Hermann
Hesse: Muitas Alegrias
“Pequenas alegrias”
(Editora Record - 1977)
(Editora Record - 1977)
Com
o advento dos megamercados e praças de comércio formados pelos shopping
centers, a feriadagem anda disseminada por todo o ano, de tal modo a formar uma
corrente contínua, isto é, mal acaba um dia de promoção e logo se inicia outro.
Nos entremeios do Natal, Reveillon, Carnaval, Páscoa, Dia das Mães, São João,
Dia dos Namorados, Dia da Criança, Dia dos Pais, existe tanto dia disso e dia
daquilo que a gente perde a conta. Assim é que desde o dia 1º de janeiro – Dia
Mundial da Confraternização – até o dia 31 de dezembro, que é o Dia Mundial do
Reveillon, passa um sem número de dias das mais diversas festividades, entre
tais temos: Dia do Carteiro (25/01), Dia de Iemanjá (02/02), Dia do Sogro e do
Telefone (10/03), Dia da Mentira (01/04), Dia da Fraternidade Brasileira
(13/05), Dia da Raça (10/06), Dia da Pizza (10/07), Dia da Injustiça (23/08),
Dia do Encanador (27/09), Dia do Contato (21/10), Dia do Trigo (10/11) e,
finalmente, o Dia Nacional do Samba (02/12). Pois bastou passar o Dia de
Finados (02/11) e os lojistas apressadinhos já iniciaram as promoções de Natal.
Portanto,
já é Natal!
Estava
perdido nesses pensamentos, meditando no imenso volume que se gasta de palavras
no mês de dezembro para recauchutar a alma nossa e a dos outros, com mensagens
animadoras, figuras de retórica, fantasias. Pensava também em escrever algo que
comova o leitor, que faça a gente tentar uma reforma nos hábitos, que ajude a
melhorar nosso dia-a-dia, enfim, como se diz no popular, passar uma mensagem
melhor e maior do que todas as outras mensagens. Mas o que ainda não se
escreveu nessa data? O que todos ainda vão escrever? Quantas mensagens de Natal
virão encher a minha caixa de e-mail? E todas com mensagens belíssimas,
repetitivas, a eterna busca da Paz e da Felicidade? Pois bem, estava assim,
assim, ruminando o dilema, quando bati a vista no artigo “Natal” de Hermann
Hesse escrito em 1917.
Essa
leitura me comoveu do mesmo modo que me comovem as mensagens escritas em nosso
século – e são muitas e sábias as mensagens de nossos poetas e escritores. Hermann
Hesse foi escritor de uma geração que, por força do destino, teve a desventura
de passar por duas guerras mundiais. Se pudéssemos classificar o que foi a
literatura, a cultura e a arte, que permearam a Europa entre o final dos anos
1800 e a primeira metade dos anos 1900, sem dúvida só podíamos chamá-la de
Época de Ouro.
Mas
para enfear tudo o que de belo se escreveu, compôs e pintou naquela época,
vieram as guerras e com elas o sacrifício de vidas inocentes, centenas de
cidades destruídas e famílias desfeitas. Muitos artistas sofreram na carne essa
catástrofe e sucumbiram diante do desastre inexorável que assistiram e se
recusaram presenciar a repetição do mesmo. Para muitos o suicídio foi a saída e
entre nós tivemos o exemplo da extensão do ato trágico na fatalidade de Stefan
Zweig, que se negou a presenciar o sofrimento que o seu povo e a sua terra
passavam, suicidando-se em 1942 na cidade de Petrópolis.
Sim
meu amigo, você que acha trágico um conflito de vizinhos por causa de uma
galinha morta, se chateia com alguém que te chamou de feio, briga porque a
cerveja tá quente, você que acha que o bolinho de bacalhau tem muita batata, há
de meditar o que significa o horror de passar por dois conflitos mundiais, nos
quais milhões de seres humanos perderam a vida. E também há de imaginar o que
se passou na cabeça desses escritores, pensadores de um mundo melhor, gente que
se lembrou de pedir e lutar pela felicidade dos homens, porque o conflito da
alma dói tanto quanto o sofrimento físico.
Droga!
Acho que me perdi e esqueci de tomar o rumo do texto de Hermann Hesse. O artigo
foi escrito, como disse, em 1917.
A Europa sofria com o desastre da Primeira Grande
Guerra, que duraria de 1914 a
1918. No entanto a palavra do escritor aparece serena, com apelos de paz, um
chamamento aos homens de boa vontade. Não se dirigia, claro, aos políticos
donos de todos nós, mas ao habitante comum, ao lavrador, ao pedreiro, ao
comerciante, ao professor, ao artista, a todos, enfim, que fazem parte da massa
informe, mas imprescindível para que a humanidade possa caminhar, apesar
de tudo.
Então,
sem mais delongas, leiam e inspirem-se nesse texto, escrito sob o troar das
bombas que caem nas cabeças daqueles que nada têm a haver com a diarreia que
cala o cérebro dos políticos e militares...
NATAL – HERMANN HESSE
Mais uma
vez chega o Menino Jesus, é sua quarta visita desde o início da guerra. E se há
sinais de que essa guerra esteja chegando ao fim, hoje ainda não se pode prever
o quanto esse dia vai demorar.
Todos os
que de alguma forma se tornaram vítimas da guerra, sobretudo os muitos
prisioneiros em países inimigos, possam celebrar este Natal como uma festa de
melancolia, de recordações de amadas coisas perdidas, pátria e infância, paz e
felicidade tranquila. E neles ressoará como profundo desejo o “Paz na Terra”
apregoado pelo evangelho de Natal.
Entrementes,
não esqueçamos que o Natal não é só a festa infantil e as vozes dos anjos que
anunciaram o nascimento de Cristo não são apenas uma bela música para as
crianças ou um dolorido consolo para os oprimidos.
O Natal
não deve nos trazer apenas lendas natalinas, por mais belas que sejam, nem
somente brilho de árvore de Natal ou cantos infantis. O pensamento cristão, que
em tantos credos encontrou expressões tão diversas, tem para cada um de nós o
valor de um novo e elevado estímulo, uma exortação importante.
Não
importa que imagem se tenha duma salvação do mundo, o essencial é que cada um
de nós tenha presente a ideia de uma salvação através do amor.
Procurar
por ela é algo que não só o coro dos anjos de Natal nos recomenda, mas as vozes
de todos os grandes pensadores, escritores, artistas, e o profundo valor dessas
vozes todas está unicamente em que anunciam uma realidade, um caminho, uma
possibilidade que vive no peito de cada ser humano.
Por isso,
o Natal não nos deve ser, como qualquer festa, um mero olhar para trás, mas um
novo impulso de toda a nossa boa vontade. Pois “aos homens de boa vontade” se
dirige a promessa.
Não temos
boa vontade quando apenas choramos coisas perdidas, ou lembramos o
irrecuperável. Temos boa vontade quando tomamos consciência do que há de
melhor, mais vivo em nós mesmos, e seguimos a voz dessa consciência.
Quem pensa
nisso seriamente, quem se renova nesse juramento de fidelidade ao melhor de si,
este se encontra no estado de espírito legítimo para celebrar tal festa.
E só então
os sinos festivos, as luzes dos círios, as cantigas e os presentes terão
adquirido seu verdadeiro brilho e valor.
(Tradução
Lya Luft)
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