Jucá, o tropeiro
Deveras,
camaradas, Jucá Ventura, filho de Minas Gerais e tropeiro desde em menino, era
um companheirão, alegre e estimado, como nenhum outro nas tropas que costumam
botar cargas para Goiás e Mato Grosso e trabalhar naqueles sertões brutos.
Noite
e dia estava pronto para rir, folgar e sustentar uma boa prosa, no que não
havia quem lhe pusesse o pé adiante.
Ninguém
sabia como ele cantar chulas, armar um cururu, repinicar na viola ou contar
histórias, umas gaiatas que faziam estourar de riso, outras de bruxas e
mandingueiros que deixavam a gente toda arrepiada e sem vontade mais de pregar
olho.
Uma
só coisa o aborrecia. Era quando lhe faltava o serviço, mas isso era tão raro
que bem poucos poderiam dizer tê-lo visto calado e amofinado.
Não
havia capataz que o não desejasse em sua tropa, porque não era só de língua que
ele fazia bichas.
Não,
senhor. Quando chegava a hora de trabalho grosso, não se contava um, por mais
pintado que fosse, que deitasse mais barro à parede. Lá isso de atalhar uma
cangalha, de lidar com volumes, arrochar a sobrecarga, acolheirar animais ou
peá-los, sangrá-los, remexer pastos, arrumar no pouso, as cargas, arranjá-las
nos ranchos bem cobertinhas com os ligais por causa da chuva e da umidade, era
ele mestre e tudo num sopro. Enquanto o diabo esfregava una olho, Jucá Ventura
já tinha feito muita coisa.
E
forte de saúde que parecia de ferro. Zombava das maleitas e sezões, cortando
por todo o tempo rios cheios e cruzando pântanos
sem o menor medo de maldades. Nunca
se lembrara de ter tomado mezinhas e beberagens, e dizia com gabolice que
chegaria ao fim da vida sem dar o pulso a cirurgião nenhum, nem sequer para
saber do que morria.
Também
quando ele ia atrás do seu lote de bestas, onze animais gordos de encher o
olho, e que se derreava na sela com o chicote de couro cru apoiado na coxa,
abria o peito à inspiração e lá ia por essas estradas de Cristo, cantando alto
e afinado, contente como um ricaço e cheio de si como se tivesse o rei na
barriga.
Debalde
o vento levantava uma polvadeira
imensa que lhe avermelhava a camisa e lhe grudava o cabelo ao casco da cabeça,
debalde a chuva o molhava até os ossos, debalde o sol parecia querer-lhe assar
a cara e as mãos e derreter o chão, nada mudava, nem um nadinha, o seu gênio
brincador, nem fazia parar a sua força de trabalho e expediente.
Chegado
que fosse ao pouso e não havia um só nesses fundões de Goiás e Mato Grosso que
ele deixasse de reconhecer como se em cada um deles houvera nascido e lá
passado anos inteiros — chegado ao pouso e acomodados os seus animais, se havia
matalotagem farta, comia que metia gosto, se não havia, lá tomava uns bochechos
de água e ferrava num sono gostoso como tudo.
Mas
ninguém se fiasse muito nesse sono. Qualquer barulho, por menor que fosse, o
punha logo de pé: nisso vencia o cachorro mais desconfiado e podia até dar sota
e basto a gansos, que são bichos de natural vigilante.
Também,
se era preciso, passava muito a gosto a noite em claro: e no dia seguinte
estava lépido e bem disposto, como se não houvera novidade.
Quantas
vezes tinha ele deixado de fechar os olhos a contar aos camaradas histórias do
sertão ou a fazer gemer a viola em cantorias e cateretês?
Nem
havia conta.
E
com tal não padecia o serviço: nem capataz nenhum se gabava de o haver pilhado
a cochilar.
Nem
era rapaz de brigas e mexericos: sabia dar-se ao respeito e se não andava com
os chefes e superiores a mostrar os dentes em risotas, nem por isso era carrancudo
e malcriado.
Na
sua guaiaca havia sempre alguma pratinha de sobressalente para não parecer
unhas-de-fome e mofino quando tinha de pagar a pinga aos companheiros da
carreira.
Nunca
se metia em pândegas grossas, nem em jogatinas de estouro; mas ninguém o podia
alcunhar de enjoado, porque nos dias de mareta era boa perna para o pagode.
Engraçado
e farsola nisso fazia figas, tanto assim que as raparigas dos povoados, quando
chegava alguma tropa, iam perguntar notícias de Jucá Ventura, pelo que não
faltava quem levasse a mal àquelas falas de pura amizade.
É
porque neste mundo de Deus há muita língua maldizente que quer botar malícia em
tudo, malícia que só existe no juízo enviesado e falso dos faladores.
Jucá
Ventura, é certo, brincava com as moças das vilas e povoações, algumas até bem
bonitas; mas era negócio de simples palavreado, e nenhuma delas poderia com
verdade dizer que o ouvira falar de amor, ou fazer alguma promessa.
Não,
senhor! Quem tal dissesse, mentiria como um perdido.
Se
o tropeiro era estimado, não eram só raparigas novinhas que lhe mostravam
agrado e simpatias; as velhas também lhe queriam bem e quando ele cruzava por
diante de qualquer casa da estrada, não havia quem deixasse de o saudar com
boas maneiras e franqueza.
E
a razão era uma.
É
que não se passava uma viagem ou do sertão para o mar ou de lá para cá, em que
ele viesse de mãos abanando. Sempre trazia alguma lembrança para as suas
conhecidas, ora uma coisa, ora outra, e houve até ocasião em que deu de
presente uns cortes de fazenda fina e algumas jardas de fita muito vistosa e
larga.
E
depois não queriam que fosse estimado!
Fizessem
os invejosos como ele: tratassem a todos conforme os seus merecimentos. Mas por
estes mundos afora não falta quem meta a catana nos mais sem ter meios de
praticar, já não se quer melhor, mas até igual.
E
porque havia Jucá Ventura de andar pelos caminhos a arrastar a asa e a fazer
pé-de-alferes pelos pousos, como se fora algum rufião mal-intencionado que
botasse a perder as coitadinhas sem experiência?
Nada,
Jucá o tropeiro havia já dado o coração a uma pessoa; e quando um homem de
vergonha estima deveras uma mulher, esse amor não consente outro: é o único na
vida.
Nem
havia mais segredo.
Só
não sabia quem não queria, que em Uberaba é que morava aquela moça, que se
chamava Balbina do Canto, porque o pai, sapateiro de ofício e já falecido,
havia morado numa esquina de beco, que ela era rapariga de truz, morena, mas
corada, de muito propósito e composição e de quem língua nenhuma tinha tido a
pouca vergonha de dizer a mais pequena coisa.
Quem
é que não sabia disso?...
Quem
é que não conhecia a mãe dela, D. Gula, senhora capaz de revidar com um
peteleco o patife que quisesse vir se engraçar com a filha?
Fosse
lá algum mariola dizer que a Babita tinha cabelos pretos como asa de graúna e
tão compridos que passavam além do quadril talvez um palmo, olhos que mexiam
com a gente só no revirado, nariz pequeno, boquinha como se acabasse de comer
pitangas, fosse dizer que a sua cintura era de maribondo, o seu andar engraçado
e faceiro como andar de moça da corte, e havia de ter que fazer com a velha,
boa pessoa no trato quando estava para conversas, mas zangada de uma vez nos
dias de seus azeites.
E
querem ver?
Uma
tarde, a menina estava tomando fresco numa janela e D. Cuia cosendo perto de
outra, por detrás da rótula fechada, porque a casa tinha duas janelas e uma
porta, por sinal que tão juntinhas que não davam para um portão largo. Nisto
passa um mocinho, filho de um capitão da guarda nacional e, tirando-se de seus
cuidados, pediu, nem mais nem menos, um beijinho ao jambo corado — assim chamou
o desavergonhado a carinha da moça.
Babita
recuou toda vexada, mas quem pulou como uma suçuarana foi D. Cuia.
Sem
pensar no que fazia, passou a mão num cabo de vassoura, escancarou a porta e
caiu de pauladas no costado do engraçado que não foi um brinquedo.
Em
vão o moço quis fugir, em vão resistir; só parou a sova quando o pau se quebrou
e por cima levou ele com os pedaços na cara.
E
lá se foi o gaiato sem chapéu e com a nizia rota, acompanhado de uma vaia de
conta que lhe passaram uns meninos da vizinhança e três camaradas de tropa que
assistiram àquele merecido castigo.
Também
depois desse, ninguém mais se lembrou de dizer graçolas a Babita, bem que todos
os dias ela fosse tomando cada vez mais corpo e ficando de pôr água na boca.
Tinha
nesse tempo dezessete anos, e já dera de tábua a três pessoas de consideração.
D.
Cuia lhe falara com verdade e muito assento, mostrando que era preciso tomar
estado, que ela nem sempre havia de estar neste mundo para dar-lhe amparo, que
enfim mais valia uma rapariga mal casada do que bem requestada.
Por
que não havia ela de aceitar o Chico Luís, que estava já arranjado em seus
negócios, tanto assim que tinha sociedade com o Tinoco, de quem a princípio
fora caixeiro? Homem de meia idade, mas de boa figura, procedera sempre como
pessoa de bem que merece dos outros amizade e confiança.
—
Mas, mamãe, objetava Babita, ele é emboaba.
—
E que tem isso, filha de minha alma? Dessa gente saem bons maridos. Depois há
tanto tempo que está na terra, que nem parece filho de outra banda.
—
Não quero este, murmurava a rapariga.
—
Pois bem, continuava D. Cuia, você não quis este por ser português. Mas porque
disse não ao João Grande, lá da Casa Branca?
—
Ora, um soco... e depois zarolho...
—
Zarolho, sim, mas é apalaçado. O pai tem botica e ninguém dirá que seja moço
feio de todo. Outras mais pintadas do que você, Babita, não hão de torcer o
nariz, quando ele as procurar para casamento. Agora me diga o Mané Quetano,
também é zarolho? Rapaz tão bom, tão sossegado e de família limpa! O pai, que
Deus haja, era aqui nesta cidade, quando ela não passava de vila, um graúdo, um
tatu. Esperto como ele só...
—
Então o filho não saiu do pai... é um bocó. D. Cuia costumava então abanar a
cabeça.
—
Minha filha, dizia ela sentenciosamente, permita Deus Nosso Senhor Jesus
Cristo, que você não tire de tudo isso motivos de se arrepender. Querer fazer
boca de ouro e ter feijão preto e carne seca para comer, são coisas que não vão
juntas. Cada um deve pedir a Deus aquilo que basta para a sua posição. Não vá
depois lhe acontecer como à Maria do Frajado, a coitada, que do meu tempo andou
se fazendo de enjoada e, afinal, quando quis casar, já não achou com quem.
Morreu velha e levou palma e capela em cima do caixão. E não foi das mais
infelizes, porque têm se visto muitas coisas que fazem a gente ficar sem pinga
de sangue nas veias, só em pensar nelas.
Babita
rematava tais conversas que muito se repetiam com este estribilho:
—
Deixe estar, mamãezinha, eu hei de me casar.
Quando
Jucá Ventura procurou travar conhecimento na casa, D. Cuia se mostrou meio
carrancuda. O rapaz tinha modos direitos e a sua fama era boa; mas ela não era
mulher de se fiar em aparências e na voz dos outros.
Fez
cara de poucos amigos e observou de parte a filha.
Viu
que Babita corava de cada vez que o moço, todo asseado e faceiro, passava por
diante da janela e cumprimentava com muito respeito as pessoas que lá
estivessem: viu que ele cruzava por demais naquelas paragens, e ficou
aborrecida, não por ser ele tropeiro, mas por poderem as suas passadas dar na
vista dos outros e trazer falatórios.
Jucá
ventura não vinha francamente tocar em negócios de casório, e a menina parecia
estar se inclinando muito por ele.
D.
Cuia, pilhando-a uma vez a seguir com os olhos o tropeiro por entre as frestas
da rótula, chamou-a a contas, mas com toda prudência, porque era pessoa de
experiência e bem sabia que com mulheres enrabichadas
não se deve apertar muito.
—
Vem cá, filha, disse ela, parece que por esta rua anda muito um sujeito que
quer se engraçar com você.
—
Eu não sei, respondeu Babita com susto que pareceu de mau agouro à mãe.
—
Ah! estou que você não reparou, mas eu cá ainda tenho bons olhos. Quando um
moço gosta seriamente de uma rapariga que lhe pode servir de mulher diante de
Deus e dos homens, sem ter que se avexar
de ninguém, deve vir com sinceridades e não fazendo modos de inquietar o
descanso dos outros...
—
Mas ninguém me anda desinquietando,
interrompeu Babita meio arrufada.
—
Mau, pensou lá consigo D. Cuia, a menina está mordida-...
E
alto continuou:
—
Eu não me refiro a você: falo no geral... e, já que estou com a mão na massa,
quero lhe dar alguns conselhos. Os homens, minha filha, são muito enganadores e
do que menos se importam é da honra e do sossego das mulheres. Deitam uns olhos
de peixe morto, reviram o coração de uma pobrezinha e, quando não a atiram de
uma vez no caminho da perdição, metem na boca do mundo que ela é assim, é
assada e não sei mais o quê. A coisa começa sempre por brincadeira: a gente
olha sem pensar em mal: acha graça no namoro e depois, minha cara, quando menos
se cuida sente-se cá dentro no peito uma aflição, um tormento que não para nem
de dia nem de noite. Então se a mulher não tiver juízo, não sabe mais o que há
de fazer. Tudo é sofrimento, tudo é enjoo e desgosto, menos a vista do
tentador. E ele a se rir e como cobra traiçoeira esperando de longe com a boca
aberta, que a rãzinha se chegue por si mesma...
Babita
durante todo esse sermão em que a mãe contava talvez uma história do que
outrora se havia dado com ela, estava sem saber onde pôr os olhos, toda vendida
e com as maçãs do rosto vermelhas que nem bagas de aroeira.
Afinal,
sem dizer palavra, mas abrindo num pranto de choro, atirou-se ao colo da mãe,
escondendo a cara com as mãos.
D.
Cuia não mostrou a menor admiração: pelo contrário beijou com muito carinho a
testa da filha.
—
Eu bem sabia, disse ela, que você já não era como dantes. Mas não se aflija.
Aquele moço tem bom nome, e eu vou me entender com ele. O pior era você querer
esconder que o seu coração já tinha acordado.
—
Mamãe, balbuciou Babita, não... sei... como... foi... Mas ninguém desconfia.
—
É sempre assim, secundou D. Cuia. A gente está desprevenida e da noite para o
dia fica-se presa para toda a vida. O tal rapaz
é tropeiro: não digo que seja bom ofício, mas também não é de fazer vergonha a
ninguém. Quem trabalha é sempre merecedor. Nós por nosso lado não somos filhos
de capitão-mor, nem de juízes de fora; o que podemos desejar é que seja de
família limpa, porque graças a Nossa Senhora Santíssima, e a São Joaquim avô de
Nosso Senhor, você conheceu o seu pai, que Deus lhe dê a glória, e nós dois, ele,
hoje no reino do céu e eu, cá neste vale de lágrimas, também tivemos esta
felicidade, tudo assentado nos livros do Reverendíssimo Vigário; daí para cima
não posso dizer mais, mas enfim nem todos podem dizer tanto...
Foi
então que D. Cuia se meteu num cipoal de palavreado, de onde só saiu quando lhe
faltou a respiração.
Em
todo o caso, ela no dia seguinte se embrulhou na sua manta de sair, uma manta
cor de fundo de garrafa que lhe ia até os pés e que tinha na altura dos ombros
umas espécies de dragonas de retrós preto, fincou um pente alto no cocuruto da
cabeça, e lá foi ter ao rancho onde estava de pouso a tropa de Jucá Ventura.
Justamente
tinha este de madrugadinha partido com o seu lote de bestas para esperar os
companheiros daí a vinte léguas no caminho de Goiás.
—
E quando estará de volta? perguntou meio descorada D. Cuia.
—
Quem sabe se daqui a dois pares de semanas, respondeu um outro tropeiro.
A
voltar para a casa, a coitada da mãe ia remexendo no seu espírito coisas bem
tristes. Havia sido o que ela supunha: o tal sujeito era como os outros. E a
sua Babita, a Babita do seu coração, já enamorada, não ia sofrer, se magoar, ficar
magra e doente, e quem podia dizer o que mais?
Malditos
homens que vêm bulir por maldade com as mocinhas e pôr as casas de família em
dobadoura!
D.
Cuia não disse à filha a verdade.
Contou
que Jucá Ventura tinha partido, com efeito, mas não sem que ela lhe dissesse
duas palavrinhas.
—
Então? perguntou a moça com receio.
—
Então ele ficou muito admirado e meio corrido, quando viu que eu estava
corrente com as suas passadas, mas, falando com franqueza, não pude saber se
ele quer bem ou não a você.
—
Quer, mamãe, quer! exclamou Babita pegando logo fogo. Tenho toda certeza.
—
É bom não pensar assim... Enfim ele há de voltar, e saberemos então se é o que
você julga dele, ou se não passa de um mariola que hei de pôr a tinir como
aquele filho do capitãozinho.
Nisto
parou a conversa, e durante muitas e muitas semanas não se falou naquela casa
em Jucá Ventura.
A
mocinha estava um pouco macambúzia: não chegava à janela e não queria sair, mas
comia com vontade e não parecia começar a ficar magra.
Durante
este tempo, o nosso tropeiro seguia o seu caminho, jururu e abatido. Se
cantava, era com uma voz abafada que fazia ainda mais triste a solidão.
Estava
apaixonado às direitas, e a casa de D. Cuia e o rosto da namorada não lhe saíam
da memória.
Quantos
suspiros lhe rebentavam do peito! Era uma coisa sem conta, e se no serviço não
afrouxava é porque só no trabalho achava algum consolo.
E
lá ia cantando, improvisando na toada do cateretê:
Babita, meu bem
Babita,
Habita do
coração,
Tem pena de
minhas penas,
Se não morro de
paixão.
Passarinho que
tem asa
Depressa voa ao
seu bem.
Asa não tenho,
nem tenho
Quem me possa
querer bem.
Desgraçado do
tropeiro,
Minha sina é só
gemer:
Meu destino
caminhar,
Caminhar até
morrer.
Chaga viva em
mim abriu
Teu olhar,
mulher querida.
Mas de ti eu não
me queixo,
Pois adoro essa
ferida.
Tenham os
"rezes" seus palácios
Ouro e mais
prata infinita,
Eu só quero
deste mundo
Ser querido de
Babita.
Mas, coitado,
por que choro?
"Quem me
ouvir pode neste ermo?"
Se o meu canto
não tem eco,
Meu tormento não
tem termo.
Ó rochedos,
montes, vales
Ó campinas tão
floridas,
Compaixão deveis
sentir
Dessas mágoas
tão crescidas!...
Nessa versalhada é que Jucá Ventura desafogava o peito, de modo que todos sabiam por quem ficara preso o tropeiro modelo.
À
noite, ao redor da fogueira, ele espantava os seus males, e a viola chorava nos
dedos do namorado. Os companheiros ficavam caladinhos a ouvir o cantor, cuja
voz ia longe que era coisa de pasmar.
Ventura me
chamam todos,
Desgraça devem
chamar.
Pois aquela a
quem adoro
Não me quer a
mim amar.
Sou tropeiro,
não sou rico
Casas não tenho,
nem ouro;
Mas no peito
tenho honra,
E não sou filho
de mouro.
No braço tenho
talento
Na cara tenho
vergonha,
Não vivo de
comer bichos
No lodo como
cegonha.
Ah! se apaga em
mim a vida!
Sinto já que vou
morrer.
Mas não sei se
chore ou não
Por agora
merecer.
Pois embora eu
seja moço,
Por efeito da
paixão
Com certeza hei
de findar
Nas funduras do
sertão.
Nestas cantigas passava Ventura a noite e já o braseiro se apagara, e já as barras do dia riscavam os lados do nascente, e ele ainda ficava de viola na mão, tocando e verseando.
Também
a primeira coisa que fez, quando se apeou em Uberaba, foi logo procurar ver a
quem lhe tinha inspirado tanta quadrinha bonita.
O
caso foi que, como geralmente se diz, encontrou-se a ronda com a patrulha.
Mal
ele apontava na rua, saiu-lhe pela frente D. Cuia com um ar muito agradável e
cheio de riso.
Ventura
quis voltar, não pôde e parou.
A
esse tempo já a mãe de Babita o tinha saudado com muito boas maneiras,
perguntando notícias da saúde e da última viagem e mais outras coisas.
Ventura
ia respondendo meio engasgado, mas ficou passado de uma vez quando, conversa
puxando conversa, D. Gula o convidou para descansar em sua casa.
O
moço no ato de se sentar já não estava muito em si, mas quando viu entrar na
sala a rapariga por quem suspirava tanto, perdeu de todo a cabeça.
Não
soube mais dizer uma palavra.
Se
queria falar, sentia um nó na garganta; se queria ficar calado, vinha-lhe a
comichão de falar.
Então
passou-se uma coisa de deixar a qualquer pasmado. Foi que no fim de sua visita,
uma visita de médico, ele pediu a mão de Babita, que Babita ficou muito corada,
mas disse sim, que a mãe de Babita chorou algumas lágrimas e que consentiu e
pôs-se a falar muito e a contar casos e mais casos, dando de língua que era de
pôr tonto a um homem de juízo, quanto mais a um namorado!
Ele levantou-se
cambaleando.
Era noivo da rapariga mais bonita de Uberaba!...
Era noivo da rapariga mais bonita de Uberaba!...
A
notícia correu logo à cidade, como se fosse novidade chegada do Rio de Janeiro.
Uns aprovaram muito, outros acharam a coisa má, outros enfim nada disseram, no
que fizeram melhor do que os que se metiam a abelhudos.
Os
que aprovaram, mostravam que as idades dos noivos estavam muito combinadas e
achavam direito que um pobre casasse com uma pobre e outras coisas mais.
Os
que empurravam a tesoura, diziam que o ofício de tropeiro era baixo e por
demais andejo, sendo assim o casal obrigado a viver sempre separado. E afinal
em que mãos ia cair uma menina tão bem parecida? Nas de um camarada de tropa...
Alto
lá, minha gente! Falem quanto puderem, intrometam-se na vida e nos interesses
dos outros como melhor quiserem, mas por amor à verdade não digam que o noivo
não merecia a noiva. Isto nunca!
Não
era Ventura um rapaz sacudido, de 25 anos, olhos rasgados, cor morena, bigodes
finos, boca bem feia, e barba sempre penteada? Não. tinha ele cabelos cheios de
anéis? Eram grossos, é certo, mas isso era do pó da estrada, e esse pó dava
sinal de que ele trabalhava para ganhar honradamente o pão de cada dia.
Falassem,
uns por bem, outros por mal, de sua pobreza, mas não tivessem susto de
qualidade nenhuma. A sua família, sua sogra, mulher e; filhos, se Deus lhos
olhasse, nunca haviam de ser pesados a ninguém. Graças aos céus, braços não lhe
faltavam para sustentar a sua gente, e, se até então ainda não tinha ajuntado
bom dinheiro, é que como solteiro botava fora tudo que ganhava e não fazia
conta do futuro.
Agora
o caso mudava de figura, e para provar é que ele tratou logo de preparar um
montezinho de prata já com vista nos gastos dos papéis de casamento e tudo o
mais, além de presentes que se dão naquela ocasião.
Enfim
quer os moradores quisessem, quer não, Babita e Ventura eram noivos, tinham já
o sim de D. Gula, a única que podia naquele negócio serrar de cima, e com o
favor de Deus e das leis deste Império do Brasil que Sua Majestade D. Pedro I
nos deu, estavam contentes como se tivessem ganho o reino do céu.
O
casório ficou marcado para daí a três meses, quando o tropeiro voltasse de uma
viagem que tinha de fazer até a cidade de São Paulo e que já estava paga.
No
momento da despedida os noivos choraram como dois perdidos; mas no coração lhes
ficava a quentura da felicidade.
Daí
a três meses.
No
tempo marcado voltou Ventura mais amorudo
do que quando partira e com as mãos cheias de presentes. D. Cuia ganhou um
vestido de muito boa seda e Babita uma joia de ouro verdadeiro.
Sim,
senhor! não era falsificado. O boticário que entendia de ourives o disse, e o
que saía da boca dele era que nem palavra de Evangelho, pelo menos ninguém o
tinha pilhado ainda em mentiras.
Enquanto
o noivo estava viajando, Babita não ficou de mãos abanando. Tinha cosido todo o
seu enxoval e arranjado com os dedinhos o vestido do casamento, que a mulher do
comandante superior da guarda nacional fez o favor de cortar e acertar, porque
era uma senhora muito estimável. Também a coisa parecia uma maravilha de feitio
e assentada.
Mas
o que é o destino da gente!
Foi
senão quando por este tempo Uberaba pôs-se numa dobadoura que ninguém na terra
se lembrava de coisa igual. Uberaba tão sossegadinha! Longe de tudo e de todos
no meio de seus sertões!
Não
se falava senão em guerra!
Jucá
Ventura desde São Paulo viera ouvindo contar que o Império do Brasil estava
numa pendência muito grossa com uma república chamada do Paraguai, que havia
muito fogo de parte a parte, gente e mais gente partia para fora, que muitos
iam por gosto, outros a pau e corda, que o recrutamento roncava feio e forte e
os rapazes andavam disparando para os matos, mas como ninguém veio mexer com a
vida dele e lhe perguntar quantos anos tinha, seguiu sossegado o seu caminho do
interior, sem se ocupar com as novidades, a vir se casar, única coisa que lhe
importava neste mundo.
Eis
que encontra na sua cidade a mesma revolução, o mesmo rebuliço.
Parece
que os negócios não iam bem. O governo da corte tinha posto nos jornais que todos
deviam combater, que a guarda nacional havia de marchar, que era a ocasião da
gente mostrar a sua coragem e uma lengalenga muito grande, tudo para levantar
voluntários.
Minas
Gerais, só Minas devia dar seis mil soldados. Imaginem!
Ora
Minas é muito grande e tem bastante gente, mas onde é que se ia buscar tanto
povo de uma vez para pôr de arma ao ombro! Esses homens lá de cima que governam
os outros às vezes não pensam com juízo. Era uma exigência por demais.
Além
disto todos sabiam que tinham marchado de São Paulo e de Ouro Preto duas forças
grandes para se juntarem em Uberaba, e daí seguirem para os lados de Mato
Grosso, que os inimigos tinham tomado à força e onde estavam fazendo
selvagerias sem conta nos brasileiros que cortava o coração só de ouvir falar.
Tudo
isto não bastava.
Dias
depois da chegada de Ventura, espalhou-se na cidade que os guardas nacionais
iam ser reunidos, que muitos haviam de seguir com a expedição, que quem
desertasse era logo fuzilado e um bando de histórias capazes de assustar os
mais valentes.
As
famílias andavam com o coração na mão e com toda a razão, porque não tardou
muito e aí chegaram uns oficiais da lª linha para juntar tropa e ensinar o
manejo de arma.
Então
é que foi susto!
No
meio de todo esse barulho, Babita não tinha um momento de descanso. Jucá
Ventura era guarda nacional, ainda solteiro: estava na flor dos anos e podia
ser chamado.
—
Ah! meu Deus, dizia ela toda em pranto, e se você tiver de marchar?
—
Não marcho, não, respondia o tropeiro para lhe dar algum sossego.
A
mocinha perguntava abaixando a voz:
—
Então você deserta?
—
Isso nunca! retrucava Jucá, nunca fugi de coisa nenhuma! Mas tenho certeza de
que não vou. Não me chamam. Você verá...
Esta
certeza durou pouco tempo.
Um
belo dia o comandante superior da guarda nacional mandou-lhe por um cabo de
esquadra aviso, ordenando que chegasse naquela mesma hora ao palácio da câmara
municipal, e aí, não só a ele, como a mais quinze companheiros fez uma fala
meio gaguejada em que disse que era preciso ir acabar com o inimigo, que os
brasileiros nunca tinham sido vencidos, que a gente de Uberaba ia ganhar um
nome ilustre, que todos haviam de voltar com vida e bom dinheiro no bolso, que
o Brasil contava com os seus filhos, etc., etc., e depois de toda essa perlenga
acabou dando vivas ao Imperador e à Constituição, no que foi apanhado com muito
barulho por outros homens de casaca reunidos a um lado da sala.
Mas
aí é que cabia bem uma pergunta.
Por
que é que aquele comandante superior não marchava também para a guerra? Então
só lá deviam ir os pobres soldados para chuchar bala como terra em pó, e os
coronéis e mais oficiais de dragonas cheias a se deixarem ficar muito a gosto e
só enchendo as bochechas com patriotadas?
Nada:
isso era mau, deveras. Se havia essa necessidade, como diziam, então que todos
se sacrificassem.
O
pequeno quando vê o grande sair de seus cômodos e mostrar boa vontade, suporta
tudo com cara alegre, não assim a empurrar-se gente para obedecer ao governo e
metido na toca caladinho!...
Assim
também pensava Jucá Ventura, mas ele não disse patavina, e sem demora foi
mandado para o quartel, uma casa de paredes altas e vigiada que parecia uma
cadeia.
Ali
já estavam reunidos uns sessenta homens meios assarapantados que todos os dias
ouviam falas e mais falas do comandante daquele depósito — um major de linha,
mandado de propósito da corte para ensinar recrutas.
Mas
o major debalde punha os bofes de fora: não havia influência nenhuma.
Jucá
Ventura só viu caras muito jururus.
Quando
Babita teve conhecimento do que sucedera ao noivo, caiu num desmaio que pôs D.
Cuia tonta; depois as duas choraram juntas até não terem mais lágrimas nos
olhos.
Uma
carta do coitado ainda mais agravou as dores. Via-se bem que ele queria se
fazer de forte, mas que estava por seu lado desanimado.
Então
D. Gula pôs o seu capote comprido e lá se foi ao quartel para ver se trocava
alguma palavra com o rapaz, mas não pôde entrar, porque na porta estava um cabo
de esquadra de olho arregalado e muito atrevido que passeava como um rei, de um
lado para outro, segurando na mão uma espada desembainhada. Quando a boa da
velha foi se chegando para mais perto, ele gritou — Passe de largo! — com uma
voz de lobisomem.
Isto
contou ela à filha, mas não lhe disse que ouvira o cabo falar numa guerra que
houve no tempo de dantes em que ele com mais dois companheiros tinha destroçado
catorze castelhanos, que não era homem de brincadeira e que cortaria pelo meio
todos aqueles que quisessem sair do quartel sem passe do senhor major.
Foi
o que ele prometeu fazer e quando falava alisava o bigode com raiva e rangia os
dentes como porco-do-mato.
Homens
assim é que deviam ir para a guerra, já que gostavam tanto da história, e não
uns pobres moços sossegados que tinham suas famílias ou estavam em vésperas de
formar casa. Fosse lá o três contra
catorze, mas não uns guardas nacionais que nunca haviam feito mal a
ninguém.
Eram
estas as reflexões de D. Cuia, reflexões, que ela não passou a ninguém, porque
não gostava de meter o bedelho nos negócios gerais, entendendo cora razão que
as mulheres, quando se atiram a discursar nestas e noutras coisas, dizem por
força desacertos.
Passou-se
um bom par de dias até que a boa senhora pudesse trocar língua com Jucá o
tropeiro. Ele estava sossegado, e entretanto bastante murcho, não que o
dissesse, mas pela cara logo se via isso.
O
recado que ele deu para Babita não se acabava de tão comprido, mas em duas
palavras queria dizer amor para sempre.
Por
esse tempo os guardas nacionais fechados e trancadinhos no que se chamava
quartel e que já continha uns centos de pessoas, receberam uma bandeira novinha
em folha, toda bordado a ouro, coisa enfim muito rica e vistosa.
Houve
muita pancadaria de música, muito foguete do ar, estouros de bombas, e
falatórios compridos cheios de entusiasmo.
O
comandante superior tomou novamente a palavra e disse que com o contingente
mineiro a guerra havia por força que acabar, que Uberaba ia dessa feita para a
história, que todos deviam marchar com a maior alegria e que aqueles que
desertassem haviam de receber castigo de Deus e dos homens. Mas o espertalhão
não prometeu dar o exemplo e tomar parte nos perigos e honrarias. Isto fiava-se
mais fino.
Falaram
em seguida o major de lª linha e o cirurgião, ambos com muito fogo, e no fim do
seu palavreado, todos romperam em vivas ao Brasil, e morras ao Paraguai, que a
casa parecia querer vir abaixo.
O
cabo três contra catorze já com
algumas garrafas de cerveja no bucho, esbugalhava uns olhos muito graúdos e
fazia com os dentes tal barulho que semelhava não um caititu, mas uma vara
inteira de porcos. Ele pedia a um recruta, vindo na véspera da bagagem e que
estava tremendo de susto, que fosse buscar oito ou dez castelhanos, armados de
lança e espada, para ver como num instantinho os havia de cortar em pedaços
miúdos.
Acabados
os discursos, cada guarda nacional, chamado por uma lista de nomes, veio jurar
por baixo da bandeira e com a mão aberta sobre os santos evangelhos em como
havia de defender até a morte o imperador e a constituição e nunca desamparar o
seu posto de honra.
Quem
disse o juramento foi Jucá Ventura e, a falar a verdade, nesse momento o
coração lhe tremeu dentro do peito. Os companheiros diziam, sim, sim, mas eram uns sim muito chochinhos que em muitos
parecia mais um soluço do que uma promessa que que só Deus podia quebrar.
Depois
retiraram-se os convidados; apagou-se a iluminação — meia dúzia de lanternas de
papel — e o quartel ficou todo às escuras, guardado por uma sentinela que
chorava baixinho e pelos roncos de três
contra catorze.
O
valente cabo de esquadra ao entornar os últimos copos deixou-se cair na porta
estirado a fio comprido, como que para impedir com o seu corpo a escapula de
algum medroso.
Na
grande sala que servia de tarimba tudo era silêncio e trevas.
Jucá
Ventura, depois de dar um suspiro arrancado do fundo da alma, pegou a dormir e
a sonhar com Babita. De repente alguém o puxou por um braço.
—
Que há de novo? perguntou o mineiro ainda tonto de sono.
—
Fale baixo, murmurou alguém.
—
Mas o que há? replicou o outro abaixando a voz.
—
Somos nós, responderam quase que ao mesmo tempo cinco ou seis mas tão baixinho
que parecia um sopro.
Eram
alguns guardas nacionais, todos filhos de Uberaba.
—
Jucá, continuou um deles, nós viemos convidar vancê para abrir campo. Parece que o negócio vai ficando sério e
que chegou a hora de cada um cuidar de si.
Ventura
respondeu com um gemido abafado.
—
Ah! rapazes, minha intenção era essa, mas agora...
—
Agora, o quê?
—
Agora não posso.
—
E por quê?
—
A sorte não quis. Jurei com a mão posta no livro sagrado, e decididamente hei
de ir por estas terras a fora. Deus Nosso Senhor me dê coragem...
Houve
silêncio no grupo.
—
Mas... então, disse com hesitação um deles, vancê...
não vá... dar parte de nós...
—
Deus me livre! respondeu Ventura. Cada qual tome o rumo que quiser. Eu não
jurei que havia de guardar os outros, mas só de levar o meu vulto a defender o
Brasil.
E,
cobrindo a cabeça, voltou-se para o outro lado.
De
manhã viu-se que haviam desertado quinze guardas nacionais e que a sentinela do
portão tinha também batido a linda plumagem.
Mas
eis que na cidade entraram num dia de sol claro, umas máquinas esquisitas,
canos feitos de bronze, assentes em grandes rodas e acompanhadas de um trem
pesado, tudo puxado por muitas juntas de bois.
Essa
maquinada vinha com muito barulho e pôs em rebuliço todos os moradores.
—
Que é isto? Que não é? perguntavam eles porque nunca tinham visto artilharias.
Babita
com os olhos rasos d'água, viu passar pelas janelas da casa aquela procissão
capaz de meter medo aos mais valentes e soube que aqueles canudos iam para Mato
Grosso para fazer fogo nos paraguaios.
—
Meus santos do paraíso, exclamou D. Cuia pondo as mãos de admirada, que pecado
atirar em cristãos com bacamartes desses!
Na
noite da chegada da artilharia desertaram de pancada quarenta guardas
nacionais, e ninguém mais lhes pôs o olho em cima.
Três contra catorze andava danado e
gritava, no meio da praça da matriz, que aquilo era uma pouca vergonha e que
ele só com um cacete curto era bastante para dar conta de todos os moradores de
uma cidade tão medrosa e — com perdão da palavra — safada, assim dizia o cabo de esquadra.
Pouco
tempo depois chegou de Ouro Preto a brigada mineira que foi acampar no
Cachimbo, a uma légua de Uberaba, brigada luzida, linda mesmo e capaz de
influir a preás do campo... mas qual!... de noite fugiram mais vinte dos
aquartelados.
Só
ficaram Jucá Ventura e dois companheiros.
Ah!
Quanto custará a tropeiro resistir à correnteza do exemplo e deixar-se estar
quietinho quando os mais abriam pernas e iam cuidar da vida! Quanta coragem
para dizer "não" à Babita que todos os dias, todos lhe mandava
recados que fugisse, que não fosse tolo, que ela não podia mais viver assim e
era noiva de um ingrato, e não sei o que mais, e mil coisas e ditos de fazer
sangrar o coração.
Mas
ele tinha jurado!
Quando
no quartel não restaram senão três homens, o comandante superior, não se fiando
neles, mandou trancafiá-los sem crime nem culpa na cadeia. Queria ao menos
segurar bem esses últimos.
Ventura
baixou a cabeça e lá foi indo.
Já
então haviam chegado umas forças de São Paulo e estava marcado o dia 4 de julho
de 1865 para a partida de toda expedição que devia se internar pelo sertão
bravio à procura do inimigo.
Na
véspera daquele dia terrível, Babita veio despedir-se do noivo que estava como
um desgraçado galé encostado às grades da cadeia.
—
Ah! minha amada, disse Ventura pegando-lhe na mão, isto é que é ser desinfeliz de uma vez!...
—
A culpa é de vassuncê, respondeu a
moça soluçando.
—
Mas se eu pus a mão no livro sagrado e jurei!... Foi destino...
—
Eu não posso, interrompeu D. Cuia, dizer que vassuncê faz mal... entretanto...
—
O que devemos fazer, disse o coitado depois de uma pausa em que todos os três
choravam, é não perder a coragem... Eu vou para a guerra, é verdade; mas isso
não quer dizer que já esteja defunto. Hei de voltar com toda a certeza, e então
seremos felizes para sempre... Tenho o meu amor para me salvar. Agora, Babita,
eu lhe peço uma coisa: seja sempre fiel ao seu noivo. Quanto a mim lhe juro
pelas sete chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo que, na batalha ou no descanso,
não haverá uma só hora que eu deixe de pensar em quem tanto quero.
E,
voltando-se para D. Cuia, acrescentou:
—
Agora a senhora leve a sua filha, porque não parece bem me verem chorar como se
fosse um fracalhão. Tenham fé no que digo: eu hei de voltar...
Babita
soluçava como uma criança.
No
dia seguinte, as forças da expedição abalaram do acampamento do Cachimbo.
Foi
uma coisa bonita.
Os
batalhões estavam unidos uns aos outros, todos bem fardados; o bronze das peças
de artilharia faiscava aos raios do sol; as músicas tocavam o hino nacional, e
as cornetas faziam uma charamelada de pôr surda uma pessoa.
D.
Cuia e sua filha tinham ido dizer adeus a Jucá Ventura e para isso caminharam a
pé e de madrugadinha, ainda escuridão, légua e meia, distância da cidade ao
acampamento.
O
tropeiro, pobrezinho, em lugar de sua roupa costumeira, já estava metido numa
grande blusa militar e às costas uma mochila que havia de ter bom peso, além da
espingarda e do mais.
Quando
ele apertou pela última vez Babita nos braços, disse-lhe a modo de consolo:
—
Não sou assim mesmo dos mais caiporas. Botaram-me no batalhão mineiro: estou
rodeado de patrícios e conheço bem o sertão. Não é isto que me assusta.
E,
com um suspiro, concluiu baixinho:
—
Ah! se eu não tivesse jurado! O sinal da marcha soou, e Jucá Ventura partiu de
arma ao ombro e com passo dobrado.
Contar
tudo o que o tropeiro sofreu na expedição de Mato Grosso, fora contar o que
todos, desde o comandante das forças até o último soldado, sofreram, e é coisa
de encher livros e livros.
Basta
dizer que mal se entrou no sertão, começou-se a padecer de fome, que desde
então acompanhou sempre e sempre toda aquela gente, como se fizesse parte da
bagagem, e fosse coisa indispensável, ora apertando deveras, ora menos forte,
mas ali pronta a toda a hora para aparecer, quando menos se cuidasse.
Agora
falando com o coração na mão, foi preciso muita paciência, muita confiança em
Deus para não se desanimar de uma vez e querer antes morrer do que aturar tanta
calamidade. Sem gabolice, o batalhão de Voluntários de Minas é que dava o
exemplo ao resto da expedição. Era uma rapaziada toda limpa; oficiais muito
bons, amigos de seus soldados, e comandante meio zangado mas justiceiro e cheio
de disciplina. Deveras fazia gosto servir nesse corpo.
Jucá
Ventura tinha sido bom camarada de tropa; foi excelente soldado, porque, antes
de tudo, era um homem que queria sempre cumprir com a sua obrigação. Logo na
saída de Uberaba foi feito cabo de esquadra e como sabia ler e escrever
corrente, no Coxim, passou a furriel.
Por
um pouco mais chegava a sargento, mas, além dele ser pouco inbicionciro, não se
ajeitava em riscar mapas do dia e relações de mostra.
No
que era mestre, era em gaiatar, mais para distrair os outros, do que por gosto
de galhofa. Na verdade não se esquecia um minuto de sua bonita noiva: escrevia
a ela cartas muito compridas e, enquanto houve correio, recebia, lá de vez em
vez, respostas muito amorudas do punho de D. Cuia, mas do coração de Babita.
Depressa,
porém, desse gostinho devia se desmamar, porque não houve mais estafetas e até
oficiais de posto graúdo ficaram seis e mais meses sem poder receber uma só
letra de suas famílias, todas moradoras na corte do Rio de Janeiro, de muita
consideração e apalaçadas.
Lá
nos pântanos de Miranda, quando a
expedição foi se meter no tijuco até o pescoço é que houve dias da gente
duvidar da bondade de Deus.
Cruz!
Foi o diabo. Cristãos ficaram atolados no lodo que de lá nunca mais saíra.
Morria
goianada aos punhados, não que sejam
mofinos de ânimo, pelo contrário no fogo são bons deveras, mas, fanadinhos de
corpo, saíam da fartura para cair na miséria, e isto lhes clava na fraqueza.
Para
mostrar o que foi aquela travessia, 50 léguas de alagadiços e tremedais, que
era mesmo um mar de Espanha, basta dizer que do Coxim saíram mais de 3.000
homens sadios e ao Taboco só chegaram pouco mais de dois mil, quase todos agorentados.
Jucá
Ventura não tivera a menor moléstia, não que se poupasse ao trabalho, mas
porque era de seu natural resistir às epidemias. Isso para o serviço foi sempre
dos melhores e de machado em punho para derrubar árvores e fazer pontes ou de
foice para a faxina era um grande.
Também
os oficiais o tinham em muita estimação e nos acampamentos só se ouvia gritar:
"Furriel Ventura, vai fazer isto. Furriel Ventura, vai fazer aquilo."
E ele de boa vontade sempre, quando os companheiros estavam quebrados de
cansaço, obedecia aos seus superiores, não só do seu corpo, como de outros
batalhões.
O
comandante de sua companhia, o Sr. capitão Jucá Duarte, que morreu, coitado, em
Miranda todo inchado, moço tão bom que até os soldados choravam quando o iam
carregando no caixão, queria muito ao furriel, assim como o Sr. major Jucá
Borges, que depois veio a comandar o batalhão e era muito valente e, segundo a
gazeta, se afogou há pouco no Araguaia de Goiás.
Era
um homem muito alegre esse major e tratava bem os soldados, e também um
capitão, quase criança, chamado Sr. capitão Enoc, e mais o Sr. tenente Tobias,
senhor tenente Raimundo e outros muitos.
Por
isso fazia gosto servir naquele batalhão. O comandante Enéias era homem sério e
meio carrancudo, mas não deixava perecer a sua gente de maus tratos e
injustiças.
A
força de Mato Grosso entrou na vila de Miranda onde sofreu muito de moléstias
esquisitas que levaram uma máquina de
oficiais e soldados ao cemitério; depois foi para Nioac, que outros chamam
Anhuac, e é lugar bonito e sadio; desceu para a colônia de Miranda; desceu
ainda para o Apa e aí entrou no Paraguai, assim com ares de quem queria engolir
aquela terra toda.
Quanto
tempo já se tinha passado desde a saída de Uberaba! Mais de dois anos...
E
carta de Babita, nem sombra. Também só chegava uma ou outra, isso mesmo para a
gente lá de cima, e saída do Rio de Janeiro e outras cidades que valem alguma
coisa.
Ventura
não desanimava, mas, para falar a verdade, já não escrevia mais. Que é de papel
para no fundo de sertões brutos estar riscando finezas, quando muitas centenas
de léguas separam os namorados?
Se
a expedição tinha sofrido para chegar ao Apa, quando ela se viu sem gado nem
mantimentos e teve que recuar de um lugar chamado Invernada de Laguna, parece
que tudo quanto é desgraça se juntou para fazer a gente ter saudades dos tempos
de dantes.
Que
calamidade, meu Deus!
Inimigo
era o menos, e Jucá Ventura fez pagar caro a muito castelhano de blusa vermelha
o incômodo de vir os procurar tão longe, mas o cólera, mas a fome, mas o fogo
na macega do campo, as chuvas, os aguaceiros, o sol de rachar, os rios todos
cheios, a falta de caminhos, cruz! era de quebrantar a coragem de um Roldão.
Tanto
sofrimento ao mesmo tempo só se vê uma vez em cem anos, e quem escapou daquela
feita pode dizer que tomou passagem para a eternidade, mas não embarcou por ser
afilhado da sorte.
Jucá
Ventura nos dias de maior desespero ainda achava ocasião de dizer a sua
gaiatazinha, mas já a sua prosa não alegrava a ninguém: tudo andava muito jururu
e murcho, porque se via quase a morte estar voando por cima da cabeça da gente,
matando este, matando aquele, aquele outro e assombrando a todos.
Daí
a pouco até nem houve outro remédio senão deixar jogados no meio do campo como
carniça mais de duzentos companheiros a morrerem de cólera e de ferimentos.
E
os ouvidos ouviam aqueles gritos sem ficarem surdos, e o coração batia, mas
parecia pedra ou pau porque nada sentia.
Ë
que naquela hora cada qual cuidava em si e só tratava de salvar o vulto.
Os
bons e fortes se encostavam aos bons, e a expedição vinha rolando as suas
misérias, caminhando quanto podia.
Lá
se foi o Sr. coronel Camisão que comandava aquela tropa toda, lá se foi o Sr.
tenente-coronel Juvêncio, e de nada lhes valeram as divisas de ouro bem grossas
que tinham no braço.
Era
mesmo um despotismo da morte, e nem
se livrou quem estava já afeito a aqueles lugares malvados e de pestes e foram
batendo a bota o prático Francisco Lopes e o filho dele, por sinal que iam
deixando os brasileiros no sertão que ninguém conhecia, nem tinha ainda cruzado,
e donde não havia de escapar um só ao menos para vir contar onde é que paravam
os ossos dos outros.
Mas
Deus foi servido mandar que morressem, um no dia, o outro na hora em que a
coluna pisou terreno conhecido. Olhe que foi um milagre!
Afinal,
depois de toda aquela barulhada, morre daqui, morre dacolá, chegou-se a
salvamento, tudo muito porco, muito magro e esfarrapado, mas enfim ainda com.
vida e vontade de saber o que era passar um pouco melhorzinho do que naquela
desgraça.
Foi
no Canuto.
Os
paraguaios nos deixaram de cansados e voltaram lá para as suas tocas: nós
então, fizemos acampamento perto de um rio grande, o Aquidauana, que só uma
força assim de água é que podia acabar com a sujidade que todos, soldados e
oficiais, traziam no corpo e na roupa.
Aí
o major José Tomás, que tinha tomado o comando, disse numa ordem do dia que os
inimigos estavam anarquizados com a
nossa retirada, que os batalhões tinham feito maravilha e que a história havia
de falar nos soldados de Mato Grosso e um bando mais de coisas.
Quando
Jucá Ventura ouviu o sargento da companhia estar lendo toda aquela escrita,
disse para os outros:
—
Olhe, gente, custou caro este recado, mas afinal chegou.
E
os outros se riram, porque já estava passado o perigo, mas deveras o furriel
tinha razão. Mais de mil e seiscentos homens foram ao Apa cheios de vida e talento, e, em menos de mês e meio, de
lá voltaram só uns setecentos, cobertos de bicharia e esfarrapados que parecia
uma tropa de ladrões do mato.
Não,
aquilo foi demais!
Depois
dessas passadas, Jucá Ventura foi um o batalhão para Cuiabá, daí desceu para o
Paraguai, ainda entrou em fogo e foi acampar no Humaitá, que outrora fez
barulho no mundo, mas que era então uma barranca de rio.
Cinco
anos lá se tinham ido depois que ele saíra de Uberaba, e, há mais de quatro,
não recebera uma cartinha de Babita, uma notícia sequer.
Mas
porém o rapaz era de palavra e não
houve, neste tempo todo, um só dia, uma só hora, em que o seu pensamento não
fizesse viagem até a cidade em que morava a namorada.
Afinal,
como tudo tem um fim neste mundo, a guerra acabou.
O
batalhão nº 17 voltou para o Rio de Janeiro: houve muita festa; discursos como
terra, gritaria, e, o que valia mais, cada voluntário recebeu uma boa bolada de
cobres na pagadoria da corte.
Jucá
Ventura que tinha uns fardamentos atrasados e certas diferenças de soldo, de
uma assentada meteu no bolso trezentos mil réis do prêmio de voluntário da
pátria e setecentos e picos do resto.
Mais
de um conto de réis em notas, saídas fresquinhas da caixa do governo.
Então
o batalhão seguiu para Ouro Preto por Juiz de Fora, e, por toda a parte onde
passava havia muito discurso, havia festa a valer e tudo o mais.
Um
dia, enfim, cada um teve licença de tomar o rumo de sua casa.
Foi
um grande dia aquele!...
Jucá
Ventura montou a cavalo para voltar a Uberaba, assim com modos de passarinho
que achou a porta da gaiola aberta e lá vai pelos ares a fora, tonto de alegria
e cantando como um maluco. A saúde do tropeiro era sempre a mesma: pouca
diferença fazia no rosto, mas nas maneiras era mais compassado e orgulhoso.
Também
estava com o peito cheio de medalhas de campanha e ganhara até o hábito da
Rosa.
Tinha
honras de capitão!
Oh!
como ele foi rápido por aquelas estradas! Não perguntou notícias a ninguém.
O
coração lhe batia sossegado e só o que queria era chegar, chegar depressa...
Foi
num dia de sol bonito que entrou em Uberaba, a 15 de julho de 1870 e frechou
direitinho para a casa da noiva.
À
porta, estava sentada uma mulher com uma criancinha no colo.
Quando
Jucá Ventura parou defronte, ela deu um grito forte, levantou-se e correu para
dentro como uma doida.
Era
Babita!
Jucá
Ventura apeou do cavalo trêmulo e assombrado.
Sem
saber pelo que, suava frio e estava com os olhos escuros.
Mas
fazendo-se de forte, gritou como quem queria parecer alegre, mas não estava:
—
Ó de casa, ó minha gente!
Ninguém
lhe respondeu.
Ele
entrou na sala.
Nada
estava mudado: eram as mesmas cadeiras, o mesmo sofá velho, uma imagem do
Menino Jesus entre dois vasinhos com flores, tudo como há cinco anos passados.
Ventura
bateu palmas.
Ninguém
lhe respondeu ainda.
Oh!
Era caso de pensar.
O
nosso homem assarapantado empurrou a porta do interior... nem viva alma na
varanda: correu a casa toda, nada.
Mas
estava claro que ali há pouco tinha estado gente que havia fugido às carreiras.
Decididamente
sucedera alguma novidade graúda.
Jucá
Ventura sentiu a boca lhe amargar. Padecia que nem um condenado à forca, mas
como não era precipitado em seus juízos, não quis logo cuidar em mal.
—
Talvez Babita não me conhecesse logo, pensou ele, e tomasse um susto.
Nestas
ideias saiu de casa.
Lá
fora fazia um sol valente. Um sujeito passava rente com as casas para apanhar
um pouco de sombra.
Jucá
perguntou-lhe se conhecia D. Cuia.
—
Cheguei há pouco da Formiga, lhe respondeu o cujo, por isso não conheço, mas
sei que a filha dela é casada com o Chico Luís, o Emboaba.
Como
Jucá Ventura não saltou às goelas do sujeito que lhe deu aquela notícia, ou
como não caiu no chão morto para todo e sempre, é o que ele mesmo não sabe.
Sentia
mil sofrimentos, maiores a um tempo do que todos os de Mato Grosso e por cima
uma vergonha tão grande que a sua cara ardia como se fosse uma fogueira.
Tudo
estava perdido!
Tudo!
Ele
que só tinha vivido com a lembrança, daquela mulher, ele que vinha cheio de
amor, limpo de misérias, depois de ter dado conta de sua obrigação, ele que
tinha ganho as suas medalhas, as suas gitas para enfeitar a noiva, e agora
vinha encontrar o lugar que lhe pertencia já tomado, e em vez de um coração
para o afagar e estimar, a traição e o pouco caso?!
Ah!
por que a sorte não o atirou como tantos outros nos campos do Apa para ser degolado
pelos paraguaios? De que lhe servia a vida?
A
sua felicidade caía toda em pedaços, como casa velha de taipa em dia de
furacão.
Que
restava fazer?
Nada...
nada mais!
E
vingar-se?... porque é que o valente que vinha da guerra não havia de tirar
despique do desprezo de uma mulher?
Isso
lá, não. Babita podia dispor de si, dar o corpo e o coração a quem quisesse;
mas ele o bravo do 17º de Voluntários de Minas precisava se desafrontar.
Tremessem
os desalmados que haviam brincado com a honra do tropeiro!
Com
isso tudo a lhe ferver no sangue, amontou
Jucá a cavalo e foi sestear num
rancho fora da cidade.
Não
se tinha espalhado a notícia da chegada dele, senão é de crer que se fizessem
em Uberaba alguns festejos e que o comandante superior da guarda nacional o viesse
abraçar à vista de todos.
Mas
para abraços não estava ele.
Parecia
uma onça que acaba de cair num fojo.
Não
tocou no prato que lhe puseram na mesa, mas, com o queixo encostado na mão,
estava carrancudo como um tigre preto, e os seus olhos faiscavam. Na cintura
tinha uma garrucha de dois canos carregada e um facão-punhal.
Quando
o sol vinha caindo, vermelho e grande, Jucá saiu do rancho, mas as pernas lhe
tremiam.
Queria
pisar firme não podia.
É
que nunca fora assassino e agora ia matar!
Caminhou
a pé para a cidade e muitas vezes teve que se sentar à beira da estrada pela
afrontação em que vinha.
O
coração quase que lhe saltava pela boca.
Ah!
Babita! Babita! Que lhe tinha feito aquele homem para você o tratar assim? Pois
não pode haver uma só mulher no mundo que tenha felicidade?
E
o certo é que lá ia Jucá Ventura, já com ares de matador, quando podia entrar
no lugar de seu nascimento, de cabeça bem levantada e estufando o peito em que
estava escrita a sua história de soldado! E todos haviam de festejar e até
adular!...
Mas
não... O destino assim não quis.
Apareciam
as primeiras casas da cidade quando o pobre coitado sentou-se num matacão de
barro duro a um lado da estrada, à espera que a noite fechasse.
Do
sol já só se via uma beiradinha e estava um calor de rachar. Lá no nascente
umas nuvens cor de chumbo pareciam estar ameaçando a terra, e de quando em
quando um relâmpago fuzilava no meio delas.
Jucá
Ventura olhava para aquele lado e pensava que assim estava o seu coração,
faiscando, faiscando mas que também daí a bocadinho um raio havia de ferir a
quem menos cuidava.
Um
barulho de passos lhe chamou a atenção.
Era
um homem branco, de meia idade e bem limpo,
que tinha um ar sério e muita composição no andar.
Quando
Jucá Ventura lhe pôs os olhos em cima, como que virou-se em pedra.
Depois
fez um esforço grande sacudindo a tontura, sacou da cintura a pistola e pulou
para a frente do outro como uma onça pintada.
A
sua boca deu um uivo.
—
O emboaba!
Se
Chico Luís, pois era ele, não tivesse a tempo lhe agarrado no braço, era um
homem morto.
E
ficaram os dois, um olhando para o outro, bons pares de minutos: Jucá Ventura
com os olhos de engolir um cristão vivo, Chico Luís muito senhor de si e de
sangue-frio.
—
Portuga do diabo, gritou Ventura sempre com o braço preso, você sabe quem eu
sou?
—
Sei, respondeu o emboaba muito sereno, é um soldado brasileiro, não é um
matador.
O
modo por que estas palavras caíram da boca de Chico Luís e o seu propósito
fizeram um abalo tão forte no voluntário que ele ficou branco como cera.
—
Sim, retrucou ele, nunca fui assassino, mas agora vou ser...
—
Ao menos deixe eu me defender. Na guerra você fazia assim...
—
Não; todos vocês hão de morrer como cachorros. Todos... porque cuspiram na
minha cara.
—
Jucá Ventura, você tem o direito de me matar, isso eu reconheço: mas a mais
ninguém, ouviu? O único culpado sou eu.
A
cada palavra que Chico Luís dizia, o tropeiro como que sentia o coração ficar
frio. Quis puxar pelo braço, mas a mão do português se não apertava com força,
segurava com firmeza.
—
Sim, continuou ele parando a todo instantinho e com os olhos pregados nos do
seu inimigo, eu vim até cá ter com você, sem armas, sem um pau sequer, e lhe
dizer atire em mim, porque nesta história desgraçada ninguém mais pode ser
acusado... Agora...
E,
de repente soltando o braço de Ventura, apresentou o peito:
—
Aqui estou, disse, faça fogo. Execute a sua vingança!
O
modo era de quem estava preparado para morrer naquele instante mesmo.
Jucá
levantou a pistola, mas depois recuou uns passos, como que vexado e murmurando:
—
Eu nunca matei ninguém assim...
—
Pois bem, secundou Chico Luís dessa feita muito depressa, eu quero defender não
a mim, mas a uma pessoa que em tudo isto tem tanta culpa como Nossa Senhora da
Conceição...
E
como ventura fizesse um gesto de raiva:
—
Sim, exclamou ele com força, eu juro pela minha salvação eterna, Babita é
inocente; Babita resistiu quanto pôde a este casamento. Babita não se esqueceu
um só momento de seu noivo; chorou todas as lágrimas do seu coração; foi fiel
quanto pôde à sua promessa.
O
português falava com sotaque lá da sua terra, mas falava como quem diz a
verdade. Cada um de seus ditos era uma punhalada em cheio no peito de Ventura.
—
Mas então, bramiu ele, ela foi enganada?
—
Não, respondeu com energia Chico Luís.
—
Que aconteceu pois?
—
Se você quiser me ouvir, eu lhe abrirei o meu coração; se não, dispare já esta
garrucha que está engatilhada, mas tenha certeza que há de vir dia em que o
sangue que hoje cair se levantará a gritar: Sua mão deu cabo de gente inocente!
E
a voz de Chico Luís ficou de quem estava pedindo uma coisa muito grande.
—
Você me ouve? perguntou ele ainda.
Houve
um silêncio de meter medo. A sorte daquele homem estava se decidindo.
—
Fale, disse por fim Jucá Ventura muito abatido e pondo ao cinto a garrucha
depois de ter abaixado devagarinho o cão.
—
Eu direi poucas palavras, começou logo o outro. Você partiu para Mato Grosso e
só houve notícia certa de sua pessoa por uns seis meses. Depois passaram-se
anos inteiros, e ninguém sabia onde parava e qual o seu fim. Babita, coitada,
perguntava, indagava de um e de outro, escrevia muita carta, punha tudo no
correio e a chorar dia e noite que era uma coisa por demais. No fim de três
anos chegou, parece que desertado, a Uberaba um soldado do 17 de Voluntários
que disse que conhecia muito a você, que você tinha morrido há mais de um ano e
até ele tinha carregado o seu caixão. Nós todos então fomos ouvir uma missa por
sua alma, e Babita esteve entre a vida e a morte um mês inteiro. Correu muito
tempo. Nisso chegou outro soldado que também deu a você por morto e enterrado.
Já ninguém tinha dúvida. Foi então que eu, apesar de ter levado de tábua uma
vez, me apresentei de novo para casar com ela. Nesse tempo D. Cuia estava de
cama; pedia muito à filha que aceitasse; ela resistiu, eu insisti; todos os
dias ia lá; fiz muitos quartos quando a minha sogra ficou a sair deste mundo.
Então Babita, para obedecer, eu sei bem, a quem todos já faziam na cova,
casou-se comigo haverá uns dez meses. Esta é a verdade. E acrescentou:
—
Agora estou às suas ordens.
Jucá
Ventura, enquanto Chico Luís falava no tempo em que um gato passa por cima de
um braseiro, estava calado e mais sombrio do que a noite que vinha chegando.
As
suas sobrancelhas estavam tão apertadas que formavam uma só linha na testa.
Ele
via que tudo aquilo era certo, mas queria poder não acreditar.
—
Ah! já sei, retrucou ele como que chasqueando, vocês todos enganaram a Babita.
Foi você quem inventou a embromação
da minha morte.
—
Pela alma de minha mãe eu lhe juro que não! Caia ela no inferno se eu estiver
mentindo. A cidade inteira ouviu aqueles soldados... E depois olhe para mim, e
veja se sou capaz disso...
Sem
querer, Jucá Ventura levantou os olhos e fitou o português.
O
seu ar tinha tanta sinceridade que a convicção entrou no fundo do coração do
tropeiro: mas ele ficou mudo com a cabeça caída sobre o peito...
Já
era quase noite fechada, e se não escurecera de todo é que no céu havia umas
nuvenzinhas vermelhas que aos poucos iam perdendo as cores.
Os
dois homens estavam calados.
De
repente Chico Luís disse com voz muito suave.
—
Você me perdoa?
Jucá
Ventura estremeceu todo.
—
Ah! exclamou ele com a boca encrespada de amargura, não bastou a você, portuga
de desgraças, me tomar a minha noiva, me arrancar o coração, pisar com pé de
chumbo na minha felicidade, matar para sempre a minha alegria, quer também o
meu perdão?...
—
Quero, atalhou Chico Luís com força. Você é homem de honra, é homem de bem, eu
também sou. Da conversa de hoje é que vai sair o futuro da mulher que nós dois
amamos, da mulher que ainda ama a você, Ventura, mas que me pertence a mim. Eu falo aos seus sentimentos. Aqui
lhe peço de joelhos...
—
Não, não!
—
Perdão, perdão. Eu quero ou morrer de sua mão, ou que você me dê o seu perdão.
Nossa Senhora abrande o seu coração... Tem pena de minha mulher, tem pena de
meu filho!...
E
Chico Luís, no meio da estrada, se atirou de joelhos aos pés de Jucá Ventura,
mas com tanta dignidade que ninguém havia de ver naquele ato, não uma baixeza
ou medo, mas uma mengagem à desgraça
do tropeiro.
—
Levante-se, homem, disse enfim com muita pausa Ventura... Eu... vou pensar.
E
depois de novo silêncio, acrescentou com esforço.
—
Se... amanhã eu... aparecer na... sua casa... então... é sinal que... para
mim... o passado, passado. Se... eu não for lá... é que parti para nunca...
mais ouvir falar... em Uberaba... e na gente que aqui mora.
E
acenando a mão, sumiu-se, sem dizer mais palavra, na escuridão da noite...
No
dia seguinte Jucá Ventura fez às claras a sua entrada na cidade de Uberaba.
Isso
foi um alarme nunca visto e pelo ar com que todos olhavam para ele, conhecia
que era a pura verdade tudo o que Chico Luís lhe tinha dito. Pareciam encarar
alguém que saía da cova para fazer coisas do arco da velha.
Tudo
botava uns olhos arregalados, e espantadiços. Muitas velhas já faziam cruzes
pelo que ia suceder sem falta, e alguns que muito à toa tinham raiva do português,
só porque os negócios lhe corriam bem, lá no coração sentiam certa alegria,
apesar de estarem a dizer por toda a parte que o delegado de polícia devia
estar alerta se não quisesse ver uma desgraça feia.
Os
modos de Ventura puseram os bisbilhoteiros de queixo caído. Começou a falar que
já sabia desde muito que a Babita tinha se casado, mas que não se admirava
disso, porque tinha corrido a rodela
de sua morte, e mais isto e mais aquilo e tanta coisa com sossego tão grande
que não se sabia o que pensar se era disfarce ou não.
Mais
ainda cresceu o espanto, quando, depois do furriel ter-se apresentado, como
militar, às autoridades que o receberam muito bem, o abraçaram e o fizeram
sentar, foi ele com sol alto para a porta do emboaba.
Chico
Luís estava então no balcão de sua loja de negócio, e nem de propósito, a casa
estava cheia de freguesia que nada lhe comprava, é preciso notar.
Jucá
Ventura desapeou meio branco. O outro ficou um tanto amarelo, mas se adiantou a
encontrar quem vinha entrando.
—
Seja louvado Nosso Senhor Jesus Cristo que o traz a esta casa, disse o portuga
estendendo a mão. O tropeiro mal a tocou.
—
Para sempre seja louvado, respondeu pausado e muito sério.
E
acrescentou:
—
Eu venho visitar a sua família, D. Cuia e a filha dela.
Houve
um silêncio grande.
Chico
Luís desviou o corpo, e apontando para dentro:
—
Pode entrar, disse. Esta casa lhe pertence. A minha sogra e a minha mulher hão
de ver com gosto um conhecido antigo e amigo.
E
deixou que Jucá Ventura entrasse sozinho.
Na
salinha junto à loja estavam D. Cuia e ao lado Babita, a bela e corada Babita,
com o filhinho no colo, como se fosse bandeira de misericórdia.
Ventura
ficou de pé, branco como cera. As duas mulheres, que de tudo sabiam, tinham os
olhos pregados no chão e choravam sem fazer barulho.
—
Bons... dias... minhas... senhoras, saudou o tropeiro parando em cada palavra.
Ninguém lhe respondeu.
—
D. Gula, disse de repente Ventura, eu perdoo a vocês todos... No meu coração só
guardo uma coisa: é tristeza para sempre.
Babita
deu um soluço de desespero.
Ventura
chegou-se para ela.
Baixinho,
mas com muita doçura lhe perguntou:
—
E você é feliz?
—
Chico... Luís... é... o... pai do meu filho.
—
Babita, D. Cuia, disse por fim o tropeiro, não fiquem me querendo mal... Adeus,
adeus!
As
duas coitadas abaixaram a cabeça e choraram até não poder mais.
Já
então Jucá havia saído e, ao despedir-se do português, lhe apertou uma outra
vez a mão.
Dois
meses depois o tropeiro tinha tornado a tomar o emprego do outro tempo, mas já
não era o mesmo de dantes. Calado
sempre, só achava gosto no trabalho.
A
ninguém mais contava histórias, a ninguém fazia festas e mostrava amizade. Não
se metia com pessoa alguma, nem queria que se metessem com a vida dele.
Uma
vez, porém, saiu do sério.
Desafiado
por um camarada, que tanto tinha de forte como de malcriado, e que se lembrou
de falar da Babita, foi acima dele e lhe deu tanta pancada que por pouco não o
mandou para o outro mundo.
Desde
esse dia, não há quem se lembre de mexer com Jucá Ventura.
Uma
só coisa ainda lhe agrada um tanto: é cantar alto quando vai tocando o seu lote
de bestas, mas essas mesmas cantorias são tão tristes que a gente vê bem claro
que alguma coisa o está consumindo e minando por dentro.
"Longes" terras viajei
Padeci muito na vida.
E o Deus de compaixão
Não me quer findar a lida.
Faço força para ter
Paciência, meu senhor:
Mas debalde aperto o peito
Através rompe-me a dor.
Coração, meu coração,
À razão porque não cedes?
Se não há poder no mundo
Que te dê o que tu pedes...
Por que, pois, tanto afligir?
Palpitar com violência?
O destino já falou
E foi fala sem clemência.
Golpes duros contra mim
Desfechou sorte perjura,
Mas cruel, deixou-me o nome,
por chacota, de Ventura.
Sim, ventura hei de enfim ter
Quando a morte aparecer.
Sim, ventura sentirei,
Quando me sentir morrer.
---
Digitalização, pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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