5/31/2019

Grande estreia (Conto), de Valentim Magalhães


 Grande estreia

Autor!
Ele era autor, finalmente!

Ali estava a sua obra.

— O meu livro! — dizia ele dentro em si, com o coração boiando em uma onda de júbilo.

Aí terminaram, por fim, as torturas inenarráveis do ineditismo; terminaram as lutas, os labores, as angústias inominadas de autor in partibus: o cérebro atulhado de livros imortais... e nenhum na rua!
Vencera!

Só ele, o autor, ele somente sabia o valor dessa vitória, porque mais ninguém soubera, suspeitara sequer, que soma de esforços e desesperos lhe custara.

Um ano, dois anos a incubar, a fecundar a ideia: período da gestação, íntimo e ignorado, cheio dos júbilos da concepção e dos receios, dos sobressaltos inexplicáveis ante o futuro:

— Se eu publicasse um livro?

Depois — a resolução: fase nova, em que a ideia vai-se transmudando em fato:

— Está dito: publico o livro.

É dispensável dizer de que gênero é o livro com que estreia este jovem, pois é o mesmo com que toda a gente estreia — aqui, em Portugal, em França, em toda parte do mundo.

Dizê-lo seria ocioso, tão ocioso como perguntar a qualquer homem de letras se existe no seu pretérito esse pecado universal, que se redime sempre: — versos.

Quando a um mancebo lembra a ideia de fazer um livro, o livro já está feito, e nem ele perde tempo a debater o gênero da obra.
É que a poesia é como a puberdade.

Um belo dia a criança deixa-se ficar na cama, adormecida ao lado dos tambores rotos e dos polichinelos estripados, e acorda o homem: um indivíduo novo, recém-nascido, desconhecido para todos, e ainda mais para si próprio.

Entre os muitos fenômenos novos que desse dia em diante vão nele aparecendo, espontaneamente, por vontade do velho legislador — Natureza, — há um de que também não se apercebe o jovem. Deliciosa inebriez sonambuliza-lhe os atos e o pensamento...

Mas um dia, por acaso, detém-se em caminho para dar “bom-dia” ao sol, ou a uma “doce virgem” que passa, e, volvendo o olhar atrás... — surpresa! ó encanto! — o caminho, o curto caminho andado está todo semeado, todo florido — de versos!

— Sou poeta! exclama nesse instante, como ainda há pouco exclamara:

— Sou homem!

É nesse momento único, o mais puramente feliz de toda a existência, que lhe vem a ideia da Glória, do Futuro, do livro, enfim.
Depois, o trabalho é apenas de retroceder, e, colhendo as mais belas e cheirosas flores, fazer um ramalhete.

Mas de improviso surge um óbice, uma dificuldade feia e repentina, como esses fantoches que saltam súbitos das bocetas de confeitos ao nariz das crianças:

— E a fita para enlaçar o bouquet?

Ah! o título para o livro!

Que Adamastor!

Que assunto para epopeias!

Quando terás também o teu Camões, ó monstro?

Neste ponto, o azul enubla-se, abismos abrem-se famélicos, montanhas pulam diabólicas ante os passos do poeta.

O desânimo invade-o, arrastando consigo para dentro do mísero — a dúvida, o medo, o desespero.

E o grosso caderno do manuscrito dorme poento ao fundo da gaveta, como um pobre diabo que, na gare de uma linha férrea, adormeceu à espera do sinal de partir.

O título!

Aqui, há tempos, assisti a uma luta horrível, interessantíssima, a única que possa fornecer um pálido símile da de um futuro autor com os títulos: — a luta com as gravatas.

Foi assim:

Entrou em uma loja, em que eu por acaso me achava, um elegante; e, dirigindo-se ao caixeiro, disse-lhe com voz trêmula:

— Desejo uma gravata.

— Pois não, senhor; em escancarando-lhe a vasta vitrine, acrescentou o caixeiro:

— Faça o favor de escolher.

Escolher!

Aí o busílis.

O janota ficara-se imóvel. Estava pasmo: as mãos sem gestos, os olhos deslumbrados.

Elas eram trezentas, seguramente.

Eram trezentas gravatas: — pretas, verdes, roxas, brancas, douradas, prateadas, azuis, amarelas, havanas, opalinas, granada, esmeralda, safira, cor-de-café, cor-de-rosa, cor-de-garrafa, cor-de-gema-de-ovo, cor-de-azeitona, cor-de-manteiga, cor-de-leite, cor-de-chocolate, cor-de-creme, cor-de-carne-crua, cor-de-carne-assada, cor-de-vinho — cor de tudo!

Pintadas, sarapintadas, chamalotadas, de listras, de pingos, de flores, de estrelas, de bichos!

Ah! E as formas?

Quadradas, redondas, oblongas; em laço, em pasta, em fita, em triângulo, em losango, em quadrilátero, em octágono; plastrons, mantas, lenços; de cetim, de gaze, de seda, de crepe, de linho, de chita, de lã...

Vendo-as, inúmeras, horríveis e formosas, esquisitas, de mil cores e de mil formas, a rir, a dançar, a vir sobre o janota extático, atordoado, trêmulo de gozo, de assombro e de indecisão, lembrou-me a marcha dos deuses-monstros por diante de Antônio, o santo eremita da Tebaida, caído em delíquio — no livro imortal de Flaubert.

E o caixeiro repetia:

— Faça o favor de escolher.
Depois de longa e penosa hesitação, decidiu-se o janota por uma gravata meio-plastron, estofada de veludo bleu foncé.

Pô-la ao pescoço, viu-se com ela ao espelho, e logo arrependeu-se.
Tomou então de uma outra, de seda creme, pontilhada de pequenos botões de rosa escarlates...

— Prefiro esta, disse. Faça o favor de embrulhá-la.

E enquanto o empregado assim o fazia, continuou extático ante a vitrine, a ver uma, a ver outra, a desejá-las todas. De repente, estremeceu de súbita alegria e exclamou:

— Olhe, tire-me aquela acolá. Não, a outra: granada e ouro. Essa; essa mesma.

Agora sim: estava satisfeito. O caixeiro substituiu a gravata no embrulho.

O janota deu-lhe a paga, tomou do volumezinho, e foi saindo vagarosamente. Posto cá fora, na rua, deteve-se ante a larga montre, opulenta de gravatarias rutilantes, espalhafatosas, e sentiu-se logo profundamente arrependido da espiga que se havia deixado impingir.

— É tão lindo aquele laço de cetim creme! Diabo! Se eu trocasse...

E, num enleio desgostoso, esteve por pouco a entrar de novo na loja, para fazer a troca. Mas envergonhou-se a tempo, e lá se foi com a sua gravata nova, cheio de raivas biliosas contra ela — por ser tão estupidamente feia, e contra si próprio — por ter um gosto tão reles, tão desgraçado...

Assim, exatamente assim nos sucede com a escolha de título, a todos que de tão perigosa coisa carecemos.

Ao princípio fica-se perplexo: são tantos! e todos tão lindos! Qual escolher? Aquele, aquele belo título vermelho, flamante como um carbúnculo. Pois será ele. E, sem demora, ata-se o título escolhido ao pescoço da obra e mira-se o efeito. Que desilusão! A cor da gravata não diz com a roupa.

O livro é todo azul claro e brancuras de neve: toalete risonha e fresca, toalete para passeio nos jardins de Armida; e o título é de um rubro tão vivo, inopinado e gritão!

A que lhe vai a matar é esta de escumilha branca, tirando a azul nas dobras, de um tom delicioso de leite puro.
Bravos! Perfeitamente!

E o autor, satisfeitíssimo, ata a nova gravata ao seu dândi e sai com ele a passeio.

Mas as decepções não tardam. Uns amigos acham que ela devia ser cor-de-rosa, curta, sem pregas.

Aquela é trivial, inexpressiva, tão sem graça e sem expressão que, embora com a gravata ao pescoço, parece o janota tê-la esquecido em casa...

Outros amigos, porém, (ó La Fontaine!) assobiam o pobre poeta, atiram-lhe remoques como pedriscos:

— Que! Melhor fora então pôr-lhe por título: Vendavais, Cataratas ou Labaredas! Esse não presta: é por demais pantafaçudo.

E, corrido do seu mau gosto, o poeta arranca ao livro a gravata e recomeça a correria das lojas.

Tais angústias que as conte o pobre Eugênio Lopes, o “esperançoso e jovem poeta” que hoje estreia.

Foram dias, mais: — foram meses de luta e de insônia.

Dez vezes achou a gravata da sua escolha, o non plus ultra das gravatas, a bela por excelência, a deliciosa, a única.

Vinte vezes se arrepelou furioso, bezuntando-se de impropérios, e pensando sinceramente, como quem se resolve ao suicídio: — O melhor é pôr-lhe por título — Sem título! O pobre!

Safiras, Flores singelas, Borboletas, Magnólias, Harpejos, Serenatas, Suspiros d’alma, ai! tudo! tudo! — até nem mesmo faltou o venerando, o nunca assaz surrado título — Peregrinas! — tudo ocorreu àquele infeliz que andou atrás de um título, como Telêmaco à cata do perdido pai.

Urgia, porém, decidir.

A Glória instava.

E a continuar daquele modo perderia a Posteridade, envelhecendo à espera de um título — como de um bilhete de viagem para ir lá ter.
Decidiu-se, enfim.

Arroubos: — foi a gravata que escolheu.

Arrependeu-se mil vezes da eleição; chegou mesmo a tentar anulá-la em favor de um candidato novo; mas era tarde: — parte do livro já estava impressa, e ao alto de cada página o título dado.

Ficou triste, desanimado.

Arroubos!... Dava lugar a esta pilhéria: Roubos!

Uma pilhéria grave!

Enfim...

Agora, na tipografia — diante da longa banca da cartonagem, cercada de operários em camisa, dobrando, cortando, cosendo, colando folhas de livros — um gozo intenso, profundo, atordoador, engasga solenemente o poeta Eugênio Lopes.

O meu livro! O meu livro! — é o estribilho íntimo da muda canção de júbilo que o seu espírito canta...

Cora e sorri; e ante os seus olhos úmidos, dilatados no espasmo daquele deslumbramento, as oito letras do título — Arroubos — impressas a carmim, em elzevir, sobre a capa de papel-granito do seu livro, passam gravemente, marchando a um de fundo, para os campos da Glória. Os RR erguem as pernas à frente, em um passo de marcha larga, majestosa: as grandes pernas de fuzileiros, vestidas das rubras calças de grande gala.

E, em cima, ao alto, por sobre um filete de fantasia o nome do autor: — Eugênio Lopes!

E, imóvel, como adormecido de olhos abertos sobre o livro fechado ainda, — sem se dar conta dos risinhos irônicos que entre a fumarada dos cigarros lhe mandam os operários, — quantos planos gloriosos, quantas quimeras, quantos delírios mudos assaltam nesse momento o poeta!

Seu nome, seu pobre nome, tão singelo e humilde, o nome de filho de um modesto molhadista por atacado; seu nome desde este dia vai partir veloz sobre os quinhentos volumes da edição; vai voar nas asas palpitantes da imprensa periódica!

Vai ser conhecido, procurado, citado e recitado, querido, talvez famoso!

“Eugênio Lopes, o mimoso poeta dos Arroubos.”

Assim se previa designado em breve por toda a imprensa. Nas livrarias, entre Musset e Victor Hugo, cercado pelos mais célebres poetas do mundo, está um poeta novo, chegado naquele instante das regiões do anonimato, cheirando ainda a papel molhado e a tinta de impressão.

Quem é? É ele: — Eugênio Lopes.

E, todo embebido desse luar invisível e magnetizante da cisma, com um sorriso vago a lhe pairar na boca, o poeta voltou a capa do livro, a primeira página, e ia a voltar a segunda; mas deteve-se, contemplando-a... Era a dedicatória. Dizia assim:

A ...

“Anjo, valquíria, deusa, a quem a vida
E o futuro, sorrindo, dediquei,
Aceita os versos meus, mulher querida,
E nunca mais perguntes se te amei!”
Como vai ela ficar contente e cheia de orgulho!
Mas que dirão seus pais? que dirão os velhos?

A velha, santa mulher que o adora, vai certamente chorar de júbilo ao saber que seu filho — o seu Eugênio “anda nas folhas e nos livros”, todo enfeitado de adjetivos elogiosos... Quanto ao velho...

E ensombrou-se-lhe a fronte. Ah! é o destino de todos nós... pensava o poeta, enrolando um cigarro em silêncio.

Balzac, Baudelaire, Henri Conscience, Casimiro de Abreu — quantos e quantos! — encheram de mágoa e de vergonha seus velhos pais, porque se deram à glória, porque foram poetas e pensadores, em vez de agiotas e negociantes.

Paciência! Tudo sofreria resignado. Era o seu destino: havia de cumpri-lo!

Mas os críticos?... Que dirão os críticos?...

Que dirá dos Arroubos o Jornal, esse velho inimigo de sonhadores, tão severo, tão duro, tão parco de elogios? Que dirá o Jornal? Naturalmente o que sói dizer sempre: — Recebemos do Sr. Fulano o seu livro de versos, intitulado Isto ou aquilo. E mais nada.

Ó sequidão antipoética!

Ah! se o Jornal dissesse ao menos: — bonitos versos, ou esperançoso, inspirado poeta... Como para o velho o Jornal é a palavra de Deus escrita na terra... do Brasil, lendo aquilo, talvez o velho embrandecesse...

E a Gazeta? que dirá a Gazeta, tão benévola para os que principiam, tão delicada na censura... mas também às vezes tão trocista?... Que dirá ela? Bem ou mal?

E, por uma súbita ligação de ideias, lembraram-lhe uns versos frouxos, outros — ásperos, que só agora reconhecia como tais...

Ah! estava perdido: — era horrível o seu livro!

Mas aquela poesia “Flores mortas”? Era bem feita e bonita: havia de agradar...

Logo na primeira estrofe, último verso, exatamente um dos que antes julgava melhores, encontrou formidável asneira...

Atirou o livro, empalidecendo.

No dia seguinte, muito cedo, comprou todas as folhas da manhã, — tremendo como um réu, a quem se vai ler a sua sentença — e, percorrendo-as...

— Basta, porém.

Nem mais uma palavra sobre esse poema trágico, de que havemos sido todos, mais ou menos, heróis.

Talvez que um dia o poeta dos Arroubos nos dê as suas Memórias, e então, se ele as houver escrito de todo o coração, não haverá quem se não comova e sorria, lendo esse capítulo, escrito com o próprio sangue, capítulo negro e rutilante, cheio de lágrimas e estrelado de sorrisos, que só se escreve uma vez na vida: — A grande estreia!

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Digitalização, pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

Um comentário:

  1. Grande poeta, romancista, novelista, dramaturgo e jornalista, VALENTIM MAGALHÃES, grande amigo de MACHADO DE ASSIS, foi um dos fundadores originais da Academia Brasileira de Letras, ainda em 1896.

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