História de dois viúvos
Triste e chuvoso raiou na
cidade de Macaé o dia 2 de novembro de 1872.
Contudo, às 9 para as 10
horas, começaram a afluir ao cemitério da irmandade do Santíssimo Sacramento
numerosas famílias, que iam por certo chorar e orar sobre a sepultura dos seus
parentes ou amigos, que aí dormem o sono eterno.
Tal eras ao menos o fim
aparente dessa visita à morada dos mortos. Mas se possível fosse haver uma
lente que devassasse os segredos do coração e do pensamento, talvez que bem
amarga fosse a decepção de quem, servindo-se dele, conhecesse o verdadeiro
móbil da maior parte dessas pessoas.
A verdadeira dor é muda e
reservada: a dor que traz garbo em ser conhecida não pode ser sincera.
O isolamento e o silêncio são
que convém à mágoa e à tristeza.
A ninguém, em verdade pungido
por negro pesadume, pode agradar os lugares de ajuntamento. A palavra de um
semelhante, ainda mesmo consoladora, é um aguilhão, que mais nos atormenta.
Demais, quem nutre vera
saudade de outrem e sente a sua perda, não carece de dia determinado, nem de
lugar, para carpi-lo. A todos os instantes a imaginação apresenta a sua imagem
a quem o deplora e fá-lo prantear.
A visita ao cemitério é pois,
na minha opinião, o meio de ostentar os ricos vestidos e adereços, o meio de
aparentar-se um sentimento que se não possui.
***
Pequeno e bem disposto é o
cemitério da irmandade do Santíssimo Sacramento. No fim tem uma capelinha de
medíocres proporções e em frente a este, no meio da funérea mansão, há uma cruz
de madeira.
Além disto, há diversos
monumentos particulares, de mármore, onde jazem os restos de pessoas
pertencentes a ricas famílias, que deste modo entenderam dever distinguir os
seus parentes daqueles a quem a falta de dinheiro não permite esse
esbanjamento.
Dói a um coração
verdadeiramente cristão ver que nem no sepulcro, asilo dos desenganos, a
vaidade humana deixa de alçar o colo com inaudito desprezo às sublimes máximas
do Evangelho.
O pobre tem por leito
mortuário o úmido solo; em magníficos mausoléus descansa o cadáver do rico.
Louca vaidade essa, à qual a
morte cruelmente encarrega-se de castigar.
Em matéria putrefata e após em
nada são igualmente convertidos os corpos do pobre e do rico.
Ao deixar a alma este mundo,
nada mais comum tem com ele: o dinheiro pois que se gasta em custosos moimentos
é um roubo feito àqueles que sobrevivem à sua fuga deste vale de angustias e
prazeres.
Nenhuma diferença devia haver
no dormitório final: aí devera-se representar a igualdade que reina no paraíso.
Mas aonde me leva a
inconsequente pena? Desejava escrever um conto alegre, tão alegre como a moça
de trinta anos que ainda encontra um noivo e estou escrevendo considerações tão
enfadonhas como as rabugens de uma velha tia.
Não admira: quem pode beber
ledas inspirações onde somente o nada e o luto dominam?
***
Ajoelhado junto à cruz do cemitério, uma linda
jovem de 20 a 22 anos, clara como o alabastro, esbelta, dum talhe majestoso,
soluçava freneticamente e debulhava-se em amargo pranto.
Por sob um denso véu preto,
via-se-lhe brilharem dois grandes olhos da mesma cor.
Ah! Fazia dó ver a pena tentar
lavar o fulgor de semelhantes olhos. Quase que se tinha vontade de chorar
também.
Em continuo estremecimento
estava a sua formosa boca; provável era que orasse por aquele que tão copiosas
lágrimas fazia verter à sua proprietária.
De quando em quando porém
lançava furtiva e rapidamente olhares sobre um moço de fisionomia simpática,
que se achava a par dela, do outro lado da cruz.
Este também, apesar de
contínuos soluços, a cada momento volvia para ela os olhos.
***
Terminada a missa, começaram a
retirar-se todas as pessoas, que a este ato solenemente religioso tinham
concorrido.
Ia de novo ficando solitária e
silente a habitação dos mortos.
O luxo cessava de afrontar a
morte.
Entre os que se retiravam
achava-se a moça que mais ocupou-nos a atenção.
No portão do cemitério deu ela
o braço a um ancião de aspecto agradável e com ele seguiu a pé até o lugar onde
estacionavam os dois únicos bondes do Ferro Carril Macaense.
No caminho tinha-a encontrado
um rapaz leviano, que cumprimentou-a e indagou da sua saúde.
O moço que dela não tirara os
olhos durante a missa julgou asado o ensejo para tirar informações a seu
respeito, pois conhecia quem a tinha saudado.
Acelerou por isso o passo e
foi ao encontro dele, depois de ter passado pela desconhecida, a quem,
digamo-lo francamente, já amava.
Cumprimentaram-se e
trocaram-se recíprocos sorrisos.
Depois, adiantado alguns
passos e apertando a mão do seu conhecimento, disse-lhe:
— Adeus, Alberto, como vás?
— Sempre bem, respondeu
aquele; e tu?
— Bem até há pouco e muito mal
agora.
— Como assim?
— Eu te explico; mas antes
dize-me uma coisa: quem é aquela moça com quem acabas de falar?
— Ah! Maganão, já te agradaste
dela?
— É verdade. Mas responde:
quem é ela?
— Filha daquele velho.
— E quem é ele?
— Um negociante retirado do
comércio.
— Como se chama a filha?
— Elisa.
— Que idade tem?
— Pergunte-lhe: a idade da
mulher é um mistério.
— Deixe-se de graça; qual o
estado dela?
— Bom, como está vendo.
— Fale sério: é solteira,
casada ou viúva?
— Viúva e... de fresco.
— Mas...
— Basta, basta; nãos estás
satisfeito ainda? Pareces um confessor, ou um juiz formador de culpa.
— Está bem; responde-me
somente a isto: és meu amigo?
— Devotado, como sabes; e até
a morte, sob uma condição.
— Qual?
— A de nunca seres jesuíta.
— Por esse lado não há dúvida.
Tu te dás com ela?
— Dou-me: Elisa é prima de
minha mulher.
— Podes apresentar-me ao pai?
— Com imenso prazer.
— Quando?
— Quando quiseres.
— Hoje de noite?
— Pois bem; eu vou-te buscar a
casa.
E despediram-se.
***
Eram sete horas da noite
quando os dois moços apresentaram-se em casa de Elisa.
— Apresento-lhes, disse ao pai
e à filha o primeiro político desta, o meu melhor amigo o Sr. Paulo Magalhães,
distinto guarda-livros e moço de verdadeiro mérito.
— Muito folgamos por
conhecê-lo e teremos indizível jubilo se dignar-se de frequentar a nossa casa,
respondeu sorrindo o bondoso ancião, que se chamava João Ribeiro, dirigindo-se
ao apresentado.
Este, inclinando-se, replicou:
— Creia que me domina o mesmo
sentimento e que, visto me ser franqueada esta casa, sempre que me for
possível, procurarei gozar de tão amável companhia.
— Dar-nos-á muito gosto, disse
Elisa.
— Oh! Minha senhora...,
balbuciou Paulo confuso.
Alberto de Faria (tal é o nome
do amigo de Paulo) olhou, com um sorriso significativo, para ambos os moços.
O seu olhar parecia dizer:
— Assim... assim... vão a
caminho.
Depois travou-se entre todos
uma conversação de tal modo divertida, que quem a surpreendesse julgara que
todos os presentes eram amigos velhos.
Às dez horas da noite
retirou-se Paulo, prometendo voltar na tarde do dia seguinte.
Muito porém lucrara com esta
visita. Foi ela germe de muitas esperanças, pois adquiriu algumas certezas.
PRIMA
Que Elisa era uma moça agradável e prendada;
Que Elisa era uma moça agradável e prendada;
SEGUNDA
Que a lembrança do seu defunto (frase dos viúvos) já bastante tinha-se-lhe varrido da memória, pois nem uma só vez falara nele;
Que a lembrança do seu defunto (frase dos viúvos) já bastante tinha-se-lhe varrido da memória, pois nem uma só vez falara nele;
TERTIA
Que das suas palavras, olhares e sorrisos podia inferir que Elisa já amava-o.
Que das suas palavras, olhares e sorrisos podia inferir que Elisa já amava-o.
Esta também por seu turno
soube:
PRIMO
Que Paulo era um moço que lhe
convinha;
SEGUNDO
Que pertencia ao seu mesmo
estado e que, como ela, já se consolara do profundo golpe que sofrera;
TERTIO
Que dera mostras de
corresponder ao seu amor.
Quanto ao Sr. João Ribeiro
inferiu unicamente que muito convinha que os dois jovens apaixonassem-se e
prometia aos seus botões auxiliá-los.
Só Alberto nada adiantou com
esta visita; já tinha formado o seu juízo a esse respeito.
***
No dia seguinte Paulo cumpriu
a sua promessa.
Apresentou-se sozinho em casa
da sua amada e, depois de recíprocos cumprimentos, disse Elisa com uma voz tão
maviosa como as notas que os seus alvos dedos extraíam dos teclados do piano:
— O Sr. Foi pontual: eu gosto
disto.
— Tenho-me habituado, respondeu
ele, a cumprir exatamente o que prometo, salvo o aparecimento de insuperável
obstáculo.
— É muito bom, proferiu
sentenciosamente o ancião: conserve sempre este habito que jamais
arrepender-se-á.
— Assim como, acrescentou
Paulo, tenho-me também habituado a decidir todos os meus negócios com prontidão
e até hoje não me dei mal.
— A prontidão é a alma dos
negócios, continuou no mesmo tom o terno pai da sedutora Elisa.
— O Sr. Gosta então de efetuar
tudo depressa? Interrogou esta.
— Sim, minha senhora.
— E procede da mesma forma com
o amor?
— Também, e é por isso que cá
vim.
Fugitivo rubor purpúreo as
faces da moça, ao passo que o seu pai, com a boca aberta e os arregalados,
soltava um formidável ah!
Reinou durante cinco minutos
um silêncio sepulcral.
Foi Elisa quem primeiro o
perturbou, exclamando:
— Haja de explicar-se, senhor;
nós não o compreendemos.
Nem era de esperar outra
coisa: nada há que possa embaraçar uma viúva. Tendo já perdido a timidez da
donzela e acostumado-se a responder por si, quando casado, ficando
absolutamente senhora de suas ações, sabe sair-se bem de todas as emergenciais. Todavia Paulo, que também não era viúvo à
toa, apressou-se em satisfazer-lhe.
— Pois bem. A minha visita tem
por fim pedir a sua mão, em primeiro lugar à senhora e após ao seu digno pai.
A este inesperado ataque é
que, apesar de viúva, não faz a moça face rápida e galhardamente.
Deixou pender a cabeça e
fingiu refletir, aguardando sem dúvida que a palavra paterna se lhe
antecipasse.
Não foi debalde.
O bom do Sr. Ribeiro era um
velho patusco, a quem não agradava lá muito a presença duma moça, por quem
fosse responsável, em sua casa.
Sempre tinha de respeitar a
sua pudicícia e de reduzir d’um modo considerável os seus inconvenientes
hábitos.
Por isso, não se dando mesmo
ao trabalho de fingir que considerava, respondeu:
— Pela minha parte não ponho
dúvidas, se Elisa, depois de pesar bem os prós e contras do casamento, julgar
que deve anuir ao seu pedido.
Ele procurava (como de Calipso
diz Fénelon) ocultar com estas palavras a alegria que, apesar seu, luzia-lhe no
semblante.
Paulo então, inclinando-se
ante a bela moça, disse com uma voz a que procurou dar entoação meiga:
— Aguardo ansioso a sua
resposta, minha senhora; lembre-se entretanto que de seus lábios depende o meu
futuro e talvez que a minha vida.
Estas últimas palavras
proferiu-as ele carregando na sua pronúncia.
— A minha resposta, gorjeou
Elisa levantado a cabeça e encarando-o com um olhar arrebatador, não pode
deixar de ser-lhe favorável. Com satisfação acedo ao seu pedido.
— Obrigado, muito obrigado,
gaguejou Paulo, no auge da felicidade, apertando a mão de sua querida.
E talvez com receio de
praticar alguma loucura ou de fazer qualquer coisa que diminuísse o bom
conceito que tinha alcançado, despediu-se ex
abrupto digerindo no cérebro ideias infinitamente quiméricas.
***
Quinze dias depois, às quatro
horas da tarde, na capela do Santíssimo Sacramento, o reverendíssimo vigário de
vara interino, o Sr. Padre José de Araújo Coutinho, uniu pelos laços
matrimoniais Elisa e Paulo.
Chegando à casa fizeram eles
as honras de um banquete aos seus numerosos convidados e à noite deram um
esplêndido baile, a que assistiram mais de duzentas pessoas.
Delirantes de prazer, nem uma
só vez viram perpassar pelo espírito a imagem dos falecidos esposos, por quem
tanto haviam chorado no dia do falecimento e no dia de finados, quando vimo-los
pela primeira vez.
No entanto haviam jurado que a
lembrança e a saudade deles seriam eternas.
Mistérios do coração!
***
Eis aí, ó leitores de ambos os
sexos, como o travesso amor, zomba da frágil e vaidosa humanidade.
E o sexo feio não se peja de
dizer-se forte, quando é certo que é ele o que mais depressa deixa-se vencer
pelo menino alado.
Não quero terminar sem dar-vos
um conselho: quando amardes, casai-vos logo. A desculpa dos nossos erros está
na sua prática repentina e não premeditada.
Depois, conheceis coisa mais
ridícula do que um noivo, sempre a choramingar, a dizer asneiras à sua bela,
sem nada atar ou desatar?
Eu não.
E por isso acho razão e
espírito em não sei que escritor que compara o noivo a um gato miando em frente
dum armário fechado.
Tenho concluído.
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