Das notas de uma viúva
Eu tinha dez meses de viúva e
havia seis que Paulo me fazia a corte. Por esse tempo propôs-me ele um passeio
ao campo e eu aceitei.
A manhã era esplêndida; uma
bela manhã de setembro, cheia de luz e temperada por um calor comunicativo e
doce. Cedo metemo-nos num carrinho de vime, leve como uma cesta, rasteiro como
um divã, e cômodo como um leito. Paulo deu rédeas ao animal e o carro
conduziu-nos para fora da cidade.
Eu sentia um bom humor extraordinário;
o ar puro e consolador daquela madrugada, pulverizado no espaço em vapores
cor-de-rosa, enchia-me toda como de uma grande alma nova, feita de coisas
alegres e benfazejas. Tive vontade de rir e de cantar.
O sol principiava a destacar o
contorno irregular das árvores e derramava sobre as montanhas uma luz sanguínea
e transparente. Achei-me expansiva, travessa com repentes de criança; e, não
sei por que, Paulo nessa ocasião se me afigurou muito melhor do que nas outras.
Cheguei a descobrir-lhe espírito e a desfazer-me em risadas com algumas
pilhérias suas que, fora dali, me fariam bocejar.
Em certa altura paramos. Ele
ajudou-me a descer, prendeu o cavalo, abriu a minha sombrinha, e começamos os
dois a andar de braço dado por debaixo das árvores.
Que delicioso passeio! Ninguém
pode calcular quanto me sentia feliz. Mais alguns passos e tínhamos chegado a
um caramanchão, ou melhor, alpendre de verdura, misterioso, morno, impregnado
de perfumes resinosos e embebidos de azul sombrio. Ao lado, uma cascata corria
em sussurros; e as suas águas esfarelavam-se nas pedras, irradiando na
fulguração do sol.
Paulo deixou-me por um
instante, para ir buscar o carro. E, nesse momento de inteira liberdade, quando
senti que não era observada por ninguém, levantei-me, bati palmas e pus-me a
dançar como uma doida; depois galguei aos saltos o lado da cascata e recebi no
rosto o pó úmido das águas, donde o sol tirava cambiantes multicores e
dourados. Abaixei-me, colhi água na concha das mãos e bebi. Afinal, assentei-me
no chão e abri a cantar uma coisa alegre que aprendera ainda no tempo do
colégio.
Paulo voltou com o carro e
recolheu ao pavilhão o cesto do almoço. Estendeu a toalha sobre uma mesinha de
pedra que havia; pousou uma máquina de café, duas garrafas de Bordeaux, uma de
champagne, uma botija de curaçau, uma empada, um assado, queijo, frutas e pão.
Sentia apetite e confesso que
estava encantada com tudo aquilo. Era a primeira vez que me animava a fazer uma
folia desse gênero – um almoço ao ar livre, ao lado de um rapaz.
E Paulo não me parecia o mesmo
homem: descobria-lhe maneiras e qualidades, para as quais jamais atentara
enquanto o vira somente nas frias atitudes circunspectas da vida; notava-lhe
agora a distinta estroinice dos pândegos de boa família, criados e animados
entre senhoras finas e orgulhosas; um certo pouco caso fidalgo e elegante pelas
virtudes comuns e pelos vícios vulgares; um ar altivo e másculo de quem está
habituado a gastar forte com os seus prazeres; uma linha moderna, libertina e
gentil a um tempo, feita de extravagância de bom gosto, e um pouco de viagens,
alguns conhecimentos de música, um nada de política, anedotas francesas, algum
dinheiro, charutos caros, um monóculo, o uso de várias línguas, duas gotas de
mel inglês no lenço, um fato bem feito de casimira cambraia, um chapéu de
palha, luvas amarelas, polainas e uma bengala.
E o grande caso é que estava
um rapagão cheio de gestos largos, de atiramentos de perna e de grandes
exclamações em inglês.
Assentei-me no banco que
circulava a mesa e ele fez o mesmo defronte de mim. Informou-se se eu estava
satisfeita com o passeio; falou em repeti-lo. Era preciso aproveitar o verão.
Mas, nos domingos nada! Havia muita gente!
E abria garrafas, dava lume à
máquina de café, servia-me de mariscos e falava-me do seu amor. Eu contei-lhe
francamente as impressões que recebera aquela manhã e mostrei-me contente.
– Se soubesse, minha amiga,
disse-me ele, quanto me sinto bem a seu lado!… Nem mesmo me reconheço, creia!
Fico tolo só a pensar em nossa futura felicidade, em nossa casa e em nossos…
Ia falar nos filhos, mas
deteve-se e ficou a olhar-me em silêncio, com os olhos afogados numa grande
insistência humilde. Parecia haver um pranto escondido por detrás das suas
pupilas verdes.
– Descanse, falta pouco ….
respondi, possuída de alguma coisa que não sei bem se era compaixão.
Falta um século!… emendou ele
com um suspiro.
E chegou-se mais para mim.
Tinha o ar tão respeitoso que não fugi.
– Por que não fica mais à
vontade? aconselhou-me, ajudando-me, muito solícito, a tirar o chapéu e
desfazer-me do mantelete.
Houve um silêncio. Ele
queixou-se da falta de gelo, abriu uma nova garrafa de Bordeaux e encheu as
taças. Depois, leu-me uns versos que a mim fizera no meu tempo de solteira.
Vieram recordações. – O nosso namoro! Quanta criancice!
– E o bofetão?…
Esta lembrança trouxe-me uma
risada que me fez engasgar. Sobreveio-me tosse; fiquei um pouco sufocada…
Ele levantou-se logo, começou
a bater-me delicadamente nas costas. E, a pretexto de auxiliar-me, afagava-me
os cabelos e a fronte.
– Não é nada! não é nada! dizia.
Um gole de champanhe!
– Não! antes água…
Correu à cascata e voltou com
um copo d’água.
Tornamos à palestra, e não
reparei logo que o rapaz desta vez ficara inteiramente encostado a mim.
Passamos à sobremesa. As pilhérias repetiam-se mais a miúdo. Paulo pôs-se a
fumar.
Consenti e disse até que
gostava do cheiro do fumo. Ele fez saltar a rolha do champanhe. Sentia-me
enlanguescer; os olhos ardiam-me um tanto e todo o corpo me pedia repouso;
insensivelmente fui perdendo alguma coisa da minha cerimônia e pondo-me à
vontade; estiquei mais as pernas, recostei-me nas costas do banco e debrucei
para trás a cabeça.
Ele ficou a olhar-me muito com
um ar sério e infeliz. Tive vontade de dizer qualquer coisa e nada mais
consegui do que sorrir. Estava fatigada.
Paulo aconselhou-me que
fumasse um cigarrinho e esta ideia extravagante não me pareceu má. Fumei o meu
primeiro cigarro.
Em seguida senti um vago
desejo de dormir. Ele serviu o café e o licor. Fez-me tomar antes um pouco de champanhe
misturado com Bordeaux.
E continuamos a conversar. As
recordações de antes do meu casamento vinham a todo instante.
Isto sempre teve gênio!…
segredava ele, ameigando-me o queixo.
Chamava-me criaturinha má, sem
coração; ameaçava-me com vingançazinhas, que se realizariam quando fôssemos
casados. Tinha ditos maliciosos, palavras de sentido dúbio e olhares cheios de
paixão.
Eu estendia-me cada vez mais
no banco, amolecida por um entorpecimento agradável; as pálpebras
fechavam-se-me. Fazia-se-me vontade de ser menos severa para com aquele pobre
companheiro de infância; tanto que não me sobressaltei quando senti a sua mão
empolgar-me a cintura.
– Como eu te amo! murmurou
ele, com a boca muito perto de meu rosto.
O seu hálito abrasava-me as
faces.
– Não faça assim: pedi,
repelindo-o frouxamente.
Mas ele passou-me a outra mão
na cinta e puxou-me para si.
Fiz ainda alguma resistência;
sentia-me, porém, tão mole, e além disso sabia-me tanto ser abraçada por alguém
naquela ocasião, que me deixei levar e cai sobre ele, com a cabeça desfalecida
no seu ombro.
Paulo segurou-me o rosto e
estonteou-me de beijos.
Eram ardentes, vivos,
repetidos, como os tiros de uma metralhadora.
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