Histórias de Futebol
Autoria:
Salomão Rovedo
INTROITO
O
momento é do esporte e o esporte mais popular do país é o futebol. Desde os
campos nos lugares mais remotos, nas aldeias indígenas, nos bairros e favelas
miseráveis, nas praias, nas várzeas, com chuva ou sol – lá está o ‘campinho’,
lá está a turma preparada para dividir dois times, botar a bola no meio de
campo e dar o pontapé inicial. Daí pra frente tudo é emoção, alegria, raiva,
suor, elementos que se misturam e provocam as mais diversas reações que,
infelizmente, muitas vezes se transformam em violência. Mas isso é conta menor,
o que mais se vê é a confraternização, o comentário, a arbitragem honesta mesmo
sem juiz – na maior parte a pelada, o futebol, tudo leva à harmonia.
Não
acredito que tenha tido em minha vida mais alegrias das que tive jogando ou
assistindo partidas de futebol. Desde esse ‘estádio do Covão’, até o futebol
nas areias das praias do Olho D’Água, depois Copacabana, os jogos nos campos
oficiais do Aterro do Flamengo (Parque Eduardo Gomes), onde os campos de
futebol predominam, a alegria do futebol é a mesma, traduzindo amizade e
confraternização. Um bom churrasco, cerveja gelada, um pagode para encerrar a
partida, trazem o ambiente de novo à paz e paz e à alegria.
A
ideia de criar um grande parque na área do aterro foi da paisagista Carlota de
Macedo Soares, com projeto paisagístico de Burle Marx. O parque foi destinado a
atividades esportivas, tendo quadras de futebol, tênis, vôlei, basquete, pistas
de skate, de aeromodelismo e modelismo naval. Os campos de futebol no trecho
inicial da Praia do Flamengo foram criados por iniciativa de Rafael de Almeida
Magalhães, outro apaixonado pelo futebol.
Por
isso resolvi agrupar estas histórias de futebol. Que elas despertem em cada um
também a vontade de contar as aventuras nos campos, de capim, gramados ou de
terra, campos em que o limite é o mar, desde as areias fofas de
Copacabana
às areias duras da praia do Olho D’Água. As boladas e faltas que levaram, nos
gols espetaculares, as bolas perdidas, as divididas cujas dores deixam calombos
nas pernas, dedos doloridos e estufados, o abraço caloroso das comemorações.
Ainda de sobra muitos podem contar também as aventuras amorosas e paixões
desencadeadas, cuja trajetória começou nos campos de futebol, se transformando
em namoro, culminando em festa, em família, com as bênçãos do padre e dos
amigos.
Rio de Janeiro, Cachambi, julho de 2014.
***
O ESTÁDIO DO COVÃO
"O destino do homem não está no
futuro e sim no passado."
(Havelock-Ellis)
A
turma bairro batia bola em qualquer cantinho espaçoso que achasse – na frente
da igreja, no terreno baldio da Rua 12, em qualquer esquina ou várzea. A cada
novo dia, porém, foram chegando novos vizinhos, muitas mudanças, que causaram
grande aumento da população do novíssimo bairro do Filipinho.
De
modo muito rápido o grupo de peladeiros aumentou e não era pouca gente – quanto
craque tinha querendo bater bola, não dava mais para dividir por dois times.
Tirando o dono da bola mais nova, que tinha sua vaga garantida, sempre sobrava
mais gente do que time para jogar, mesmo que o jogo fosse com tempo marcado.
Foi providência a ser tomada para evitar bate-boca, disse me disse.
Com
o passar do tempo deu para reparar o impressionante modo como discriminavam,
não só os donos das velhas bolas carcomidas pela piçarra, pelos paralelepípedos
das ruas, pelo concreto das calçadas – surradas, afinal, pelo muito serviço
prestado aos peladeiros – mas também os amadores, a maioria pernas-de-pau, que
eram desprezados sempre que alguém chegava com bola nova.
A
hierarquia discriminatória seguia as próprias leis, invisíveis, mais ou menos
assim interpretadas:
a)
quanto à bola:
-
a bola de couro tem preferência sobre a bola de borracha;
-
a bola oficial tem supremacia sobre as bolas de tamanho não oficial;
- a bola não remendada, seminova ou menos
consertada, vale mais que as remendadas;
- a bola redonda é preferível às bolas que o
uso e o tempo tinham tornado ovais ou elipsoidais;
- as bolas sem câmara ganham preferência sobre
as com câmara ou costuradas;
b)
quanto ao jogador:
-
o dono da bola sempre escolhe um dos times;
-
na seleção, o craque tem primazia sobre o perna-de-pau;
-
o de físico mais avantajado tem supremacia sobre o mais fraco;
-
o mais rico manda no mais pobre (exceto se este fosse craque);
-
o culpado pela derrota era sumariamente execrado;
Descobriu-se
que descendo o Covão e chegando lá embaixo, antes do juçaral e do olho d'água,
dava-se no terreno uma descaída semiplana. Então, as cabeças da turma começaram
a plantar ideias, discutir planos, sonhar. Primeiro armaram-se todos com
enxadas, foices, facões – o que fosse útil para começar a desmatar, desentocar
e planar aquele pedacinho de chão. A vontade era muita, mas o trabalho era
maior.
E,
afinal, a impossibilidade: o terreno não era tão plano assim como se pensava.
Se conseguissem, depois de pronto, o terreninho só dava para fazer a área e
brincar de linha de passe. Uma ideia puxa outra. Passasse a máquina ali – uma
Patrol – com certeza se conseguiria o campinho quase tamanho oficial. Quase.
Era só aproveitar que as eleições estavam se aproximando e conseguir arrancar o
favor de algum candidato.
O
primeiro que apareceu no palanque, fazendo discursos, lançando slogans (Dê sua
ripada na onça), foi ovacionado e escolhido para Cristo. O grupo mais influente
do bairro, aproveitando-se do ritual da despedida do comício, chamou o
candidato a um canto e entre cachacinhas, cervejas e pratos de mocotó,
arrancou-se a promessa. Aliás, promessa não: dívida.
–
Se vencer a eleição, faço o campo! Inauguro a arquibancada. Vai ter futebol
para todos.
Um
par de semanas depois, com direito a plateia e tudo, a Patrol estava roncando,
com seu potente motor Caterpillar lá no Covão, a pá gigantesca arrancando com a
maior facilidade os arbustos mais resistentes, os tocos mais vigorosos,
causadores de muitas unhas do dedão do pé arrancadas, muito couro da sola do pé
esfolada, muito geme-geme, muito ai-ai, ui-ui, muito esparadrapo.
O
ânimo era tanto que até as mulheres apareceram e não deixavam faltar nada ao
maquinista, nem aos trabalhadores auxiliares. O bairro se mobilizou, ninguém
deixou de dar uma pá de ajuda, até frei Alberto dedicou sermão ao tema. Êita,
que era bilha de água fresquinha, almoço reforçado, tiquira para abrideira, a
galinha ao molho pardo, farinha d'água de Carema, docinho de buriti na
sobremesa e de quebra o cafezinho.
Com
essa notável infraestrutura, não houve como o maquinista, emocionado, se
recusar a aderir de corpo e alma ao projeto, dar todo capricho no trabalho,
alisando o chão, deixando o campo um tapete! E assim foi. Além de ser
profissional competente, fez o serviço com muito gosto. Numa semana o campinho
estava pronto, bem aplainado, com direito a acostamento em toda a volta que
dava até para construir a miniarquibancada. Na despedida o maquinista prometeu
que viria ao churrasco de inauguração – e veio mesmo.
Fizemos
a tradicional vaquinha entre os moradores, para dar presente de agradecimento
na despedida com tapinhas nas costas e vigorosos abraços. E agora ao trabalho.
Encomendar, comprar, colocar e pintar as traves. Fazer a marcação do campo a
cal. Comprar as redes. No entrementes os clubes floresciam, entre assembleias e
reuniões que varavam a noite. Era muita animação: um, dois, três, quatro
equipes foram formadas, com ata de assembleia, escudo desenhado na camisa,
meião, tênis – chuteira ficou proibida.
Entre
um cafezinho e outro, entre lanches fartos fornecidos pelas esposas e logo
estavam registradas nas atas as certidões de nascimento: todos os capítulos dos
estatutos. Comprava-se jogo de camisa, bola oficial, tornozeleira, arrumava-se
o quintalzinho para a sede, elegia-se a diretoria, arregimentavam-se os
melhores craques locais. Os pernas-de-pau corriam desesperados atrás da vaga,
nem que fosse para reserva.
Entre
a tentativa de conquistar um craque e outro, ocorreu mesmo princípio de
mercantilização do que começou como brincadeira, com espírito esportivo. Corria
favorecimento nos bastidores: o emprego aqui, o dinheirinho ali, o namorico e
até casamento! Os clubes nasceram com mania pelos erres: Real, Renner, River,
Radar, mas para quebrar a monotonia tinha também o glorioso FAC – Filipinho
Atlético Clube!
Depois
vieram as dissidências e, como o Flamengo (que nasceu no Rio de Janeiro de uma
cizânia do Fluminense), o Radar surgiu de briga interna do Real, este vindo de
dissidência do River. Depois, a assembleia de clubes decidiu, de modo unânime,
proibir tais movimentos, porque já ameaçavam a iniciativa esportiva, o
amadorismo, a característica amistosa que permeava a criação dos times e,
depois, da Liga.
E
assim foi inaugurado o Estádio do Filipinho, mais popularmente conhecido por
Estádio do Covão. Não com todos aqueles times: de começo eram apenas dois (logo
mais dois), entre o foguetório, notícia de jornal, churrasco depois da partida,
abraços, bebemorações. Como não poderia deixar de ser, esteve presente,
efusivamente cumprimentado por todos, o herói daqueles dias: o maquinista da
Patrol, que trouxe com toda a família, esposa, filhos, cachorro, papagaio.
Para
dizer que não cumprimos a promessa, elegemos o Deputado: o Filipinho em peso
deu sua "ripada na onça". Outra coisa importante: naqueles idos dos
anos 1950/1960, quando ninguém ainda pensava nisso (nem mesmo nós), acabava de
ser inventado o futebol soçaite.
O
resto é matéria para historiador e não para contador de folclore como eu...
***
A PRIMEIRA VEZ DE ZOCA – O ARTILHEIRO
A PRIMEIRA VEZ DE ZOCA – O ARTILHEIRO
"Existem
derrotas mais triunfantes que as vitórias." (Montaigne)
–
Vai! Vaaiii!
Zoca
se deslocou. A bola delineou uma trajetória em forma de arco elíptico, foi
lançada no ponto futuro. Quantas vezes aquele lance se repetiu, com pequenas
variações, na sua imaginação. Quantas vezes ele se tornou real nas partidas.
Para ele era coisa íntima, bem conhecida, como café com leite, pão massa
grossa, camarão seco. O passe saído da perna esquerda de Careca era tão
perfeito que dava a chance de finalizar de duas formas:
se
o beque estivesse distante, sobrava espaço para matar a pelota no peito,
preparando-a para o arremate com o peito do pé ou de trivela.
se
estivesse sendo pressionado pela marcação, apoiando-se na perna esquerda,
encostaria no marcador e, usando o ombro como alavanca, dispararia antes da
bola cair no chão.
Qualquer
dos tipos de chute que fosse escolhido, já era meio gol andado. Zoca escolheu a
segunda opção e se preparou para correr até a área de arremate, como ele havia
calculado, a seis ou sete metros à frente do goleiro. Ultrapassou o primeiro
marcador, sem pressa, para não cometer erros. Agora sim, viu que o espaço entre
ele e a bola estava livre de percalços, tudo caminhava bem para executar o seu
plano.
–
É minha! Deixa que é minha!
Zoca
tomou para si a responsabilidade, antes que outro jogador tentasse o chute. A
plateia estava atenta. O torcedor sabe que, apesar de todos os defeitos, de ser
varapau, o artilheiro sempre pegou aqueles lançamentos na veia. Ai do goleiro!
Um deles foi arremessado ao fundo das redes com bola e tudo, devido à potência
do chute. Envergonhado, nunca mais frequentou as três traves. Mas a história
tem o seu dia de traição e muda sem prévio aviso...
Depois
desse dia e até hoje Zoca sonha o pesadelo com o lance: a bola vinha, redonda,
redondinha, pedindo para dormir no fundo da rede. Mas eis que as pernas de
Zoca, num vexame supremo, não obedecem ao seu comando e injustificadamente
bambearam logo nas primeiras passadas. Zoca suou frio. O campo se transformou
num deserto de areia sob seus pés. A roupa pesava como armadura de cavaleiro
andante.
Lá
vai a bola caindo, caindo, quicando no chão uma, duas vezes e nada de Zoca
chegar nela. O artilheiro trocava as pernas como bêbado largado na noite, os
músculos perderam a elasticidade, o joelho doeu, uma fisgada correu-lhe as
pernas. A plateia gemeu de dó ao ver o craque perder o passo e tentar, num
derradeiro e hercúleo esforço, aproveitar o terceiro quique para finalmente
arrematar – ainda dava tempo de fazer o golaço.
Mas
as canelas estavam mais moles que perna de mamulengo e foi ele que, recebendo o
tranco do beque – que tinha surgido ninguém sabe de onde – foi ele que se viu
arremessado para longe da bola, levado pela cambalhota pela lateral afora. A
pelota, bem protegida pelo zagueirão, e pelo goleiro, saiu pela linha de fundo,
em tiro de meta.
–
Disgrama! Puta que pariu!
O
banco de reserva reclamou, o técnico xingou, os colegas de campo chamaram ele
de uma porção de nomes feios, o beque riu debochado, o goleiro chamou ele de
perna-de-pau. A torcida murmurou um ganido de incompreensão, que logo se
transformou em vaia. Ante tanto dissabor junto, o ás lembrou-se de fingir que
tinha sentido a fisgada, levou a mão no posterior da coxa esquerda (ou direita,
nem lembrava), se arrastando na lateral.
Caído
fora do campo o ponta chorou, não de dor, mas de vergonha, vergonha de ter
perdido o gol feito, vergonha de ter fingido o estiramento, vergonha por saber
que nem seus colegas do time, nem a torcida, iriam acreditar na farsa. Mesmo se
verdade fosse, estavam acostumados a vê-lo despender todas as forças em busca
do gol. Deitado de costas, Zoca sentiu o áspero chão ferir-lhe, o sol bater de
cheio no rosto. Suor e lágrimas misturados empapavam a camisa empoeirada.
–
Mascarado! Levanta, Zoca!
O
craque clamou pelo massagista pedindo o linimento pel'amor de Deus. Tudo nele
doía. A partida acabou para ele, não dava mais. O técnico já tinha
providenciado a substituição. Não havia mais tempo nem ambiente para ele tentar
se recuperar. Com o corpo esbagaçado daquele jeito, iria perder tantos gols
quantas bolas lhes passassem, mesmo que ficasse cara a cara com o goleiro. Não
dava mais.
Zoca
gemeu como o bebê abandonado, mas continuou só e desprezado na lateral do
campo, ninguém o socorreu. Alguns torcedores mais atrevidos, fanáticos pelo
clube, bancavam valentia, se chegando para perto só para dar esporro. O jogo
iria recomeçar e em breve tudo estaria esquecido. Mesmo assim, Zoca quase foi
agredido...
–
Ai-ai, ui-ui! A dor era lancinante.
Finalmente,
depois de fazer o aquecimento, dar as instruções e fazer a substituição, só
depois de deixar o mascarado de o Zoca sofrer um bocado, o técnico autorizou o
massagista a atendê-lo. O negão jogou éter e linimento por sobre a coxa
esquerda, massageou, massageou e aquelas mãos enormes, que mais pareciam
manoplas, castigaram tanto a coxa machucada que acabaram por trazer mais
sofrimento que alívio. Tinha sido justiçado, ali no chão, por perder o gol.
–
Chega, para, chega!
Aquilo
só tinha uma explicação: Açucena. Lembrou-se de Açucena e sentiu saudade. Será
que era a saudade que deixava ele tão desligado, sem reflexos para se deslocar,
para exibir o maravilhoso controle de bola que sempre foi o seu forte? Ou será
que era o amor, que o deixava sem coordenação, a ponto de sentir acorrentadas
as pernas ao chão, como foram presas as mãos de Cristo na cruz?
–
Um garoto de 13 anos, promessa do futebol, ficar com as pernas assim em
frangalhos!
Zoca
entrou em pânico. Cabeça entre as pernas, Zoca se afastou dos colegas
silenciosos, com olhar de maldade e chamou o técnico resmungão de lado. Ali ele
pediu desculpas, humilhado diante de todos, confessou tudo.
–
Não entendo! Não, não dá para entender...
–
Desculpe Seu Mano. Desculpe. Nem sei o que aconteceu. De repente fiquei fraco.
Fiquei cego, não vi nada. E baixinho no ouvido: a culpada só pode ser Açucena.
–
Culpada o cacete! Açucena? Como pode ser culpada, aquela coitadinha?
E
então Zoca contou, contou tudinho. Contou como de uns meses para cá o velho seu
pai achou de proteger, a pedidos, a filha do Seu Mário, amigão do interior – e
deu acolhida a Açucena. Ela mesma, aquela de peitinhos empinados que todo dia
de manhã vai à padaria e deixa Seu Manoel e todos os fregueses arrepiados. Como
eram muito amigos, compadres até, o velho e Mário, seu pai cuidou dela como a
filha que não teve. Um quarto só para ela, carinhos, pouco trabalho, escola,
bonitos vestidos.
–
Desde aquele dia quede sossego Seu Mano? A menina tá nova, quer namorar toda
hora. Quando ela passa na rua, todo mundo fica entesado por aqueles cabelos
negros levemente ondulados, brilhantes, massageados com óleo de amêndoa doce. E
todos sabem que ela é mocinha – ainda não completou 16 anos – ainda tem muito
para crescer e incomodar a Deus e o mundo.
Se
for assim perturbador com todos os mortais que passam por ela nas ruas, imagina
com ele, Zoca, que passou a viver ali, dentro de casa, todo o dia juntinho com
aquele amor de pecado. De começo eu ficava de longe espiando ela arrumar os
cabelos. Um dia ela me pediu para pentear a parte de trás, me inebriando com o
cheiro do óleo. Sabe que até para comer manga-rosa a menina deixa a gente
tonta? O amarelo da manga na boca rosada, os dentes alvos afastando a casca
para morder a carne.
–
Então, um dia ela viu que eu estava espiando ela tomar banho. Anjo infernal,
mais lânguida que a onda errante, boca de estrela, flor amorosa, mais que
divina, inocente almejo, poço de desejos, flor de formosura, não reclamou,
fingiu que não viu, até deixou.
–
Meu Deus! Seu Mano se arrepiou. Como foi?
–
Não teve jeito, fui me aconchegando, chegando de mansinho, até descobrir que
era gostado e estava gostando. E foi tomando banho juntos que descobri que ela
não era mais mocinha, quer dizer, era, mas não era muito. Aliás, diga-se a
verdade, foi ela quem confidenciou. Alguém fez mal a ela lá no interior, no
centro. Sabe que é neta de índia? Não tem um pelo no corpo!
–
Por isso que papai me mandou para cá... – Ela me falou confidente como foi a
brutalidade, a dor, a lágrima, o sangue.
Então
o artilheiro não teve mais desconfiança que estava apaixonado. E paixão
daquelas grudentas, que agarra dia e noite com a gente e não larga nunca,
jamais. Tinha, portanto, que aproveitar aquelas duas horas em que ficavam a sós
em casa, ele e Açucena: os manos iam para escola, o velho ia para a praça jogar
dama até seis horas da tarde. Zoca e Açucena não se perdiam um do outro todo o
tempo.
E
como não tinha outro lugar adequado, nem naqueles tempos tinha hotel nem motel,
Zoca e Açucena se encontravam no banheiro, pés descalços no piso úmido e frio,
nas duas únicas horas que ficavam sós em casa. Tomavam banho a dois no
chuveiro, esfregavam sabonete no corpo, passavam xampu nos cabelos. A água
escorria pelo corpo de Açucena como cachoeira sem pedras.
–
Larguei até de ir à pracinha bater prosa com a turma. Essas paixões de começo
não escolhe dia. Ou melhor, tem: é todo dia.
E
durante todos esses meses Zoca e Açucena se amaram diariamente, duas ou mais
horas em pé! Em pé! Trancados no banheiro, o artilheiro enfrentava o calor como
quem frequenta a sauna. Metia a cabeça entre os peitos de Açucena (era o lugar
mais alto que o artilheiro conseguia alcançar) e ficava ali lambendo o perfume
que descia pelo pescoço dela. Só largava quando ficava com o corpo febril
tremendo, despejando suor por todos os poros, frio como laje de cemitério. Mas
se sentia feliz, felicidade mesma que jogar futebol.
Foi
aí que Zoca começou a sentir as canelas bambas, o corpo fraquejando, as coxas
desobedientes, o joelho como dobradiça enferrujada, manquejando como o
passarinho de asa ferida. Já no treino sentiu dobrarem os joelhos, as pernas
arriando igual pneu murcho, até achar repouso recostado, desfalecido, como no
azulejo frio do banheiro. Em pouco tempo Zoca não era mais o mesmo, deixou de
ser craque, nem menino era mais – era homem.
–
Em pé? Duas horas? Mentiroso, filho da puta!
–
Verdade, Seu Mano, juro pelo que me é mais sagrado!
E
quando o fogo do amor se apagava Zoca e Açucena ficavam se rindo um para o
outro que nem dois bobos. Mas ele tinha de ir ao treino. Açucena ia até à porta
se despedir dele. Era aquela moleza, vontade de nem não sair de casa. Olhando
aquela morena lá na porta, sorrindo, batendo o adeusinho, sacudindo todo o
corpinho moreno, quem disse que dava vontade de treinar lá coisa nenhuma? Adeus
campeonato!
Mesmo
assim Zoca ia ao campo com o corpo todo tremendo de saudade. As pernas
bambeavam como pernas de mamulengo e não tinha massagista que desse jeito. No
treino ainda dava para mascarar, mas no jogo, bem, no jogo foi aquele papelão
que se viu. Uma bola daquelas que cem vezes colocou entre as traves, passes que
costumava matar no peito e chutar antes que a bola tocasse o campo – não viu
que era coisa incomum, um destrambelho?
–
E por causa de um Casanova de merda, tomamos um chocolate, uma pitomba daquele
time de qualiras!
Zoca
aturou a esculhambação cabisbaixo. Assumiu a culpa, mas se rindo de amor por
dentro. Valeu a pena. Estava feliz. Valeria à pena perder dez partidas iguais
aquela. Porque uma coisa ele não contou, guardou para si o segredo para toda a
eternidade: foi a primeira vez dele. Depois que contou tudo a Seu Mano, sentiu
a alma mais leve. Agora todos iriam saber o porquê daquela falha, resposta pra
os muitos erros de passe, até laterais mal batidas.
Sim,
foi com Açucena a primeira vez, a primeira de milhares de vezes seguintes que
viriam – com as graças de Deus! Foi como soube por que Adão cagou e andou ao
ser expulso do Paraíso. Foi quando descobriu que a vida não é o mar de rosas,
mas que vale a pena viver. Foi como tomou conhecimento de que o amor é lindo e
que é a virilha – e não o cérebro – o centro da nossa vida. E nesse idílio
consigo mesmo, distraído, acabou pensando alto, quase gritando:
–
Vale a pena! Vale mil vezes a pena!
Com
essas palavras, saltou e socou o ar como se tivesse feito o gol. O gol que o
sol não assistiu, em sua cabeça virou sonho, não mais um pesadelo. Mal acabou
de pronunciar o pensamento em voz alta, tomou do técnico um cascudo na cabeça.
Gesto que lhe pareceu mais um carinho do que agressão. E assim foi que o
ex-artilheiro Zoca foi solenemente expulso do time. Mas pelo menos deu para
sair na fotografia oficial da primeira formação do Real Futebol Clube.
Não
dá para notar na foto se as pernas estão bambas ou não. Só que, naquela
aparição inaugural com a equipagem de listas finas verticais, de cor
amarelo-ouro e preta – igualzinha à lata de óleo Salada, que estava em toda
propaganda nas ruas – o time ganhou da galera a alcunha de Óleo Salada FC e
dessa pecha jamais se livrou, mesmo depois de inaugurar o novo e completo jogo
de camisas.
Óleo
Salada FC como consolo, para sempre.
–
Quem iria querer jogar num time chamado Óleo Salada?...
***
DIABO LOURO
"Se você não diz a verdade sobre si
mesmo, não pode dizê-la sobre os outros." (Virgínia Woolf)
Antes
de encerrar sua gloriosa carreira no futebol filipinense, acelerada por grave
derrame de menisco, Zoca ainda teve uma alegria. Quer dizer, teve muitas
alegrias. Foi convidado para treinar no Moto Clube e de fato participou uma
semana de treinamento entre os reservas.
Mas,
quando sentiu que iria levar muita porrada de veterano, ele largou os treinos.
Ademais, fora disso, ganhou muitos títulos e vários torneios, muito torneio
início. Nas partidas que disputou jogando no gol (os técnicos aproveitavam sua
alta estatura para mantê-lo como goleiro reserva ou regra três), engoliu
memoráveis frangos.
Por
outro lado, quando estava inspirado no goleiro do América FC do Rio de Janeiro,
Pompéia – cognominado a Águia Voadora – salvava o time de algumas derrotas,
defendendo até pênaltis decisivamente importantes.
Depois,
muito tempo depois, foi ser vizinho do famoso arqueiro no baixo Cachambi e
chorou ao conhecer a casa em ruínas em que Pompéia morava. Engoliu o medo de
saber que a Águia Voadora vigiava o passado glorioso com porres contínuos de
cachaça e assim viu como ia ele acabar seus dias, tremendo e atacado de alguma
cirrose irreparável.
Em
meio aos recortes de jornais, às fotografias de vários ângulos, pose de campeão
com faixa e tudo, Pompeia mantinha o cigarro entre os dedos da mão trêmula.
Cadê os clubes para apoiar o craque? Cadê o glorioso América Futebol Clube?
Cadê o Sindicato dos Jogadores? Nada, Pompeia morreu só, pobre, bêbado.
Um
dia o time se viu sem goleiro e lá foi Zoca ser titular debaixo dos três paus.
A equipe toda atuou bem e havia se preparado ao campeonato com esmero. A essa
altura o futebol do Filipinho estava bem cotado e foi fundada até a Liga
esportiva para representá-lo junto à Federação de Futebol.
Clubes
de outros bairros, vendo o sucesso que alcançaram, pediram – e foram aceitos –
para participar do campeonato. Agora tinha o Flamenguinho, Rabreu, Rianil.
Começou o campeonato e o Real FC ganhou o titulo do Torneio Início com o
pênalti defendido por ele. Mas uma coisa ficou clara para toda a direção: não
dava para disputar todo o campeonato com um só goleiro, ainda mais improvisado.
Foi
assim que chegou ao Filipinho para jogar no Real FC o famoso goleiro de futebol
de salão, campeão estadual da temporada, o afamado “Diabo Louro”. Ganhou a
alcunha porque portava a vasta cabeleira, loura, naturalmente, tinha os olhos
azuis – era arisco, rápido nos movimentos, tinha boa colocação e defendia mais
que o próprio Capeta.
Goleiro
de estilo, logo nos primeiros treinos demonstrou porque era ambicionado até por
times do Sul. Era alto e elegante como a garça e voava defendendo as bolas mais
impossíveis. Com ele ninguém comemorava gol por antecipação, pelo alto era
impenetrável. No chão era bom também: era impressionante como caía com rapidez,
mesmo se a bola era chutada com violência, rasteira a seus pés.
Zoca
ficava ali, quieto, atrás do gol vendo o “Diabo Louro” voar, querendo ser igual
a ele. Outras equipes protestaram: o Real FC estava profissionalizando o
campeonato, coisa que ninguém queria. É verdade que, aqui e ali, sempre corria
o dinheirinho, o favor, a chantagem, para aliciar os jogadores mais famosos.
Mas era diferente de profissionalizar.
Veio
o primeiro turno, o Real FC venceu e se classificou para a grande final. Mas aí
o Diabo Louro, aguerrido como era, foi entrar numa dividida, caiu mal, por cima
da clavícula e lá se foi o braço para tipoia.
Não
podendo haver mais inscrição de jogadores, o jeito foi manter o goleiro
reserva, Zoca, como titular durante todo o segundo e decisivo turno. Os outros
times reagiram, aproveitaram as deficiências e fraquezas do goleiro e o Real FC
perdeu feio. Jogando debaixo de muita pressão, veio a finalíssima e o Real FC
perdeu também.
O
“Diabo Louro” foi defender outros clubes mais famosos e Zoca, o arqueiro,
encerrou prematuramente sua carreira de goleiro. Agora, nem para quebrar
galho...
***
EPÍLOGO AO SOM DE RÉQUIEM
“A vida só se compreende mediante um
retorno ao passado, mas só se vive para diante.” (Soren
Kierkegaard)
Quase
trinta anos depois de ter saído do Filipinho, um Zoca emocionado pisou o chão
do aeroporto do Tirirical. Aliás, Zoca, não, Dr. José Carlos, advogado,
bacharel em Direito Internacional, que estava justo encerrando a carreira para
se dedicar ao ócio. Em seu projeto não existia qualquer possibilidade de voltar
a morar no bairro em que os acontecimentos de sua adolescência ocorreram, mas
garimpava lugar para pendurar uma rede e descansar os ossos.
Antes
mesmo de partir para o Rio de Janeiro, ele viu a Liga do Filipinho ser
empastelada por ordem judicial, em que a apelante era a Federação Estadual de
Futebol. A alegação era de só poderia haver uma autoridade desportiva
constituída, confederada à entidade nacional – exatamente a FEF. Pela razão,
não houve resistência, senão a mínima cabível, provocada pela indignação. A
quem iria interessar saber que se tratava apenas de um grupo de adolescentes
querendo organizar o que um dia começou como bate bola de várzea, uma pelada?
Os
times se dispersaram, as pessoas cresceram, tomaram rumo – como ele – cada qual
cuidando dos afazeres da vida, que vêm atrelados ao calendário do tempo. Zoca
escolheu estudar e residir no Rio de Janeiro, as notícias mínimas que recebia
foram escasseando, umas por falta de resposta, outras porque o remetente se viu
impedido ou porque desapareceu na curva da sobrevivência. E agora Zoca
retornava como o ex-advogado José Carlos, pretendendo transitar a aposentadoria
e a velhice na pacatez modorrenta que ainda minava de suas memórias.
Não
foi assim tão exato. Mal desceu as malas no hotel, pegou um táxi e se dirigiu
ao bairro que foi palco de suas molecagens e alegrias de garoto. Pôs-se de pés
no chão com intuito de caminhar anônimo, relembrar de algum modo as coisas, os
prédios, as casas – talvez ver um rosto de expressão familiar. A igreja, embora
reformada e com ares modernos, ainda estava lá, mas de portas fechadas. O que
tinha sido um átrio desapareceu, a pracinha foi ocupada por lojas comerciais,
bares, restaurantes – os bancos da praça eram mesas e cadeiras de plástico.
Quando
chegou ansiado ao antigo Estádio do Covão, se assustou com o que viu: centenas,
milhares de casebres, entulhados um sobre o outro, enfavelados junto com
barracos mais pobres ainda. Só que, ao contrário dos morros do Rio de Janeiro,
esta se afundava no solo, descendo até onde o grotão sumia da vista, em
intermináveis becos. Em todas as ruelas se via o mesmo fio de água e esgoto,
que corria entre os casebres, ao lado de moradores e crianças que brincavam.
Perturbado por ver derrubada a maior das expectativas, Zoca procurou um bar
onde pudesse sentar e puxar conversa.
Só
uma coisa começou a parecer-lhe familiar, embora tivesse esquecido: o calor.
Zoca suava por todo lado. No bar de cadeiras na calçada, pediu água mineral e
escancarou os ouvidos, esperando respostas. Não encontrou nenhum rosto
familiar, nenhum tipo conhecido. Esperança. Esperança – era assim o nome do que
seria aquele bairro novo – informou o garçom. Foi essa a única informação que
ele teve. Tudo ali era novo, as casas, as ruas, os prédios comerciais. Os
homens, os rapazes, as moças de caras alegres, os passantes que agora eram
muitos – estava em outro bairro, outra cidade.
De
volta ao hotel, Zoca arrumou programa para os dias seguintes. Largou-se no
centro, foi à Igreja Matriz, fazer o que mais gostava: admirar a decoração
barroca, gozar o prazer do silêncio. Ao sair pôde repetir alguns gestos da
adolescência: benzeu-se com água benta, ajoelhou-se, fez o sinal da cruz – tudo
isso sem algum resquício de fé. Depois, anda teve tempo de passar por antigas
fontes e praças e ir ao Mercado Central, onde a sujeira e imundície
impediram-no de entrar.
Cansado
e suado, sujo de poeira e fuligem, arfando da caminhada, Zoca retornou ao
hotel, descansou por sete dias e sete noites antes de voar ao Rio de Janeiro,
para nunca mais voltar.
***
O MARACANÃ DE PASTILHAS AZUIS
“Num passe de mágica, conseguiram
ludibriar estrangeiros durante a Copa do Mundo, escondendo o Brasilquistão (violento,
desigual, pobre, sujo, sangrento, corrupto). Mostraram o Brasildinávia (que
está virado para a Escandinávia)”.
Luiz Flávio Gomes
A
primeira vez que ouvi falar sobre o Estádio do Maracanã foi em 1950. Mas não
foi por causa da derrota contra o Uruguai e sim porque meu tio rico tinha
ajudado a campanha de arrecadar fundos para a sua construção, com a aquisição
de quatro cadeiras perpétuas. Eu estava com oito anos de idade e sabia pouco
sobre futebol, mas quando o tio voltou do Rio de Janeiro desolado com a derrota
entendi a frustração dele, não pela derrota em si, mas pelo retorno negativo ao
investimento.
Mal
ele sabia que anos depois eu iria aproveitar aquelas cadeiras cativas,
emprestadas por meu primo para assistir jogos no Maracanã. Porém, a facilidade
era aparente e logo dispensei, depois de descobrir que nas cadeiras não tem o
principal: o calor da torcida. Ademais, cada pulo que dava era uma joelhada no
ferro, com consequentes hematomas. E o bar era longe... Assim não dá, né?
A
Copa do Mundo de 1954 já me pegou com algum entendimento. A seleção brasileira
era boa, mas perdeu nas quartas de finais para a Hungria de Lantos, Kocsis, o
goleiro Grosics e companhia. A máquina húngara de jogar futebol estava há 29
partidas sem perder, ganhou Medalha de Ouro nas Olimpíadas de 1952. Ao fim da
partida, húngaros e brasileiros saíram no pau. Na final da Copa de 1954, com
toda a nossa torcida, a Hungria ganhava da Alemanha por 2x0, mas - vergonha -
foi garfada e perdeu de 3x2. Um brasileiro foi manchete nas semifinais: Paulo
Amaral, cuja foto de chuteira em punho para agredir o juiz circulou por todos
os jornais esportivos.
A
Copa de 1958 foi sensacional. Eu já ia aos estádios ver jogo, acompanhei toda a
trajetória daquela equipe sensacional, desde as eliminatórias sul-americanas.
Brasil, argentina, Paraguai e México eram os representantes da América Latina.
O Brasil passou pós vencer o peru por 1x0 no Maracanã, após empate de 1x1 em
Lima. A terceira seleção do grupo era a Venezuela, que desistiu. Botava-se o
rádio na calçada, em volta bem umas 50 pessoas, cada vitória era uma festa. Na
final com a Suécia, mal acabou a partida e fizemos uma charanga percorrer o
bairro pra comemorar o primeiro campeonato mundial vencido pelo Brasil.
A
Copa do Mundo de 1962 - conhecida como a Copa de Garrincha - no Chile, foi
contaminada pela corrupção, vaidades, rasteiras e outros trinques. João
Havelange era o Presidente da CBD, a equipe contava 22 jogadores e 22 cartolas.
Tudo paulista e carioca. Mauro e Bellini brigaram à vera pela vaga de zagueiro.
O homem da mala preta atuava nos bastidores. Pelé se contundiu, Mané passou a
ser o craque do time (ele sempre foi melhor que Pelé, mas era cachaceiro... e
pobre).
Sangue
quente, Mané foi expulso por encher de porrada um jogador chileno: não iria à
final contra a Tchecoslováquia. É hora de chamar o “home” da mala preta! Assim,
graças à esperteza de Paulo Machado de Carvalho, Garrincha não foi julgado e
pôde jogar a final: o Brasil foi bicampeão. A “esperteza” foi dar uma grana
para que o bandeirinha que dedurou a agressão sumisse, sem depor. No ano
seguinte o bandeirinha, agora juiz, reapareceu apitando jogos em São Paulo,
contratado pela FPF com alto salário.
A
primeira vez que vi o Maracanã estava no ônibus 254, Praça XV-Quintino, rumo a
Piedade, para visitar Waldir. Foi nessa época que comecei a usar o Guia Rex.
Com esse guia de ruas eu aprendi a conhecer o Rio de Janeiro, nos mais
longínquos recônditos. O Guia Rex tinha nomes de ruas, bairros, mapas e a linha
de ônibus ou bonde para chegar aos locais desejados. No trajeto o ônibus 254
rodeava o estádio quase todo; de repente vejo o monumento azul, de pastilhas
cintilando ao sol. Aquele instante mágico me fez fã eterno do Maracanã.
Desde
os antigos “Torneio Início” – prévia do campeonato carioca – aos grandes jogos
entre times e seleções do Rio-São Paulo; o maior Fla-Flu da história (1963),
200 mil torcedores; a partida Brasil-URSS (1965), que Bob Kennedy viu nosso
goleiro Manga bater o tiro de meta na cabeça do adversário e a bola entrar no
seu próprio gol! O jogo da Rainha Elizabeth II, Cariocas x Paulistas (1968), os
paulistas venceram com pênalti duvidoso dado por Armando Marques; o jogo da
estreia de Garrincha no Flamengo (1968), o canto de cisne do Mané, os portões foram
derrubados por torcedores fanáticos sem ingressos.
Nos
jogos costumava ficar no último degrau da arquibancada neutra. Bem ao lado
tinha o bar, cerveja gelada, o banheiro e bate-papo agradável. Do lado oposto
via-se a Tribuna de Honra, as cadeiras especiais e mais abaixo as cabines de
rádio. Tudo isso dividia as torcidas rivais. Mas na saída os dois grupos se
encontravam no início da grande rampa. Os grupos vinham de lados opostos e ali
se fundiam num só. Dependendo do resultado do jogo e dos ânimos, começava um
empurra-empurra, corre-corre, às vezes a porrada comia. A técnica de salvamento
era buscar proteção atrás de uma coluna e se defender com os braços, sem
agredir, apenas afastando a horda sem rumo. Jamais fazer como um torcedor que,
apavorado, saltou para o jardim, esquecendo-se que a altura era de um prédio.
Depois
do furdunço era só sair no rumo da Rua São Francisco Xavier para pegar o ônibus
de volta. Se o público fosse daqueles difíceis de escoar, caminhava até a Praça
Sáenz Peña, onde era certo ter chope gelado, belas tijucanas e bons bares.
Agora,
em 2014, o estádio Mario Filho (Maracanã) é outro. Foi arrumado a peso de ouro
para realizar a Copa do Mundo que o Brasil comprou da FIFA – todo mundo sabe
que é um jogo de cartas marcadas. O futebol agora é um negócio que tem o aval
dos governos, dos políticos. Em algum tempo o Congresso quis se intrometer com
a máfia do futebol, mas foram apenas arremedos que incrementaram o legislativo
com mais uma lei: o Estatuto do Torcedor. Onde tem lei tem corrupção. Então tá.
Os
governos estadual e municipal se aproveitaram da ocasião da maneira mais idiota
possível: batendo de frente com a população. Derrubar o Museu do Índio (o local
nos primórdios chamava-se “Aldeia Maracanã”), pôr abaixo o Estádio de Atletismo
Célio de Barros (jornalista, diretor de esportes do Jornal do Brasil e cartola
da antiga Confederação Brasileira de Desportos), pasmem com as notícias: “A
Escola Municipal Friedenreich (homenagem a Arthur Friedenreich (1892-1969), um
dos maiores craques do futebol brasileiro), referência na rede de ensino, está
para ser demolida por conta da obra do Maracanã”.
E
mais: “Cerca de 200 alunos do Parque Aquático Julio Delamare protestaram contra
o fechamento do parque aquático. A maioria dos manifestantes é de idosos e
deficientes físicos que denunciam o fechamento do parque onde faziam tratamento
e ginástica hidroterápica. Júlio Delamare, jornalista e locutor esportivo da
Rede Globo, primeiro diretor do departamento de Esportes da emissora, morreu no
acidente do voo Varig 820 na França, em 1973. Em merecida homenagem o Parque
Aquático recebeu o nome de Júlio Delamare”.
Contra
a demolição muitos protestos e atos públicos foram promovidos. O governo gastou
milhares em dinheiro para mobilizar a força pública contra os manifestantes,
coisa de idiotas, enfim, como disse acima. Tudo em nome da corrupção que assola
o país, que abrange desde as presidências dos Três Poderes ao flanelinha da
esquina. A dinheirama, porém, não conseguiu se impor, isso porque as
‘autoridades’ começaram a perceber que o custo para demolir aquilo tudo iria
consumir considerável volume da quantia já direcionada aos próprios bolsos.
O
recuo diante das demandas populares é o sinal de que a mobilização pela
manutenção do complexo esportivo e educativo que envolve o Maracanã funcionou e
deve ser mantida. Entidades de caráter popular, voltadas com foco exclusivo em
defesa do espaço se organizaram e estão atentas. A maioria das reivindicações –
como se viu – foi atendida, antes tarde do que nunca os governantes perceberam
a estupidez que era se contrapuser às causas populares.
“A
rua é nosso lugar e de lá não sairemos até a vitória completa. Governo do
estado, Odebrecht, IMX e AEG devem ter consciência disso. Pela anulação imediata
da privatização do Maracanã! Por um Maraca Público e Popular! O MARACA É
NOSSO!!” – diz uma publicação do Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas do Rio
de Janeiro.
Como
diria um poeta: – Resistir, quem há-de?
Rio de Janeiro 2014.
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