ovalle)
06 - Dona Janaína
(Bandeira-Francisco Mignone)
07 - Pousa a mão na
minha testa (Bandeira- Francisco Mignone)
08 - O menino dorme
(Bandeira- Francisco Mignone)
09 - Impossível
carinho (Bandeira-Camargo Guarnieri)
10 - Canção do mar
(Bandeira-Lorenzo Fernandez)
11 - Madrigal
(Bandeira-José Siqueira)
12 - Desafio
(Bandeira-Edino Krieger)
Outros poemas de Bandeira musicados esparsamente:
4 poemas (Bandeira-Almeida Prado)
Balada dos reis
(Bandeira-Dorival Caymmi)
Baladinha arcaica
(Bandeira-Toninho Horta)
Belo Belo
(Bandeira-Wagner Tiso)
Berimbau
(Bandeira-Joyce)
Debussy
(Bandeira-Villa-Lobos)
Desencanto
(Bandeira-Francis Hime)
Irene no céu
(Bandeira-Camargo Guarnieri)
Na Rua do Sabão
(Bandeira-José Siqueira)
O impossível
carinho (Bandeira-Ivan Lins)
Portugal meu
avozinho (Bandeira-Moraes Moreira)
Tema e voltas
(Bandeira-Radamés Gnattali)
Testamento
(Bandeira-Milton Nascimento)
Trem de ferro
(Bandeira-Tom Jobim)
Trem de ferro
(Bandeira-Vieira Brandão)
Versos escritos
n’água (Bandeira-Dori Caymmi)
Vou-me embora pra
Pasárgada (Bandeira-Gilberto Gil)
Vou-me embora pra
Pasárgada (Bandeira-Paulo Diniz)
APÊNDICE:
Disco do Museu da Imagem e do Som - MIS
Maria Lúcia Godoy Canta poemas de Manuel Bandeira
Ao piano: Murilo Santos
Museu da Imagem e do Som – MIS
Fundação Vieira Fazenda
Rio de Janeiro 1966
Texto de Paulo Mendes Campos
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