5/04/2019

Hermann Hesse - Muitas Alegrias (Ensaio)


Hermann Hesse: Muitas Alegrias

“Pequenas alegrias”
(Editora Record - 1977)
Com o advento dos megamercados e praças de comércio formados pelos shopping centers, a feriadagem anda disseminada por todo o ano, de tal modo a formar uma corrente contínua, isto é, mal acaba um dia de promoção e logo se inicia outro. Nos entremeios do Natal, Reveillon, Carnaval, Páscoa, Dia das Mães, São João, Dia dos Namorados, Dia da Criança, Dia dos Pais, existe tanto dia disso e dia daquilo que a gente perde a conta. Assim é que desde o dia 1º de janeiro – Dia Mundial da Confraternização – até o dia 31 de dezembro, que é o Dia Mundial do Reveillon, passa um sem número de dias das mais diversas festividades, entre tais temos: Dia do Carteiro (25/01), Dia de Iemanjá (02/02), Dia do Sogro e do Telefone (10/03), Dia da Mentira (01/04), Dia da Fraternidade Brasileira (13/05), Dia da Raça (10/06), Dia da Pizza (10/07), Dia da Injustiça (23/08), Dia do Encanador (27/09), Dia do Contato (21/10), Dia do Trigo (10/11) e, finalmente, o Dia Nacional do Samba (02/12). Pois bastou passar o Dia de Finados (02/11) e os lojistas apressadinhos já iniciaram as promoções de Natal.
Portanto, já é Natal!
Estava perdido nesses pensamentos, meditando no imenso volume que se gasta de palavras no mês de dezembro para recauchutar a alma nossa e a dos outros, com mensagens animadoras, figuras de retórica, fantasias. Pensava também em escrever algo que comova o leitor, que faça a gente tentar uma reforma nos hábitos, que ajude a melhorar nosso dia-a-dia, enfim, como se diz no popular, passar uma mensagem melhor e maior do que todas as outras mensagens. Mas o que ainda não se escreveu nessa data? O que todos ainda vão escrever? Quantas mensagens de Natal virão encher a minha caixa de e-mail? E todas com mensagens belíssimas, repetitivas, a eterna busca da Paz e da Felicidade? Pois bem, estava assim, assim, ruminando o dilema, quando bati a vista no artigo “Natal” de Hermann Hesse escrito em 1917.
Essa leitura me comoveu do mesmo modo que me comovem as mensagens escritas em nosso século – e são muitas e sábias as mensagens de nossos poetas e escritores. Hermann Hesse foi escritor de uma geração que, por força do destino, teve a desventura de passar por duas guerras mundiais. Se pudéssemos classificar o que foi a literatura, a cultura e a arte, que permearam a Europa entre o final dos anos 1800 e a primeira metade dos anos 1900, sem dúvida só podíamos chamá-la de Época de Ouro.
Mas para enfear tudo o que de belo se escreveu, compôs e pintou naquela época, vieram as guerras e com elas o sacrifício de vidas inocentes, centenas de cidades destruídas e famílias desfeitas. Muitos artistas sofreram na carne essa catástrofe e sucumbiram diante do desastre inexorável que assistiram e se recusaram presenciar a repetição do mesmo. Para muitos o suicídio foi a saída e entre nós tivemos o exemplo da extensão do ato trágico na fatalidade de Stefan Zweig, que se negou a presenciar o sofrimento que o seu povo e a sua terra passavam, suicidando-se em 1942 na cidade de Petrópolis.
Sim meu amigo, você que acha trágico um conflito de vizinhos por causa de uma galinha morta, se chateia com alguém que te chamou de feio, briga porque a cerveja tá quente, você que acha que o bolinho de bacalhau tem muita batata, há de meditar o que significa o horror de passar por dois conflitos mundiais, nos quais milhões de seres humanos perderam a vida. E também há de imaginar o que se passou na cabeça desses escritores, pensadores de um mundo melhor, gente que se lembrou de pedir e lutar pela felicidade dos homens, porque o conflito da alma dói tanto quanto o sofrimento físico.
Droga! Acho que me perdi e esqueci de tomar o rumo do texto de Hermann Hesse. O artigo foi escrito, como disse, em 1917. A Europa sofria com o desastre da Primeira Grande Guerra, que duraria de 1914 a 1918. No entanto a palavra do escritor aparece serena, com apelos de paz, um chamamento aos homens de boa vontade. Não se dirigia, claro, aos políticos donos de todos nós, mas ao habitante comum, ao lavrador, ao pedreiro, ao comerciante, ao professor, ao artista, a todos, enfim, que fazem parte da massa informe, mas imprescindível para que a humanidade possa caminhar, apesar de tudo.
Então, sem mais delongas, leiam e inspirem-se nesse texto, escrito sob o troar das bombas que caem nas cabeças daqueles que nada têm a haver com a diarreia que cala o cérebro dos políticos e militares...

NATAL – HERMANN HESSE
Mais uma vez chega o Menino Jesus, é sua quarta visita desde o início da guerra. E se há sinais de que essa guerra esteja chegando ao fim, hoje ainda não se pode prever o quanto esse dia vai demorar.
Todos os que de alguma forma se tornaram vítimas da guerra, sobretudo os muitos prisioneiros em países inimigos, possam celebrar este Natal como uma festa de melancolia, de recordações de amadas coisas perdidas, pátria e infância, paz e felicidade tranquila. E neles ressoará como profundo desejo o “Paz na Terra” apregoado pelo evangelho de Natal.
Entrementes, não esqueçamos que o Natal não é só a festa infantil e as vozes dos anjos que anunciaram o nascimento de Cristo não são apenas uma bela música para as crianças ou um dolorido consolo para os oprimidos.
O Natal não deve nos trazer apenas lendas natalinas, por mais belas que sejam, nem somente brilho de árvore de Natal ou cantos infantis. O pensamento cristão, que em tantos credos encontrou expressões tão diversas, tem para cada um de nós o valor de um novo e elevado estímulo, uma exortação importante.
Não importa que imagem se tenha duma salvação do mundo, o essencial é que cada um de nós tenha presente a ideia de uma salvação através do amor.
Procurar por ela é algo que não só o coro dos anjos de Natal nos recomenda, mas as vozes de todos os grandes pensadores, escritores, artistas, e o profundo valor dessas vozes todas está unicamente em que anunciam uma realidade, um caminho, uma possibilidade que vive no peito de cada ser humano.
Por isso, o Natal não nos deve ser, como qualquer festa, um mero olhar para trás, mas um novo impulso de toda a nossa boa vontade. Pois “aos homens de boa vontade” se dirige a promessa.
Não temos boa vontade quando apenas choramos coisas perdidas, ou lembramos o irrecuperável. Temos boa vontade quando tomamos consciência do que há de melhor, mais vivo em nós mesmos, e seguimos a voz dessa consciência.
Quem pensa nisso seriamente, quem se renova nesse juramento de fidelidade ao melhor de si, este se encontra no estado de espírito legítimo para celebrar tal festa.
E só então os sinos festivos, as luzes dos círios, as cantigas e os presentes terão adquirido seu verdadeiro brilho e valor.
(Tradução Lya Luft)

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