Filomena Borges
Sabemos que é geral a
ansiedade por descobrir o mistério em que se envolve a individualidade
conhecida pelo nome que encima estas linhas.
De há alguns dias conhecíamos parte
do romance – se romance podemos chamar a uma história tristemente verdadeira –
de que é heroína, protagonista, vítima, e não sabemos que mais, aquela mulher
que é hoje célebre por andar o seu nome por toda esta população, repetido de
boca em boca.
E sabíamos da sua história,
porque nô-la referira a pessoa que assina a carta que abaixo transcrevemos, e
que, tendo dela ligeira notícia, dirigira-se pessoalmente a tomar informações,
e voltara trazendo-as, e as mais preciosas.
Encetaremos, pois, brevemente,
a história da vida de Filomena Borges, escrita pelo conhecido romancista
Aluízio Azevedo.
Eis a carta que ele nos
enviou:
“Sr. Redator da Gazeta de
Notícias. – Não é uma questão de interesse próprio que me traz ao seu
conceituado jornal. Também não venho tratar de política, nem de ciência nem de
literatura. Não.
Meu fim único, dirigindo-me a vossa
senhoria, é cumprir um dever de consciência, um dever de justiça.
Neste instante, Sr. Redator,
acabo de chegar da casa de Filomena Borges, e é ainda dominado por uma
impressão violenta que lhe escrevo estas linhas.
Nunca imaginei que o ódio, a
intriga e a inveja conseguissem tanto! Nunca me persuadi de que o espírito do
mal fosse tão longe!
Bem sei que Filomena não é um
modelo de virtudes domésticas; bem sei que na febre de suas paixões mais de um
futuro se tem estiolado; bem sei que muito coração ainda hoje sangra a ferida
de seus ósculos vermelhos.
Mas será ela porventura a
maior culpada de tudo isso, será ela a única responsável pelo mal que fez e
pelas fortunas que destruiu?!
Não caberá alguma parte dessa
culpa a nossa sociedade, aos nossos costumes, à nossa educação, e finalmente ao
triste meio onde cresceu e palpitou essa desventurada e formosa criatura?!
As mulheres são fatalmente
aquilo que os homens decretam que elas sejam.
Filomena Borges é um produto
legítimo dos vícios e da covardia de seus pais.
Se não a educassem no falso
luxo; se não lhe ensinassem todas as misérias de uma pobreza sem coragem e sem
dignidade; se não a vendessem ao primeiro noivo rico e brutal que a desejou:
Filomena Borges seria talvez neste instante o melhor modelo das mães de
família.
Eu também a detestava; eu
também a temia. Não foi sem escrúpulo que cheguei ao lado dela. Mas, depois que
a encarei de perto; depois que lhe sondei todos os arrebatamentos da alma
apaixonada; depois que a ouvi nesses momentos terríveis da desgraça em que se
não pode fingir, ah! então compreendi que, melhor do que o desprezo, merecia a
infeliz, compaixão e consolo.
Hoje ninguém ignora o que há a
respeito dessa pobre criatura desamparada; todos sabem a perseguição de que ela
é vítima, e toda a grande tempestade de cólera que lhe paira sobre a cabeça.
Formaram-se grupos, inventaram-se
clubes para a perseguir. Homens poderosos e mulheres felizes pedem o seu
quinhão de vingança, como esfomeados que exigem pão. Multiplicam-se as cartas,
os artigos, os cartões postais, os ditos maldizentes, as pequenas conversas
intrigantes; e, todavia, Filomena Borges, a temível, a medonha Filomena, chora
e pede por amor de Jesus que não a condenem sem a ter ouvido.
Ainda ontem um cidadão, cujo
nome abstenho-me por ora de citar, chegou a quebrar-lhe os vidros da janela,
depois de me dirigir da rua os maiores insultos. Um capitão do exército jurou
que lhe havia de meter uma bala nos miolos, se ela não tratasse quanto antes de
sair do Rio de Janeiro. A Sra. baronesa X… mãe de três rapazes, e em vésperas
de ser avó, remeteu-lhe unia carta, que faria temer um oficial de artilharia.
E, no fim de contas, qual é o
motivo de tanta guerra?! De que lado esta a razão?!
Isso só o público decidirá,
depois de ler o apanhado de todos os fatos, o extrato de todos os documentos,
que me foi permitido descobrir a respeito de Filomena Borges.
Não hei de inventar, nem
esconder coisa alguma; a verdade aparecerá nua e limpa, ainda que tenha de
arcar com o ressentimento de algumas pessoas.
II
Antes de principiar
– Leste Filomena Borges!
– Li.
– Que tal?
– Uhm! Assim!…
– Por quê?
– Pouco enredo… pouca forma…
e, com franqueza, achei tudo aquilo falso.
– Falso? Não! Isso tem
paciência. Tudo aquilo é vazado na observação e na verdade!
– Talvez seja por isso mesmo!
Nesse caso há excesso de fidelidade e a coisa parece falsa. Às vezes um retrato
a óleo é mais verdadeiro do que uma fotografia.
– Ora essa!
– Parece-te unia asneira o que
acabas de ouvir, mas não é, acredita! Nada é tão inverossímil como a própria
verdade, quando ela se apresenta com toda a brutalidade de seu peso.
– Estás metafísico, homem!
– Não sei se estou metafísico,
o que te afianço, é que não gostei da tal Filomena Borges, tão apregoada, tão
ansiosamente esperada. Confesso, achei-a fraca, desengraçada, inútil. Pode ser,
se o romance não fosse tão anunciado, que eu achasse bom, porém puxaram tanto
pela minha curiosidade, tanto mexeram comigo, que, palavra de honra, esperava
outra coisa.
– Ora! Isso não é crítica!
– Mas que queres, filho… Tenho
eu culpa que a tal Filomena, uma mulher que leva o seu histerismo à loucura,
não me haja agradado?! Tenho eu culpa de não poder suportar o tal Borges com a
sua ingenuidade pulha?… O Gutierres, com a sua má língua; o Barroso, sempre
feliz em público e desgraçado consigo mesmo? Sou o responsável por não
acreditar naquela viúva Perdigão, naquele Barradinhas, naquele Urso?!… Não! Tem
paciência! Mas o tal Aluísio pode limpar as mãos à parede! – O seu novo romance
é um atentado contra a verdade!
– Ora, deixa-te disso! Tu
mesmo, na tua vida, atravessaste já algumas das situações que se encontram em
Filomena Borges; tu mesmo já passaste por muitos daqueles transes; não negues!
Bem sabes que eu conheço a tua vida tanto como a minha!…
– De acordo! Convenho que aí
esteja descrita muita coisa que se tenha dado comigo. Mas será isso uma razão
para gostar do livro… Não me parece que seja!… Eu quero que um livro me faça
rir ou chorar, não há dúvida; mas, com os diabos! quero que ele me faça rir com
os ridículos alheios, e chorar com as dores que não são minhas! Quero chorar
para me divertir, e não para sofrer, percebes tu?
– Mas, filho, olha que estás a
cair em contradição, porque, se todos pensarem como tu pensas, não haverá meio
de fazer um romance real!
– Sim; mas é que há umas
tantas verdades que estão conosco, em nossa inteligência, e que, todavia não
existem na vida de ninguém; por exemplo…
– Não! não cites! Já vejo que
não chegaremos a um acordo; quanto mais citares, é pior!
Eu, por mim, digo-te
ingenuamente: não desgostei de Filomena Borges. Achei-a fora do comum,
despretensiosa e divertida.
– São opiniões! Eu não lhe
descobri nenhuma dessas qualidades! Não sei qual seja o fundo filosófico
daquela obra, não sei o que ela prove, o que ela afirme!
– Nem eu, mas fico satisfeito
em saber que ela divertiu, que ela me prendeu a atenção por muitos dias! E,
digo-te agora: certas cenas que encontrei ali, fizeram-me pensar… Acredito que
em tudo aquilo há uma intenção muito acentuada, há a intenção de…
– É inútil continuares! Já sei
do que me vais falar, e a esse respeito temos conversado!
– O que eu vejo, é que é muito
difícil escrever romances no Brasil!… O pobre escritor tem a lutar com dois
terríveis elementos – o público e o crítico. O público que sustenta a obra e o
crítico que a julga e às vezes a inutiliza; o público que compra um livro para
aprender, e o crítico que exige que o livro sustente as suas ideias e pense
justamente com ele – crítico.
– E daí?
Daí é que tudo isso seria
muito razoável, se o público caminhasse ao lado do crítico; mas assim não
sucede – aquele navega ainda no romantismo de 1820, e este não admite
literatura que não esteja sujeita às regras de 1883. A dificuldade está em
agradar a ambos, ou, ao menos, não desagradar totalmente a nenhum dos dois.
Isso, quero crer, é a grande preocupação de Filomena Borges. Ela tanto pertence
ao público como pertence ao crítico.
Será este o diálogo que se
travará depois do último folhetim de Filomena Borges?
Pode ser. Em todo o caso, a
obra principiará a sair de amanhã em diante no rodapé desta folha, e o leitor
que a julgue à vontade, que diga o que entender, que a condene ou que a
proteja, porque eu cá tenho as minhas razões para não a ter feito melhor nem
pior.
Boa ou má, esta é a única
Filomena Borges, legítima, verdadeira, a Filomena Borges da Gazeta de
Notícias, aquela que mandou o seu cartão a vários cavalheiros desta cidade e
aquela de quem até hoje se tem ocupado a nossa imprensa e o nosso público.
Sirva isso de resposta às
cartas dos senhores A. P. Ramos de Almeida, Niemeyer, L., O. Borges, P. de Oliveira
e tantos outros que me honraram com as suas letras; como igualmente sirva de
réplica ao Sr. Júlio Alberto Machado, que não teve o menor escrúpulo em
aproveitar aquele nome para título de um romance de sua folha, e, outrossim, ao
velhaco que publicou há pouco tempo um detestável fascículo intitulado:
Filomena Borges, a mulher demônio.
O público que evite as
contrafações e desconfie das Filomenas que não trouxerem o seguinte carimbo:
Aluízio Azevedo
Gazeta de Notícias, 1883.
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