Jaguaraçu
e Saí
O
índio Jaguaraçu foi, em seu tempo, de entre os chefes das aguerridas tribos
Tupinambás o mais sagaz e impávido.
Homem
da natureza em toda sua plenitude, dos combates se poderia dizer o gênio; das
selvas o senhor; dos amigos o dominador pela palavra e pelo respeito.
Pertencia
à privilegiada raça desses Tupis, que outrora haviam tombado como alterosos
condores dos píncaros dos Andes, e vieram depois expedir das costas do sul as
incautas tribos da raça Tapuia.
Os
tupis consideravam-se o povo predileto de Tupã. O trovão protegia-os contra as
agressões dos outros povos. Eram os mensageiros da divindade.
Jaguaraçu
dizia-se filho de Tupã. O tigre e a suçuarana não se lhe avantajavam na
ferocidade. O raio quase cedia à sua cólera.
Sua
nobreza era atestada pelas inúmeras entalhas, que se distinguiam em seu largo e
robusto peito.
Aquilo
denotava a soma de prisioneiros subjugados por seu braço e na tribo por ele
sacrificados.
Era
objeto do orgulho dos que o cercavam.
Na
época em que Jaguaraçu empunhava o primeiro arco de sua tribo, e marchava à
testa dos seus pelas vastas solidões do Recôncavo, levando consigo o terror e a
destruição, muito longe estava ainda a baía de apresentar o aspecto civilizador
de que depois com o decorrer dos anos soube revestir-se.
Então
as suas águas não eram perturbadas por essas turbulentas máquinas de indústria,
que vemos hoje singrá-las em todas as direções. As praias permaneciam intatas;
e os rios rolavam as suas silentes ondas pelas auríferas areias do Sincorá e de
Jacobina sem que os Perros abrasados
pela auri sacra fames sulcassem-nos
em cata do precioso metal.
Apenas
de vez em quando a ligeira piroga do selvagem quebrava o mutismo da solidão
resvalando pela superfície das águas, como o peixe que desacordado buscasse
conhecer o elemento adverso.
Rara
vez os selvagens interrompiam o silêncio destas paragens com os seus brados de
guerra. As suas lutas eram quase sempre quedas como as próprias selvas que
habitavam.
As
auras puras da terra de Tupã ainda não tinham se deixado contaminar pelo fumo
das máquinas de guerra; nem as locomotivas a vapor sarjavam os sertões do país
conduzindo consigo o germe do progresso, que importava o aniquilamento daquelas
raças que o repeliam.
Os
ventos rugiam nas selvas, e as palmeiras estalando os seus multiplicados leques
dominavam as florestas, como se fossem os monarcas do reino vegetal.
O
Pirajá, o Paranamirim e o Jaguaribe ainda atravessavam tranquilos os vales,
mergulhavam-se nas escuras abóbadas de verdura, e confundindo as suas ondas na
magnífica enseada enriqueciam os mares com os imensos troncos das maçarandubas,
dos vinháticos e das sapucaias, que desarraigados pelos vendavais eram os
únicos a vagarem pelo túmido elemento. E ainda não se viam as grandes canoas
pejadas do arabutã ou pau-brasil descerem pelas torrentes abaixo; nem o
guerreiro português subia ao alto sertão para cativar selvagens, que
cultivassem as suas plantações ou explorassem as minas de Sincorá.
Tudo
jazia encoberto pelo mistério.
E
os habitadores deste país julgavam-se felizes na sua vida silenciosa. As
guerras e as lutas supriam-lhes os folgares, quando cansavam de viver na paz.
Como
não teria sido majestosa a natureza brasílica nesses tempos que já não são!
Que
infindos abismos de delícias não se deviam encontrar a cada passo na
contemplação desses faustosos templos naturais, cheios todos de espíritos de
Deus, ainda impregnados do hálito quente daquele que os criara e enriquecera!
CAPÍTULO 2
Muitíssimos
anos antes da aparição do homem de fogo, quando ainda as risonhas plagas do
Brasil não tinham sido patenteadas aos olhos do imortal Pedro Álvares, já os
bardos daqueles incultos povos celebravam de taba em taba as heroicas ações do
guerreiro vermelho.
No
seu cantar, quem como ele mostrara desde a mais tenra infância tão estupendas
disposições para a luta! tanta agilidade! tanta força!
Quem
como ele pudera rivalizar com o tapir na velocidade com que atravessava os
bosques de um extremo a outro l
Onde
um mais destro caçador! Onde um flecheiro mais sutil!
Jamais
as selvas viram um guerreiro igual a Jaguaracu.
Aos
dezesseis anos, sendo acometido por um jaguar, apertou-o entre os braços, e
deitou-o por terra estrangulado.
Novo
Hércules, tirou-lhe a pele, vestiu-a, e, abandonando o nome que lhe fora
imposto por seu pai, desde então ninguém mais o conheceu senão pelo apelido da
fera, com cuja morte assinalara o próprio respeito no meio dos homens de sua
raça.
Cresceu
entre os louvores e a admiração.
A
fama precedia seus passos.
E
tal era a consciência do próprio valor, que se porventura, quando atravessava
as florestas, os ventos rebramiam, as árvores vergavam, e as feras fugiam em
sua aproximação, o homem da natureza, alçando orgulhoso o colo, julgava que as
próprias pedras reverentes curvavam-se ante o seu poder.
Quando
Jaguaraçu empunhou o primeiro arco de sua tribo, e garantiu o seu direito de
marchar à testa dos combatentes, não houve mais pôr limites à desenvoltura do
herói indiático.
Eis
o que narravam os bardos Tupinambás.
CAPÍTULO 3
Jaguaraçu
acampara um dia com os seus na vasta ilha de Itaparica.
Perto
estavam as ilhotas que depois tomaram a denominação de Maré, dos Frades e
Cajaíba.
As
ocas dos selvagens com pouco tempo ergueram-se sobre uma pequena eminência, e
em breve os gritos festivais assinalaram os folgares da taba.
Defronte
levantava-se por esta mesma época uma aldeia de Tupinambás aliados.
Eram
da mesma raça, eram amigos.
Foi
aí que muito tempo depois os portugueses edificaram a antiga capital do império
de Santa Cruz; onde os discípulos de Loyola erigiram os seus suntuosos templos,
e souberam acorrentar pela superstição os mais aguerridos silvícolas.
Nesta
aldeia, pois, existia uma virgem que era o enlevo de todos os que a cercavam.
Era
filha do chefe.
Pela
gentileza e garridice, que a distinguiam entre as demais morenas da tribo,
haviam-lhe seus pais imposto o nome de Saí.
Nunca
os olhos do selvagem haviam visto um tão gracioso primor da natureza.
Quem
observasse a danosa indiazinha com os negros cabelos entrançados pelas
perfumosas flores da gardênia percorrendo as várzeas matizadas de cerde e
púrpura; quem a encontrasse com os pés nus e avermelhados a perseguir as
douradas falenas, as lindas borboletas e os inofensivos insetos; quem afinal a
visse roubando o dulcíssimo mel das abelhas do cálice das helicônias, diria ter
diante dos olhos o gênio benéfico dos bosques, ou alguma dessas visões
deliciosas que os poetas costumam sempre fantasiar em alguma ilha deserta, em
algum país misterioso.
Na
aldeia não havia quem como ela fabricasse tão lindos colares, nem tampouco destilasse
o cauim, vinho dos guerreiros, com maior perfeição.
Feliz
julgava-se aquele que possuía uma araçoia, uma rede ou um canitar de penas de
arara tecidos pelos delicados dedos da fascinadora indiazinha.
Venturoso
ainda podia-se dizer o que nas festas da taba recebia de suas mãos a cuia do
espumante vinho de caju.
Nenhum
mancebo na tribo podia gabar-se de ter resistido ao imperioso influxo de seus
negros olhos; e um sorriso seu era suficiente para fazer com que os mais
vigorosos arcos da tribo caíssem a seus pés impotentes e desarmados.
Atravessando
em seus inocentes folgares os prados, zombava de todos os seus adoradores,
porque seu coração ainda adejava por sobre a inebriante flor do amor sem
tocá-la, livre e independente como a mais chilreadora ave das selvas.
Caprichosa,
faceira e altivazinha, ela com o simples bater do mimoso pé impunha respeito e
veneração ao mais enfurecido selvagem. E se algum mais audaz ousava persegui-la
pelas devesas da floresta, e tentava roubar-lhe a flor da inocência, então a
raiva pintava-se-lhe no semblante, e uma certeira flecha despendida por sua
débil mão ia cravar-se nos indiscretos olhos, que buscavam, ávidos de gozos,
investigar os primores com que dotara-a a natureza.
Bem
como o gracioso guainumbi agride aos mais altaneiros pássaros, que dele se
acercam atraídos pelo esplendor de suas penas, e impune arrosta com a fúria das
mais encarniçadas aves de rapina, assim resistia Saí às eróticas arremetidas
dos seus perseguidores sem que jamais se deixasse desprender daquela influência
poderosíssima, que lhe granjeavam a gentileza e a formosura.
Dentre
os mancebos da tribo, que ardiam ao fogo dos seus cintilantes olhos, havia um
em cujo coração se aninhavam as mais desenfreadas paixões. Nele o amor se
transformara em demência. Longe de manifestá-lo, como os outros, o faziam nos
folgares da taba, ao contrário, recolhendo-se como a feroz suçuarana para a
furna, aí roía-se todo de raiva e contrariedade.
Era
um dos mais valentes tacapes do continente. Chamava-se Itaguaçu; e pretendia
ter nos combates a mesma rijeza, que o objeto de que tirara o nome, recebendo
com a impassibilidade do penedo os raios, que desfechavam-lhe os inimigos.
Seu
amor entretanto não fazia mais do que crescer na razão direta do desprezo, com
que Saí o tratava.
Nunca
de seus lábios obtivera sequer um sorriso; nunca recebera de suas mãos uma
araçoia ao menos como diminutíssima prova de afeição.
Estas
coisas faziam-no morrer de despeito, e aumentavam-lhe cada vez mais as
tempestades da alma.
Um
dia foram todas as aldeias das circunvizinhanças do Recôncavo convidadas para a
festa do cauim.
Jaguaraçu
compareceu à folgança.
Começaram
as libações do embriagante e saboroso vinho de mandioca; seguiram-se os jogos
dos mancebos; exibiram-se as habilidades de parte a parte; e rompeu o guau com
todo o delírio, que podiam inspirar os vapores do deliciosíssimo licor.
Jaguaraçu
deixando-se raptar pela graça, com que a interessante filha das selvas pisava
no duro solo ao som dos estrepitosos instrumentos, que regiam as folgazonas
coreias, não pôde conter-se e dardejou sobre a mimosa Saí um desses volutuosos
olhares, que pouca dúvida podem deixar no espírito dos circunstantes do ardor
que os dirige.
Os
olhos do guainumbi não cedem no brilho e vivacidade aos da irara.
A
índia lançou para seu lado ternos olhares, e travando imediatamente de unia
cuia ofereceu o vinho predileto ao guerreiro, que sentindo no coração
referver-lhe o sangue como os olheirões de espuma na cascata, recebeu-o com o
sorriso nos lábios, no meio de mil gestos compassados e posições grotescas.
Assim
dançando costumavam os mancebos aceitar as oferendas das escolhidas de seus
corações.
Itaguaçu
rugiu de cólera; e os dois guerreiros vermelhos compreendendo-se mutuamente,
trocaram de parte a parte olhares, que mais pareciam de feras, do que de
criaturas humanas.
O
ciúme estava entre eles.
O
chefe da aldeia então prevendo as consequências do amor do terrível índio de
Itaparica, e receando que a formosa Saí fosse-lhe raptada, a despeito dos seus
desejos, surgiu a lume, e, travando do braço da filha, ofereceu-a como esposa
ao enciumado Itaguaçu.
A
menina tinha chegado à puberdade; as mamas já lhe tinham sido pela mãe cingidas
do avermelhado urucu.
Estava
habilitada para compartilhar a sorte do mais destemido guerreiro da taba.
O
tigre que caísse sobre a presa não mostraria tanta satisfação, como o selvagem
nesta ocasião.
A
índia vendo-se ao lado daquele por quem experimentava na tribo maior
repugnância, sentiu turvarem-se-lhe os olhos; suas faces enrubesceram como a
linda plumagem do tiê, e teria caído por terra ferida de amor, se o seu
delicado talhe não se reclinasse sobre os musculosos braços do velho chefe,
como a débil palmeira impelida pelos vendavais sobre os gigantescos cipós, que
entrelaçam a floresta.
O
vencedor do jaguar tinha os olhos ensanguentados.
Levado
pelo primeiro ímpeto, teria ali mesmo esmagado o crânio do rival, se não
refreasse a sua cólera, meditando um plano que talvez viesse a realizar.
CAPÍTULO 5
Veio
a noite; e, esvaziadas as talhas do cauim, retiraram-se logo os hóspedes para
suas aldeias.
Jaguaraçu
acompanhado dos seus súditos atravessou a baía na sua ligeira piroga, e em
breve achou-se na ilha de Itaparica. Convocou todos os guerreiros e
segredou-lhes ao ouvido uma ideia, que deviam naquela mesma noite executar.
O
anum cantou; choveu, trovejou, e os índios ocultos pelo temporal galgaram em
suas velozes canoas as ondas na direção da taba, em que se aninhava a gentil
Saí.
No
dia seguinte despertou a tribo do guerreiro Itanguaçu em um completo alarma.
Saí
desaparecera.
O
chefe bradou guerra aos Tupinambás de Itaparica, e para logo voou para as
praias da ilha, em cata dos raptores da indiazinha.
A
luta foi terrível e encarniçada; mas os companheiros de Jaguaraçu souberam
repeli-los das suas fortificações com aquele denodo e bravura, que sempre os
costumavam distinguir nas guerras pelos sertões do país.
A
esta primeira investida seguiram-se alguns combates noturnos pelas margens dos
rios, e escuros canais formados pelas ilhotas do Recôncavo.
De
parte a parte, por esta vez, muito guerreiro destemido caiu vítima das ciladas
armadas pelas igaras dos inimigos, que se escondiam por entre os mangues da
pequena ilha, que mais próxima ficava do sítio em que se acampavam os súditos
do raptor.
Daí
proveio então darem-lhe, no rude e expressivo dizer do selvagem, o nome de ilha
do Medo.
Jaguaraçu,
entretanto, sempre vencedor em todas as lutas a que se arrojava, embevecia-se
nas asas do amor que o conduzia.
CAPÍTULO 6
A
peleja entre os Tupinambás desavindos teria continuado interminável, se o chefe
da taba dos selvagens do continente, aconselhado pelo destemido Itaguaçu, não
procurasse mudar a sorte dos combates.
Então
trataram de reunir o maior número possível de tribos aliadas; formaram uma
insuperável esquadra de igaras, puseram em cerco a aldeia da ilha, e as nuvens
das suas terríveis e mortíferas flechas desceram sobre as ocas e tejupabas como
um bando de aves de rapina, que escurecendo o céu baixassem sobre a incauta
presa.
Setas
e setas de fogo atravessaram o céu, e o incêndio lavrou com pouco nos alvergues
dos sitiados.
Senhores
da vitória já se julgavam aqueles, quando uma orla de pirogas surgiu por uma
ponta da ilha.
Impossível
é descrever a luta, que então se empenhou entre as duas frotas adversas.
Soaram
os maracás nos rostros das igaras, cruzaram-se as armas de lado a lado,
chocaram-se as pirogas, dilaceraram-se os guerreiros, e no meio daquele
infernal tumulto, ao passo que submergiam-se os troncos em que tripudiavam tão
ferozes combatentes, mal se escutavam as falas dos chefes, se de longe pudessem
abraçar-se, ali mesmo teriam ficado despedaçados.
Jaguaraçu
porém não obstante a bravura e encarniçamento dos seus não pôde resistir por
muito tempo; recuou, com o dizimado troço, para os mangues que formavam a
pequena foz de um ribeiro, e, conseguindo escapar-se dos inimigos que o
perseguiam, internou-se pelas matas da ilha.
Pelo
alvorecer do dia estavam eles acampados em uma vasta clareira da floresta.
Deviam ser atacados então de outra maneira pelos Tupinambás do continente, e
por isso preparavam-se para uma dessas tremendas guerras de recurso, em que a
astúcia e a agilidade são os mais poderosos elementos de destruição.
Reuniu-se
o conselho; o chefe falou, e as nuvens de fumo envolveram a assembleia.
Foram
convocadas as aldeias que existiam na extremidade oposta da ilha. No dia
seguinte três mil flecheiros auxiliavam Jaguaraçu.
Em
a noite seguinte descansaram todos os guerreiros das fadigas do dia e
aprestaram-se para o combate.
O
chefe inspirou-lhes o valor, e os sonos favoráveis vieram visitá-los em suas
redes.
Os
bons gênios das selvas no seu pensar deviam estar com eles.
Mas
um rábido sacerdote, o pajé, augurou a má sorte da guerra em que iam se atirar.
O
chefe não quis dar crédito às profecias do ancião, zombou dos seus resultados
fossem quais fossem, e deixou o acampamento.
—
Filho, disse o velho, Anhangá perturbou a razão do mais valente guerreiro da
tribo. A sombra da mulher está diante de seus olhos; ele não pode enxergar o caminho
que o deve conduzir à vitória. O espírito de Jaguaraçu não é o mesmo!
O
pajé dizia a verdade. Saí transformara o jaguar em manso cordeiro.
CAPÍTULO 7
Ao
declinar desta mesma noite repousava o guerreiro Tupinambá nos braços de sua
amante.
O
amor entorpecera o mais vigoroso braço da tribo. O chefe desconhecera seus
deveres e retirara-se para um aprazível sítio, onde se entregava às doçuras do
amor, enquanto seus companheiros permaneciam entregues aos uiaupias ou gênios
maus, sem ter quem os dirigisse no combate.
O
selvagem estava surdo a todas as razões que o deviam guiar no bom desempenho de
suas funções. Aquela sagacidade, que tanto o celebrizara nos seus primeiros
anos, tinha-o abandonado justamente quando mais dela necessitavam os guerreiros
de Itaparica.
O
delubro onde se ocultavam os dois amantes não desmerecia de sua gentileza e
garridice.
Era
um lindo dossel de verdura construído pelas trepadeiras e enrediças, onde os
cipós pareciam formar as arcadas e as sanefas, e arregaçavam as infinitas
franjas de flores, que pouco tinha de invejar os cortinados da mais suntuosa
câmara do mais rico palácio.
—
Saí, dizia o guerreiro vermelho, é a senhora do chefe Tupinambá. Os olhos da
virgem têm a força do poraquê; eletrizam, fazem o destemido habitante das
selvas vacilar e cair amortecido a seus pés.
E
a indiazinha assustada pelos rumores, que fulgava escutar ao longe,
reclinava-se sobre o peito do silvícola, como a débil acácia, que procurasse a
sombra refrigerante do alteroso cedro.
Nunca
os sonhos, produzidos pela larva da taquara, foram tão cheios de delícias como
o êxtase em que naquele momento mergulhava-se o vencedor do jaguar.
Súbito
estranhos clamores percorreram a floresta de um extremo a outro.
Eram
os brados dos selvagens do continente que atacavam o acampamento de Jaguaraçu.
—
O guerreiro não parte? disse a tímida Saí lançando sobre o amigo uns olhos
tristes e melancólicos como os da juriti quando ferida pelo cruel caçador. O
chefe não acode ao chamado dos companheiros, que esperam o primeiro arco de sua
tribo?
Jaguaraçu
estremeceu, e, despedindo-se numa rápida carreira, teria para logo caído nas
mãos dos inimigos, se o amor não lhe tolhesse os passos.
Parou,
volveu os olhos para o lado da indiazinha e alucinado, esquecido completamente
dos seus, foi cair aniquilado junto a um tronco de sapucaia.
Cruel
tormento ia então pela alma do aflito selvagem.
Neste
momento uma cena bem digna do mais primoroso pincel retraçava-se diante de seus
olhos.
Uma
pobre avezinha debatia-se no flexível ramo de um arbusto, e, fascinada pelos
coruscantes olhos de uma boicininga, desaparecia nas avermelhadas fauces da
serpente.
—
Jaguaraçu, disse o índio, vê a imagem da luta, que lhe entenebrece o espírito.
Os olhos de Saí são como os olhos da boicininga: prendem e acorrentam o mais
sagaz e rápido guerreiro. O seu amor devora. Foge, bela Saí! Os inimigos já
estão pertos de nós!
Mal
não eram ditas estas palavras, quando os musculosos membros do selvagem
sentiram-se enlaçados pelos abraços dos letais cipós, que entretecem as mais
vigorosas árvores da floresta.
Mil
tacapes fuzilaram sobre sua cabeça, e o chefe dos Tupinambás de Itaparica rugiu
como a onça apanhada de surpresa na armadilha, que lhe prepararam nas devessas
do bosque.
Saí,
vendo, a feroz catadura dos sequazes de Itaguaçu, prendeu-se ao amante e
compartilhou-lhe a sorte.
CAPÍTULO 8
No
dia imediato reuniram-se na aldeia os guerreiros do continente.
Os
Tupinambás de Itaparica tinham sido destroçados em grande parte. Jaguaraçu,
arrebatado pelos inimigos, fora para ali conduzido ao lado da amante querida.
Itaguaçu
exultava de alegria; e ao passo que preparavam-se os vencedores para o
sacrifício, o prisioneiro esperava pelo momento terrível de separar-se daquela,
por quem se embevecera nas asas do cruel amor.
A
esposa da morte veio visitá-lo em seu alvergue.
—
Poupe a minha irmã, disse-lhe ele, estas inúteis lágrimas de jacaré; não zombe
ela de tão infausta sorte! Mas, que! Um guerreira Tupinambá não se queixa.
Jaguaraçu saberá morrer como morreram seus pais! Quem duvidará do seu valor?...
Vá a virgem dos inimigos afiar os dentes para o banquete, que se aproxima!
Chegou
a hora fatal, e o herói indiático, cingido pela muçurana, foi levado para o
poste das injúrias.
Os
insultos choveram sobre a vítima, que mostrando a mais descomunal impavidez em
tão terríveis circunstâncias de sua vida, repelia-os com o mesmo furor, com que
o teria feito, se os seus braços inertes não pendessem coarctados pela corda do
sacrifício.
—
Jaguar indômito! bradou então o furibundo Itaguaçu, o guerreiro de Itaparica
deve preparar-se para o suplício. O rochedo vai cair sobre ele, e esmagar-lhe-á
o crânio. Ei-lo! que avança vivo, altivo e sobranceiro í A índia dos sonhos
dourados está em seus braços.
Um
riso de escárnio roçou pelos lábios do prisioneiro.
—
O guerreiro que arrebatou Saí, respondeu ele, jamais receará a morte! Quereis
cevar-vos do sangue de um valoroso Tupinambá! Ei-lo. Devorai estas carnes, que
talvez já fossem vossas. Itaguaçu é um miserável, porque nunca achou ocasião
para lutar com o seu rival. O ciúme separou os inimigos: e não conseguiu
uni-los em um mortífero abraço! Saí não viverá!...
Disse.
E a tangapema do inimigo, tão certa
no golpe como a sucuri quando enlaça o— descuidado veado, fuzilando pelos ares,
foi cravar-se toda no crânio de Jaguaraçu.
O
selvagem caiu por terra inanimado.
Isto
acontecia e ao mesmo tempo as palavras proféticas do sacrifício eram
satisfeitas pela justa medida de seus desejos.
Do
alto de um rochedo, que ao longe se divisava, um vulto, parecendo a imagem do
desespero, precipitava-se sobre as rugidoras ondas, que rebramiam batendo de
encontro às escabrosas penedias.
Bem
como muito depois a gentil Moema, assim pereceu Saí, vítima do úmido elemento.
E ambas morreram de amor; aquela por desprezada, e esta por muito amada.
---
Digitalização, pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Jaguaraçu e Saí, nós reporta aos clássicos gregos. Vivendo um amor, terminado em tragédia. Porém eternizado pela postura de Jaguaruna e Saí.
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