Machado de
Assis VS. Lima Barreto
Acabo de
assistir ao filme “Policarpo Quaresma – Herói do Brasil” (1998), baseado no
romance de Lima Barreto “O triste fim de Policarpo Quaresma”, direção de Paulo
Thiago. A filmografia brasileira tem aproveitado em bom nível a literatura,
pois romances de Machado de Assis foram bem realizados quando transpostos aos
telões. Dom Casmurro, outro bom trabalho dirigido por Paulo César Saraceni,
saiu com o título de “Capitu”, em 1968. Ambos refletem fidelidade às ideias
centrais dos romances, sem temor de que ambos se transformassem, para usar o
jargão, em meros filmes de época. Duas belas realizações da cinematografia
nacional que se juntam ao monstro de Joaquim Pedro de Andrade chamado
“Macunaíma” (1969), da sinfonia de Mário de Andrade.
Duas coisas, porém, não irei fazer aqui: crítica literária, muito menos
de cinema. O paralelo que me vem à cabeça é sobre o significado dos trabalhos
de Machado de Assis e Lima Barreto quando traduzidos em roteiro e imagens,
encaminhados, nessa condição,
ao espectador. Essa compreensão se faz necessária porque é a que toca à vida de
hoje, conquanto que os autores sejam lembrados nas elites literárias de modo
apaixonado ou somente como modelos teóricos da literatura nacional.
Machado de Assis, filho de mulatos, nasceu no Morro do
Livramento, de família pobre, mal estudou em escola pública muito menos em
qualquer universidade. Querendo ter acesso à boemia e namorar a corte, estudou
sozinho e sozinho se tornou intelectual. Assumiu cargos públicos e conseguiu
notoriedade nos jornais para os quais escreveu poesias e crônicas. Já famoso na
maturidade, reuniu colegas e escritores para fundar e presidir a Academia Brasileira de
Letras. Lima Barreto também era
filho de mulatos. Seu pai foi tipógrafo e a mãe, educada com maior esmero,
chegou a lecionar o primeiro grau. Ela faleceu quando o menino tinha apenas
seis anos, obrigando-o a trabalhar muito para sustentar os quatro filhos do
casal, nada lhe valendo o fato de ser afilhado do visconde de Ouro Preto
(alguma suspeita de filiação?). Essa condição, cujo cotidiano ligava ao fim da
monarquia, bem como as lembranças negativas da Abolição da Escravatura – dizem
– exerceram forte influência nas críticas cáusticas ao regime republicano.
[Aqui cabe um parêntese para registrar que o mulato foi o primeiro negro
a ser aceito pela sociedade escravocrata – depois republicana. Tanto o homem
quanto a mulher mulata tiveram tratamento diferenciado do negro puro,
ascendendo em escala social e intelectual. Gilberto Freyre bem que reparou
nisso: muitos mulatos tiveram acesso à banca de advocacia, a cargos públicos,
ao jornalismo, à literatura e às artes em geral. As mulatas, “de pés compridos” (GF), alcançaram notoriedade pela beleza peculiar e não
tiveram problemas em se estudar, se formar em professoras, até mesmo em namorar
e casar com brancos, de família tradicional ou não].
De Machado de Assis já se disse tudo e são tantas as louvações, as
influências, as imitações literárias, a grandeza das influências que a ele
imputam, que é impossível falar mal desse desgraçado, um tiquinho que seja. Com
efeito, como levantar a voz contra aquele de quem se diz que “a revolução
modernista se aproveitou da obra de Machado em objetivos da vanguarda?” E de
que estudos da sexualidade, da psique humana e do existencialismo, “atribuiu-se
certo psicologismo às suas obras, muitas vezes comparando-as com as de Freud e
Sartre”?
Como contestar a declaração de que “nos últimos tempos, com recentes
traduções para outras línguas, Machado de Assis tem sido considerado, por
críticos e artistas do mundo inteiro, um gênio injustamente relegado à
negligência mundial?” E o que dizer de Harold Bloom, que o posicionou “entre os
100 maiores gênios da literatura universal e o maior literato negro surgido até
o presente"?
De Lima Barreto, falam pouco – e o que dizem é que também foi um dos que
tiveram a obra influenciada por Machado de Assis. No entanto, uma pequena frase
distingue muito bem Lima Barreto de Machado de Assis: “Ele foi o maior escritor
libertário do Brasil”. Talvez essa tenha sido uma das razões de Lima Barreto
ter colocado como citação ao seu Policarpo Quaresma: “O maior inconveniente da
vida, que a faz insuportável ao homem superior, é que, se ele for um
visionário, as qualidades se tornam defeitos, de modo que muitas vezes, embora
realizado, tem menos sucesso do que aqueles motivados pelo
egoísmo e pelo hábito vulgar”.
Essa
paráfrase tem a assinatura “Renan, Marc-Auréle” (citação do livro “Marco
Aurélio”, imperador romano biografado por Ernest Renan), reflete sua própria
amargura, já que Lima Barreto não teve a mesma sorte de Machado de Assis,
embora tenha galgado a mesma culminância na arte de escrever. Não está em má
companhia, pois muitos outros escritores provaram do mesmo fel, inclusive
Cervantes. Talvez, por isso, Lima Barreto pudesse também parafrasear o próprio
Renan, repetindo: “Os maiores acontecimentos da minha vida foram muitos
pensamentos, leituras, alguns pores-de-sol à beira-mar e palestras com amigos”.
E
lembrar-se, como o citado Marco Aurélio, estoico na plena acepção da palavra,
quando disse em suas “Meditações”: “O homem cujo coração palpita pela fama
depois da morte não pensa que todos aqueles que se lembrarem dele em breve
estarão também mortos, e que, com o correr do tempo, geração após geração, até
ao fim, depois de sucessivamente cintilar e se sumir, a centelha final da
memória se extingue”.
Voltando à vaca fria (ou revenons à nos moutons), falávamos de filmes
brasileiros sobre romances brasileiros, e o que deduzi é que tanto “Capitu”,
quanto “Policarpo Quaresma, herói do Brasil” são ótimas realizações sobre o
Brasil, mas de destinos tão desiguais que cravam em nosso peito a mesma dor que
sofreu Lima Barreto. Como traduzir em poucas palavras a vida de dois seres
cujos bisavôs foram pretos escravizados, grandes escritores brasileiros, mas
cujas vidas tomaram rumo tão dessemelhante? Já que li os livros e assisti aos
filmes, posso tentar fazer uma comparação, mas de jeito não tão técnico como
douto escritor faria.
Machado de Assis teve vida longeva de classe média, fundou, presidiu e
pertenceu à Academia Brasileira de Letras, trabalhou e progrediu em seus
empregos, tornou-se jornalista e escritor famoso. A página que lhe dedica a
Wikipédia é enorme, como é grande a sua fortuna crítica, seus livros foram
traduzidos para centenas de idiomas, vários romances foram escritos sob a
inspiração de seus textos, estudos, continuações, os volumes inspirados em sua
obra já a ultrapassam em número e quantidade. Nomes importantes da literatura
universal, em razão disso, trataram-no como igual, um par, membro do clã.
Machado de Assis foi, enfim, como diria a minha avó, um preto de alma branca –
portanto, inserido no contexto e aceito pela sociedade.
E Lima Barreto? Se em algo superou a Machado de Assis foi o próprio nome,
pois a maioria prefere referir-se a ele como Afonso Henriques de Lima Barreto –
coisa que, por princípio (acho), ele mesmo depreciaria. Lima Barreto tentou
várias vezes ser membro da Academia Brasileira de Letras, mas sempre seu nome
foi rejeitado. Como a instituição de elite republicana poderia aceitar como
membro um contra, alcoólatra e louco? A sua página na Wikipédia é tão mísera
que nela se podem contar as linhas, a fortuna crítica que lhe dedicam é maior
acentuada na sua vida recheada de desgraças do que em sua obra, os livros que
falam dele são poucos e seus romances só inspiram alguns loucos, revoltosos e
visionários, como a refletir a própria imagem.
Machado de
Assis era Freud, Lima Barreto era Nietzsche.
Machado de Assis nos endereçou às enfermidades de uma sociedade mestiça e
triste – mazelas que nos acompanham até hoje; Lima Barreto nos ensinou a
rebeldia, o não conformismo – que os cara pintadas e baderneiros honram ao
mantê-los de pé.
Machado de
Assis era a assimilação, Lima Barreto era a anarquia. Ambos também se
desigualam no endereço do pó: seus ossos e almas jazem no cemitério São João
Batista, no Rio de Janeiro: – os de Machado de Assis entre sábios fraternos, no
mausoléu de ouro e mármore da Academia Brasileira de Letras; – os de Lima
Barreto junto ao populacho, misturados a cantores, artistas, santas, palhaços,
anjinhos milagrosos e ilustres desconhecidos.
Agora adivinhem com quem eu fico? Com a dúvida que nos deixou Machado de
Assis: a formosa Capitu (com “aqueles olhos de cigana oblíqua e dissimulada” e
que já “aos quatorze anos, tinha já ideias atrevidas”), foi ou não foi comida
pelo malandro Bentinho? Doutor Santiago é ou não é um chifrudo?
Ou estarei
ao lado do louco visionário Lima Barreto, que teve a audácia de atacar os
republicanos, de sacrificar o personagem do romance a balaços, fazendo com que
Policarpo Quaresma, amado por duas belas heroínas, seja fuzilado pelo chumbo da
República (que nos governa até hoje), bradando, de braços ao alto: – Viva o
povo brasileiro! Com quem fico, hem, hem?
Rio de Janeiro, Cachambi, 18 de abril de 2014.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...