D. Joaquina
Aquele canto perto dos Telégrafos, às nove de uma
noite de inverno... Em frente, os destroços da antiga Ucharia, embocando a rua
Clapp, cheia de prédios grandes, com lanternas. Para baixo, os jardins sucessivos
da praça até ao cais, sob o permanente espasmo de um estendal de lâmpadas
elétricas — tantas que na poeira azul da luz os transeuntes se destacavam ao
longe como vistos por um binóculo de teatro. Varrendo a praça, a sacudir
árvores e rodopiar folhas secas, gorgolejando pela rua da Assembleia, um vento
álgido corria a sua tragédia sem causa. Era no centro da cidade. Estava ermo.
Parecia ao menos ermo. E no abandono silencioso — único e seguido sintoma de
vida urbana — , de instante a instante os inúmeros carros elétricos rolando
como trovões a retinir sons metálicos de aviso...
Como achava prazer naquilo o Augusto Guimarães, tão
fino, de tão lúcida inteligência? Havia dias, entretanto, conseguia
arrastar-me, também a mim, por esses pontos equívocos de dramaticidade
misteriosa.
— Compreenderás tu a minha nevrose? indagara dele.
Estou que o sentimento é uma ilusão da civilização. A gente baixa tem apenas
instintos. O sentimento da beleza, da bondade, do pudor, da honra — invenções
nossas como os perfumes franceses e as modas da rua da Paz! Vê o doloroso
estudo do mundo das mulheres perdidas na alta sociedade. Esse mundo é a esquina
por onde passam todos os homens. Nada mais abjetamente artificial. É a
antiga cocotte que
feminiza, desfibra o homem contemporâneo, à força de momices, de luxos, de
pretensões. Na pobre coitada que faz a rua à noite, o drama é a falta de alma,
a falta de sentimento. Os homens conservam-se rudes e fortes. Eu desejaria
encontrar uma alma nos manequins trágicos que acendem o desejo na forma
noturna...
— És romântico.
— Não; sou doido.
Talvez eu também passasse por um período de loucura. O
certo é que o acompanhava, sem preconceito, sem vergonha, por curiosidade. A
vida normal, aliás, a vida dos ônibus e dos transeuntes, passava sem nos ver. A
outra, a das esquinas de má fama, nem dos carros e dos pedestres era vista nem
por acaso os via. Augusto estudava. Pobre Augusto! Ficávamos horas a ver
repetidas as mesmas cenas de luxúria animal e de sordidez. Os homens, marçanos,
soldados, discutindo as moedas. As mulheres feias, sujas, maquinais. Nem por
parte deles nem por parte delas havia o mais leve esboço de carícia — uns
retendo o dinheiro, as outras já sem alma senão para sentir o desejo de não
morrer de fome.
— Naquela noite, aparecera, entretanto, uma criatura
de destaque no meio. Era velha. Tinha a face severa na queda das pelancas;
curvava como se fosse muito idosa; caminhava com um andar de avó impertinente.
E usava pelerine, sombrinha, mantilha de rendas sobre os cabelos grisalhos.
Atroz! Se fosse uma pobre ninfomaníaca talvez causasse piedade; se estivesse
como as outras a morrer de fome, dar-lhe-ia uma esmola. Mas não. Era hostil e
comercial. Os marçanos em camisa e lenço de cor, que se aproximaram e
discutiram somas, eram repelidos ou afastavam-se com medo. Alguns nem se
chegavam. A velha demorou pouco. Tomou logo um transway.
Chamei a atenção de Augusto.
— Quem é aquela velha? indagou o psicólogo, a uma
portuguesa magra e amarela, que passeava em chinelas, com um galho de arruda
atrás da orelha.
— Não vês logo que está muito chiques pra ser da zona?
— Donde será então?
— É com certeza das sérias que fazem o Rocio. Dá-me a
mascote, anda...
Melhor e mais digno é sempre não ter repugnâncias
pelas misérias humanas. Nada mais relativo que a ignorância. Demos o que a
criatura pedia. E no outro dia era eu a convidar Augusto para vermos as pobres
mulheres da praça Tiradentes.
Realmente. Aquilo que nas esquinas das ruas próximas
do cais passa como lepra, tomava no Rocio proporções de porneia num quartel.
Dizem que outros trechos urbanos resistem à civilização normalizadora,
mantendo, apesar de tudo, a personalidade. Estávamos num ponto de movimento
extraordinário, com a iluminação escandalosa dos teatros; por todos os lados, o
turbilhão de conduções correndo, buzinando, rolando entre a multidão densa. E,
entretanto, a praça mantinha as suas horrendas tradições. Com o acender dos
revérberos e o abrir de chofre dos arcos-voltaicos era a aparição das primeiras
figuras. Algumas ficavam até pelas duas da madrugada — andando. De preferência
o lado do ministério, à frente da travessa Leopoldina, as aleias do jardim
separadas da rua apenas por um canteiro. Todas se saudavam, contavam pequenas
intimidades.
— Boa noite.
— A Sra. passou melhor?
— Qual! A constipação não me deixa.
— É do tempo...
Comportavam-se austeramente. Eram todas mais ou menos
velhas, mas penteadas, calçadas, de colete, a blusa presa por um cinto, a saia
preta. Caminhavam como quem vai a um determinado lugar. Paravam como quem espera
o bonde. À aproximação de um indivíduo, punham-se em guarda, secas, impondo
condições. Quando acediam, seguiam disfarçadamente. O desolador era, além do
nivelamento daquele comércio, os mesmos aspectos de insensibilidade e de
velhice. Certo, estavam acima das outras em modos e em roupas. Mas impunham
mais o nojo pela falta de coração. E eram velhas. Oh! como eram velhas! Havia
faces encarquilhadas com tinta; cabelos pretos e dentaduras postiças
guarnecendo perfis chupados; dorsos que, apesar do espartilho, abalavam; colos
que se cavavam em reentrâncias espaçadas. A tentativa primitiva dos artifícios
aumentava a feiura venerável. Nem um olhar ardente, nem uma graça. A velhice
patente e desoladora.
A mulher que víramos em frente aos Telégrafos e de
novo encontrávamos ali, era de todas a mais atroz — porque antipática.
Descobrimo-la de novo num domingo. Nesses dias, o jardim e as calçadas ficam
cheios de homens do povo endomingados. Na poeira, entre as árvores, no som das
músicas vindas dos estabelecimentos de diversão, na própria irradiação da luz
parece vibrar o instinto dos brutos soltos. As mulheres paradas lembram velhas
aranhas à espreita. E os homens, de comum simples e tímidos pela ausência de
convívio feminino, nesses dias aos bandos criam coragem e transformam a falta
de ousadia em grosseria, em brutalidade, no desejo de amesquinhar, de ferir.
São trabalhadores braçais, carroceiros, operários de jornal, e d'alma parecem
crianças grandes. Dão gargalhadas, lançam dichotes, fazem propostas alvarmente,
chegam ao encontrão, ao murro. Só cada um deles teria medo de se aproximar.
Juntos criam como que uma coragem vingadora. E há sempre em cada grupo um mais
esperto, que diz piadas aplaudidas...
O incorrigível Augusto Guimarães dizia:
— Estamos a ver um aspecto do instinto que os simples
transeuntes não verão nunca! As angústias, as covardias dos brutos diante das
mulheres... Dize-me se há aqui Amor, mesmo no sentido grego. Há ódio no
apetite!
Nesse momento passávamos pela porta que fica em frente
ao ministério. Estava lá a velha. Mas numa atitude trágica. Sobre ela caíra em
verdadeira montaria um troço de marçanos encervejados. Choviam chufas. E ela,
no cerco, esperava firme, o beiço trêmulo, o cabelo grisalho escapando-se da
mantilha, a capa já de revés.
— Cachorros! Cachorros!
— Eh, velha... Vem cá...
— Canalhas!
— Ó Zé aguenta a velha aí...
No cruzar das piadas, quando um dos tipos já ia
agarrá-la, a velha teve uma inspiração:
— Espera que eu chamo a polícia...
Foi como um golpe. Ela devia conhecê-los.
Não eram rufiões ou soldados que a lembrança da
polícia excita. Eram bem simples trabalhadores, com uma gota mais de cerveja
pelo domingo de descanso. Logo romperam o grupo. À solidariedade de ataque à
velha fazia-se desencontrado terror da cadeia. Foram uns para o centro do
jardim, disfarçando, desceram outros a calçada, reuniu-se o resto pelas aleias.
A mulher estacou um instante, respirando, concertou os
cabelos sujos. E seguiu.
Devo dizer que nem por momentos tive um vislumbre de
dó pela criatura repugnante. Não seria eu a defendê-la. Quase ri — enquanto os
marçanos a espicaçavam, porque nunca uma criatura me dera impressão tão seca de
prostituição hostil. Sim, hostil.
Daí talvez a minha curiosidade, a minha quase
obsessão. Espiava-a de longe, policialmente. Ela era mais dura ainda que as
companheiras de serviço voluntário. Aparecia regularmente às oito, mercadejava
a pelancaria com o ar irritado dos negociantes que nunca prosperaram, e
retirava pela madrugada. Todas as noites! Que segredo sórdido ocultava aquela
voracidade crapulosa? Que drama esconderia a carcaça fatigada da velha?
Augusto Guimarães ainda mais me interessou dizendo-me:
— O curioso é que essas velhas são as envergonhadas do
vício...
— Como?
— Salvo cinco ou seis, todas as outras têm ocupação,
trabalho, família. Andam por aqui para ajudar ocultamente as despesas...
De Augusto Guimarães era natural admitir as mais
extravagantes observações. Já me habituara de resto a hipóteses infames sem
pestanejar, sem mesmo lhes compreender o alcance. Essa ideia, porém,
impressionou-me. Assim, certa noite, quase à uma da madrugada, vinha eu de cear
num clube de jogo, quando deparei na calçada deserta com a velha atroz. Aranha
de horror, esperaria ainda alguém? De fato. No jardim estava um rapaz que a
olhava. Grosseiro. Enfardelado numa roupa que parecia não chegar e era larga
demais ao mesmo tempo. Mas dezoito anos ardentes, os olhos grandes, a face
corada. Parei atônito. Podia ser neto da velha. Naquela mocidade não havia
vestígios de sentimento de beleza ou pelo menos de respeito aos cabelos
brancos? E a anciã? Tratá-lo-ia como aos outros ou teria desejo? Ele descia o
jardim e ela aproximava-se do extremo que fica em frente à Companhia
Telefônica. Mas, ao chegar aí, a velha deu de cara com um velho respeitável —
sobrecasaca, chapéu-chile, três embrulhos, guarda-chuva. O velho exclamou:
— Por aqui, a estas horas, D. Joaquina?
— Boa noite, Sr. Crescêncio. Venho da casa de D.
Fortunata, lá na rua dos Andradas. Vou tomar o meu bonde...
Não era possível ouvir o que diziam. Falaram baixo. O
adolescente parara com a esperança de que fosse curta a palestra. Foi. O velho
despediu-se. Ouvi distintamente D. Joaquina dizer:
— Lembranças a D. Mariquinhas e às meninas. Qualquer
dia apareço...
E ficou como à espera do elétrico. O velho seguiu sem
voltar a cabeça. Então o rapaz, a que a demora dera coragem, aproximou-se,
falou, discutiu e eu vi seguirem os dois rumos da rua Visconde do Rio Branco...
Fiquei num estado de nervos indizível. Ela era
realmente uma criatura com relações de família! E corria as praças aos sessenta
anos, talvez mais, e mercadejava-se a rapazolas do povo. Horrível pela
fealdade, pela miséria da alma, pela hipocrisia, pelo vício — por tudo!
Decididamente — na primeira que a visse havia de saber quem era!
O dia seguinte era sábado. Havia no São Pedro récita
de uma companhia lírica de segunda ordem. Tínhamos jantado juntos, eu e o
Augusto Guimarães. Já, com o envenenamento causado pela velha, considerava as
psicologias de Augusto simples degeneração pessoal. Estava resolvido a não o
acompanhar mais. E a minha ironia fora inclemente durante o jantar. Assim,
remontamos à nossa classe, de casaca, seguimos para o teatro pelo jardim, como
transeuntes. Muita gente, vinda nos bondes que passavam do outro lado, cortava
pelas alamedas. Era um contínuo passar de famílias, risos, boas de plumas, charpas de gaze,
sedas de mantôs, perfumes... Íamos a sair em frente ao São Pedro, quando
ouvimos uma voz:
— Doutor Augusto...
Augusto voltou-se e naturalmente estendeu a mão.
— Como estás tu?
Era uma forte mulher morena, de cabelos negros,
simpática. Augusto disse:
— Aqui tens a Cidália. Durante cinco anos, lavadeira
na minha casa.
— Mas que relações!
— Este patrão!
— Depois deu para costureira do Arsenal e vem à noite
para cá... Foi a minha informante inicial.
— Deixe de contar a vida dos outros.
— Também que fim levaste, Cidália?
— Doenças. Esta vida é um inferno.
Eu, nervoso com aquele encontro de Augusto, não os
ouvia. Olhava na calçada a estranha velha, que falava com um rapazinho
insignificante e bem vestido. A mulher atraía os rapazes! E aquele parecia um
desses exploradores baratos tão comuns...
— Lá está a velha! fiz segurando o braço de Augusto.
— É D. Joaquina... interrompeu a Cidália, familiar.
— Conhece-a?
— Foi minha patroa quando eu cosia para o Arsenal.
— Hein?
— Coitada! Para dar vazão às costuras tem três
empregadas e trabalha desde as seis da manhã!
— Como?
— É uma senhora muito direita. O marido dela foi
negociante. A vida dá muita volta...
— Impossível! Vejo-a por aqui nesta miséria.
— Ela precisa tanto!
— Precisa tanto e não tem vergonha!
— Oh!
— Procura com cabelos brancos rapazes como o que lhe
fala agora!
— Aquele é filho, Sr. doutor.
Recuei. Olhei Augusto, que se modificara.
— Sim, é filho, continuou a Cidália. Ela tem dois —
aquele e outro mais velho; de bigode. Por causa deles é que faz tudo. Também
foi com mimo que os perdeu. Depois da morte do marido, só pensava nos filhos,
queria os filhos estudantes, era tudo para os filhos. Os meninos cresceram mal-educados,
com más companhias... o senhor sabe como os rapazes se perdem. Ela dava tudo.
Era só pedir por boca. Ah! se o senhor visse aquela casa agora! Os rapazes não
estudam nada, caíram na pândega. Acordam tarde. É ela quem lhes leva o
chocolate à cama, quem os ajuda a vestir. E almoço na mesa, eles logo na rua e
ela outra vez na máquina, até de noite. Foi uma vez quando voltava a pé, de
levar costuras, sem dinheiro para o bonde, que encontrou aqui um sujeito
atrevido. A fome é negra, e gostar de filho é pior que fome. D. Joaquina,
coitada! viu que podia fazer mais algum dinheiro e voltou envergonhada. E, como
o tempo habitua a tudo, agora tem este serão...
— E os filhos sabem?
— Como não? São lá tolos? Só não dizem porque não lhes
convém. Cada vez mais vagabundos, mais exploradores. E ela gostando cada vez
mais deles. A maior felicidade de D. Joaquina é quando eles atravessam o largo
e vêm lhe pedir a bênção. Eles só vêm, os marotos, quando precisam de
dinheiro...
Nós olhávamos o grupo. A velha tinha pela primeira vez
a face alegre. Abria a bolsa, dava uma cédula ao tipinho. O tipinho esperava
apenas por isso, porque logo estendeu a mão. E nós vimos o velho trapo da praça
estender também a mão para que o rapaz a beijasse — tão transfigurada que
parecia uma duquesa e parecia uma santa...
— Vamos embora, Augusto. Olha que perdemos o primeiro
ato.
— Sim, perdemos, tartamudeou o incorrigível romântico.
Senti que desejava correr. Augusto parecia não querer
andar. Passava por nós a velha pelancuda, infame, seca. E Cidália falava-lhe.
Ainda as ouvimos.
— D. Joaquina! Já sei que está contente. O seu José
veio vê-la...
— Coitado! Rebentou a botina e queria ir ao baile
hoje. O meu filho! Cidália, uma pobre mãe não deve poupar sacrifícios, quando
Deus lhe deu dois filhos seus amigos...
Tomei do braço de Augusto.
— Como nos enganamos!
— Nunca, murmurou o psicólogo, nunca nos enganamos! A
vida é sempre muito mais atroz do que se imagina...
E entramos no teatro com a boca amarga, a tristeza
inútil n'alma para discutir nos intervalos com senhoras e cavalheiros a voz do
tenor e a plástica da prima-dona. Seria uma calamidade se todas as coisas
fossem imprevistas...
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