A chave do mundo
Agora que o mundo volta a sofrer inquietações alarmantes, recuemos aos fins do século passado, e aos princípios deste século XX, na apreciação de um dos mais populares poetas do nordeste, o repentista pernambucano Leandro Gomes de Barros.
Esse incorrigível boêmio do
Recife, ao balancear a primeira década do século que tantas esperanças trouxe
ao povo, declarou que “o mundo trancou-se e perdeu-se a chave”. Não sabemos se
o leitor já ouviu falar em Leandro Gomes de Barros. Seja como for, permita-nos
uma página em homenagem a esse poeta que teve tão vasta visão acerca do mundo,
dos séculos e dos homens.
Leandro era um filho do povo.
Versejava sem conhecer métrica, nunca ouviu falar em alexandrinos ou hemistíquios...
Fazia versos com a espontânea naturalidade com que uma ave canta, quebram ondas
as praias, murmuram os regatos nos leitos de pedra. Suas poesias corriam os
sertões de Alagoas aos do Ceará, enfeixadas em brochuras que eram vendidas a um
tostão. Dentre os seus mais famosos poemas um fez época e conquistou
celebridade: “O Casamento do sapo”, joia folclórica de encantadoras tintas.
Os maiores acontecimentos políticos,
sociais, religiosos ou científicos, eram imediatamente descantados na lira de
Leandro com muita graça e poesia. Houve em Alagoas um rival: Pacífico Pacato
Cordeiro Manso; mas o nome do pernambucano conquistou maior fama.
Leandro era incorrigível. Boêmio
por vocação, gostava de saborear seus goles de pinga tendo produzido muitos
versos em honra a Baco e seus canaviais pernambucanos. Para mostrar o estro do
aedo popular, reproduzimos aqui a primeira estrofe de um martelo em louvor do álcool:
A bebida é boa,
Cheira e é gostosa.
É tão saborosa,
Que ninguém enjoa.
Então, a pessoa
Que dá-se com ela,
Não fica amarela,
No sente fastio.
Então, quando há frio.
Oh! que vida aquela?
Dentre as pessoas de sua família
havia uma tia que chorava de desgosto ao vê-lo embriagado, e muitas vezes o
censurava em público, condenando-lhe o vício da bebida. Leandro, porém, não se
corrigia e se vingava em versos como estes:
Chega minha tia,
Derramando prantos,
Dizendo que os santos
Nenhum só bebia.
Eu digo: ó titia.
Você tá danada,
Deixe de mancada,
Eu sou verdadeiro,
Se não tem dinheiro,
Eu pago a bicada.
Numa noite, lá para as bandas de
Caxangá, festejava-se o dia da padroeira. O dono da casa, sabendo que ele era
poeta, pediu-lhe uma saudação em verso para glorificar Nossa Senhora. O poeta não
fez de rogado e pronunciou, sem pestanejar, estes versos diante do altar que se
erguia na sala de visitas:
Lá no céu Maria é tudo.
Emblema da Divindade,
Coração vivificante,
No seio da Eternidade
Dom que nenhum mortal tem,
Remédio que nos faz bem,
Origem da Caridade.
Na passagem do século XIX para o
XX houve no Recife festa de rua como se fosse um carnaval. Toda a cidade esteve
desperta e as ruas cheias de povo a pisar tapetes de folhas de canela e a exalar
seu forte aroma. Arcos de triunfo, postes de iluminação adornados de palmas, bandeirolas
de papel por todo o canto, coretos por toda parte, música, alegria, entusiasmo
do povo em delírio.
Anos depois lavrou em Pernambuco
tremenda crise econômico-financeira. Não havendo dinheiro legal, circulava por
toda parte uma espécie de “vale” a que deu “o nome de “cascalho”, tendo os
primeiros vindo do engenho “Provisório”, que emitia notas de alto valor,
“cascalhos” de 500 réis... E Leandro glosou a época nestes versos de saboroso
pitoresco, e sempre atuais, embora de métrica defeituosa, talvez por defeito de
impressão:
Neste século novo
Nos meteu o pau,
Chegamos a um grau,
Que não há quem se salve.
Não há homem que cave,
A sorte enterrou-se
O mundo trancou-se
E perdeu-se a chave.
Já velho, evitava a cachaça.
Certa vez insistiram com ele para que provasse uma nova "marca de
monjopina”, tendo o poeta mal tocado os lábios no copo, os companheiros mofaram
dele e perguntaram se nunca bebera. Leandro respondeu no fogo da pólvora:
No tempo que eu era moço,
Que tinha minha saúde,
Aproveitei bem meu tempo,
Bebi a cana que pude,
Cana no bucho mexia
Que só água no açude.
Era Leandro Gomes de Barros um
poeta verdadeiramente do povo. Marcou época, celebrou festas, bebeu muita
cachaça, fez rir e fez chorar. Morreu velho e seu nome nem mesmo em “notícia”
se converteu.
Meditando na atual situação do mundo,
com assembleias internacionais reunidas para defender a paz; com delegações de
todos os povos credenciados pela Organização das Nações Unidas, para que se
elabore um novo Código Moral para os Direitos do homem: com as batalhas da eloquência
e em dialética a vibrar em todas as línguas do mundo, irradiadas desde a França
conturbada pela política e pelos choques das massas proletárias; examinando o
panorama em que se agita a humanidade, que julga e pune com a forca os
criminosos da última guerra, e já volta a falar com insistência em uma nova conflagração;
pensando nos quinze milhões de famintos e desabrigados que erram pela Europa
esquálida à procura de um refúgio para escapar da morte pela inanição, veio ao
nosso espírito aquela profecia do "Homero pernambucano", ao analisar
o que nos deu o século XX logo que decorreram os seus primeiros anos:
O mundo trancou-se
E perdeu-se a chave.
A mensagem é perfeita. Imaginemos
uma pessoa que entra numa casa forte, com um dos cofres à prova de todos os
assaltos, e que por inadvertência deixa que a porta feche às suas costas. Além
dessa catástrofe, não se sabe onde está a chave. O que será da pessoa que está
lá dentro? E se irromper um incêndio?
Pois essa pessoa, leitor, é a humanidade
de hoje. Novas tempestades ameaçam o mundo e, se não houver mútuos entendimentos,
compressões e renúncias recíprocas, não há quem se salve, o mundo trancou-se o
perdeu chave...
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RENATO DE ALENCAR
Revista da Semana, 6 de novembro de 1948.
Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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